quarta-feira, 28 de abril de 2010

TODOS PARA A COZINHA

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Por Catarina Fonseca

HÁ OS QUE FAZEM tudo, os que não fazem nada, e os que funcionam só com o frigorífico. E o seu, como é?

- O Desinteressado – Acham que a cozinha é o Reino da Mulher, ou quando muito da Mulher a Dias, ou de outra pessoa qualquer que não eles. Moram na mesma casa há 30 anos e ainda não sabem onde está o açucareiro. A relação de máxima proximidade que têm com a cozinha é gritarem do sofá: ‘Ó Maria Teresa, traz-me aí uma cerveja”.

- O Especialista – Há o especialista em bolos, que faz imensa porcaria. Quando ele sai, há chantili desde o tecto aos imans do frigorífico, quatro tigelas por lavar, a super-centrifugadora com cascas de ananás nas sete divisórias, e a bancada coberta de farinha, pão ralado e açúcar. O especialista em salgados passa o tempo entre a cozinha e o telefone, ou tem o telemóvel no bolso do avental, porque se farta de telefonar para a prima Elvira a perguntar em que parte do refogado é que entra o colorau. Em comum, os dois especialistas têm o facto de nunca incluírem no pacote de especialista a parte de lavar a loiça, arrumar a cozinha e consertar os estragos.

- O Criado – Faz tudo, mas com um ar muito deprimido. Já percebeu que dá mais trabalho refilar do que despachar serviço, e portanto despacha serviço. Geralmente é dos que têm uma mulher paranóica que não suporta um copo em cima da mesa. Geralmente também, são daqueles que saem de casa um dia para comprar cigarros e não voltam.

- O Cozinheiro – Este é a sério. Até sabe fazer Bôla, daquelas com queijo e fiambre e uma mistura que ele começa a explicar que leva alho, pimenta, carne de porco, banha, cebolinho, e a meio já toda a gente desligou com um ar muito deprimido como se ele estivesse a ensinar uma equação de terceiro grau, isto depois de ele ter assegurado que era a coisa mais simples do mundo e que tinha aprendido com a mãezinha dele antes de fazer 4 anos. Podia montar sozinho um pronto-a-comer na Lapa, mas prefere cozinhar para os amigos e ouvir os elogios como se não fosse nada com ele.

- O Aplicado – Coitado, ele bem tenta, mas na maioria das vezes quando quer fazer Frango na Púcara sai-lhe empadão de arroz, e quando tenta as almôndegas sai-lhe uma espécie de Brigadeiros de cimento. Ninguém lhe dá tempo para aprender, ele convence-se que um Homem não nasceu para aquilo e pronto, aqui temos mais um candidato ao sofá e ao ‘Maria Teresa traz-me aí uma cerveja”.

- O Esporádico – Até se esforça, mas é só às vezes. Ao Sábado acorda de madrugada particularmente decidido, vai à praça com um grande cesto, e chega com um ar tão importante como se estivesse na Pré-História e chegasse à caverna a arrastar um dinossauro. A única parte da cozinha digna de um homem é o ‘barbecue’. Durante o dia faz carne assada, porco no espeto, sardinhas e camarão frito, e depois fica três meses de rastos sem sequer lavar um copo.

- O Gourmet – São os que falam do mundo macho do touro e do vinho tinto, e ainda incluem a cozinha. Acham que a verdadeira culinária pertence aos homens, e que as mulheres só sabem fazer arroz de tomate e puré de legumes para os bebés, que coitadinhos inda não se sabem queixar. São os das ervinhas e dos enchidos, dos charutos e das garrafeiras, os que assinam a revista do azeite, os que dizem que têm uma relação ‘sensual’ com a culinária, o que quer dizer que só cozinham quando lhes apetece e sempre só para eles próprios ou para um rancho de amigos homens. Mais uma vez, escusado será dizer que quem lava a loiça e arruma a cozinha é a mulher a dias.

- O Distraído – Tem uma relação quase fetichista com o frigorífico. Ficam eternidades de pé com a porta aberta a olhar lá para dentro como uma vidente para uma bola de cristal. Ninguém sabe porquê, deixam a porta do frigorífico aberta todo o tempo que passam na cozinha, mesmo que lá fiquem duas horas à espera que o arroz coza. Para eles, nunca nada leva menos de duas horas a cozer.

- O Perfeito – Nem é que queira ser moderno, mas já percebeu que as coisas funcionam melhor se de facto houver um trabalho de equipa. Até já aprendeu a fazer açorda. Geralmente, como todos os recém-convertidos, faz muito bem açorda.

sábado, 24 de abril de 2010

Coitado do Rei...

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A MINHA avó nem conseguia falar.
Deixou-se cair na chaise-longue enquanto a Rosa foi preparar um chá de tília.
A minha mãe abanava-a com o leque, e ela só repetia, “eu vi-o! eu vi-o! tão novo e tão triste, coitadinho!”
O meu pai chegou nessa altura e foi então que a minha mãe explicou tudo:

- Vimos o rei.
- E então? Ainda o vimos há dias, na exposição do Silva Porto.
- Mas aqui foi diferente. Parecia uma pessoa normal, a descer o Chiado, a entrar na “Ferrari”…
- Não me digas que vos ofereceu um capilé!

O meu pai anda sempre muito sério e não costuma dizer coisas destas, de maneira que desatei a rir e a Rosa, que levava a bandeja de prata com o bule do chá, até ia entornando tudo.

- Fique o senhor meu genro sabendo — exclamou a minha avó-- que o povo de Lisboa estava todo ali a aplaudi-lo!
- Que exagero! - exclamou o meu pai…- O povo do Chiado…e, mesmo assim, se calhar nem todo…

A minha mãe contou então o que se tinha passado: estavam elas a tomar chá na Ferrari quando de repente vêem entrar D. Manuel.

- Mas olha que lá fora eram palmas que nunca mais acabavam…

A minha avó tentou endireitar-se, o que é coisa complicada por causa das barbas do espartilho.

- Claro! O povo ama o seu rei! Só os republicanos e os excomungados da Maçonaria e da Carbonária é que o querem matar!

O meu pai levantou-se e saiu da sala, que é sempre o que faz para evitar discussões.
Mas voltou logo a seguir, com um livro nas mãos.

- Se a senhora minha sogra, em vez de ler aqueles romances de cordel que lhe vêm vender à porta, lesse aquilo que interessa, saberia que não se trata de matar o rei. A monarquia é que está velha, é um ninho de corruptos, e a república vai chegar, mais dia menos dia. Não foi no dia 1 de Abril? Noutro dia será, mas é uma fatalidade, quer a senhora queira quer não, e …

A minha mãe tossiu levemente, que é o sinal que ela dá ao meu pai quando ele se deixa embalar em discursos intermináveis.
Ele ajustou os óculos e disse:

- Esta é uma carta dirigida ao rei. Não a vou ler toda, mas se a senhora minha sogra quiser, fica com o livro.

Aclarou a voz :

- “O trono de Vossa Majestade está perdido e nada o salvará da sua perda. É lastimável que Vossa Majestade herdasse um trono a cair mas a verdade é esta: ele está a cair.
Vossa Majestade é muito novo mas para o mundo que veio encontrar é velhíssimo. Veio tarde. Vossa Majestade é um novo rei, mas não é uma monarquia nova. Vossa Majestade teve verdadeiramente pouca sorte. Nasceu rei quando já não era preciso".

O meu pai calou-se e fez-se um grande silêncio.

- Quem escreveu isso? – perguntou a minha avó.
- João Chagas – respondeu o meu pai.
- Claro, tinha de ser um da sua laia… Os republicanos são todos iguais!

E saiu da sala.
Mas até eu percebi que aquelas palavras a tinham tocado.
Como me tocaram a mim que, sem querer, já estava a murmurar “coitado do rei”.
(Que o meu pai nem sonhe!...)

«JN» de 24 Abr 10

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O que eles (não) mudam por amor

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Por Catarina Fonseca

É O SONHO de qualquer mulher – a seguir a conhecer o George Clooney e ter dinheiro para não ter de pensar na vida: conseguir que um homem mude por amor. Ao que parece, é desejo inútil: eles não mudam mesmo. Ou será que sim? Fomos investigar, afinal, o que é que pode esperar em termos de mudança.

O que queríamos que mudassem

Queríamos, pois queríamos, mas podemos esperar sentadas: nunca vai acontecer. Mas seria assim tão difícil que eles mudassem…

- A toalha no chão – Não apanham. É escusado. Podem estar quatro toalhas em ‘cúmulo’ como nuvens de Primavera, que eles continuam a alçar a perna e passar por cima na maior das descontracções. Também não fazem ideia de onde nos vem a mania de andar sempre a puxar tampa da sanita para cima, por que é que uns pelitos no lavatório nos põem apopléticas ou por que raio é que uma tampa de pasta de dentes fora do sítio pode arruinar um casamento.

- O copo na mesa da sala – Altos ou baixos, gestores ou trolhas, atinadinhos ou destrambelhados, há uma coisa em são todos todos todos iguais, ainda mais iguais que no Estranho Caso da Toalha no Chão: acham que tudo o que deixaram desarrumado se arruma sozinho. Aliás, arrumar pertence ao tipo de coisa que eles nem notam que precisa de ser feita. Afinal, daqui a nada já está tudo desarrumado outra vez...

- A ‘dislexia’ para datas - “Ó Ricardinho, o dia de hoje não te diz nada?”, e ele franze o sobrolho e todos os seus neurónios (o Tico e o Teco) franzem os neurónios um para o outro e pensam, “Espera lá, Ricardo Manuel, será dia de levar o cão ao veterinário? De pagar à mulher a dias? Do Benfica-Estrela da Amadora?” e depois pensa “Bem, o Benfica-Estrela da Amadora não deve ser com certeza” e fica a remoer nas outras duas hipóteses. Depois estranha que ela faça greve de sexo durante três dias por causa do cão, acha que deve ser do período, depois lembra-se que ou ela teve nesse mês três períodos ou não deve ser do período, e só muito mais tarde é que descobre que faziam anos de namoro. Mas continua sem perceber por que isso tem assim tanta importância. Afinal, continuam juntos, ou não?

O que eles não mudam mesmo

Há coisas sagradas, fincadas com todas as forças na personalidade deles. Ele pode estar disposto a morrer por si mas nunca estará disposto a abandonar...

- O Clube – Quem nasceu Benfiquista (ou Sportinguista ou Boavisteiro) morre Benfiquista, seja o que for que lhe aconteça entre nascer e morrer, e pode vir a Giselle Bundchen que o Benfica há-de sempre estar em primeiro lugar no seu coração.
A Mãezinha – Bem, em segundo. Em primeiro, vem sempre a mãezinha. Quem tenha mãezinha, claro. Com os homens, não há meio termo: ou são orfãos (há os que não são verdadeiramente mas são tecnicamente orfãos, que costumam ser ainda piores que os que têm Mãezinha) ou a Mãezinha é que manda. Desiluda-se: a mãezinha é que faz os melhores pastéis de bacalhau, com a mãezinha é que se almoça ao Domingo, ao sábado à tarde é preciso ir passear a mãezinha mais o Lúcifer (é o caniche da mãezinha), e a mãezinha pode dizer coisas do estilo ‘ó Zezinho estás mesmo magrinho, é essa lambisgóia que não trata de ti’, a mãezinha pode mandar bitaites sobre tudo, do nome dos filhos às tortas de laranja, a mãezinha pode dizer que acha que Carlota é nome de cadela e que Sebastião só houve um e deu mau resultado, a mãezinha pode dizer que as crianças estão malcriadas e o chão está sujo, e a mãezinha é a única pessoa à face da Terra que poderá pronunciar as palavras “o Makukula falhou lamentavelmente aquele penalti”. Palavras que, aliás, nunca ninguém ouviu nem ouvirá na boca da mãezinha…

- Os Amigos – Há sempre um Zé Pedro, que andou com ele no secundário. O Pimpão, que tocava baixo na banda. O Tozinho, que deu em gestor e agora é o Dr. Ataíde e tem uma secretária loura com quem toda a gente acha que ele engana a mulher mas não engana porque é gay mas só o melhor amigo é que sabe. E depois há os adventícios: os da cerveja ao sábado, os do futebol ao Domingo, os do trabalho, dos copos, das farras, do body-pump e do congresso de máquinas agrícolas onde ele foi há 6 anos. Não interessa. São todos para a vida. E para a morte, evidentemente.

Também nunca aceitarão mudar de…

Até podiam mudar, com um bocadinho de boa vontade, mas se pensarmos bem, será assim tão importante começar uma guerra por causa da…

- Música – É na música que se revela toda a sua alma de guerreiro: tudo o que não tenha batuques, é para meninas. Tudo o que tenha cheirinho de melodia, é para meninas. Tudo o que seja cantado, é para meninas. Há os executivos que gostam da Diana Krall, mas só porque ela é loura e não se despenteia enquanto canta e têm uma secreta fantasia de levar a Diana Krall à festa da empresa (levar a Diana Krall para a cama não lhes interessa nem metade que levá-la à festa da empresa). Os outros, quem lhes tira She Wants Revenge, Rammstein, ou Rage Against the Machine, tira-lhes tudo. Se estiver muito muito muito apaixonado (para aí na primeira semana) até pode ser que vá arrastado a um concerto do Roberto Carlos, mas de óculos escuros e sempre a olhar para todos os lados, não vá alguém reconhecê-lo. Se quiser ir de t-shirt com a cara do ídolo e uma tira azul-fosforescente na testa a dizer ‘Roberto É o Rei’, leve um grupo de amigas e esqueça os homens.

- Carro – Para nós, um carro é um carro. Para os homens, um carro é um amigo. E nada se interpõe entre um homem e os seus amigos. E então se tiver mota, pior. Há-de acordar a meio da noite e vir contemplá-la da janela, há-de passar a tarde de sábado a polir as jantes com um paninho de camurça e a ssusurrar-lhe ao, enfim ouvido?, há-de dar mais passeios com ela do que consigo. Habitue-se.

- Playstation – Há-de aproveitar o facto de a mulher estar a tomar banho para jogar Fifa 2008 às escondidas como os miúdos, há-de dizer ‘vai para a caminha, querida, vai que estás com ar cansado’ só para ficar rodando entre galáxias on-line num jogo tipo Guerra das estrelas com up-grade que joga com mais quatro internautas por esse mundo fora, um americano, um japonês, um polaco e um de Odivelas, e é o homem mais feliz do mundo.

O que, com um bocadinho de esforço, até conseguem

Aleluia! Nem tudo são más notícias! Chegámos à parte boa. É agora que ele vai ser um Príncipe! Enfim, alguém que se possa apresentar à avó.

- Roupa – Dá um bocado de trabalho, mas como para eles, geralmente, tanto faz vestir uma t-shirt como outra, a gente dá-lhes outra (desde que não seja cor de rosa) e eles nem percebem que ficam muito melhor, até porque acham que é daquelas áreas em que nós percebemos mais do que eles (e têm razão, o que não é dizer muito). Também se pode pedir-lhes que mudem de corte de cabelo, e alguns até mudam. Até se pode pedir que cortem o bigode (isto é um favor à Humanidade) e até se pode oferecer-lhes uma água de colónia que não cheire a insecticida. Bem envernizadinhos, ninguém diria que têm idade mental de dez anos e meio.

- O Controlo da televisão –Dêem-lhes um sofá e um écran, e estão no paraíso. Não são esquisitos, e papam tudo o que nós vemos na maior das boas-vontades, desde os CSIs de todas partes da América até aos Drs. House, correm todas as urgências dos hospitais de Chicago (costumam adorar isto, porque são todos hipocondríacos) e choram baba e ranho com os hospitais de animais. E cuidado: habituam-se a ver telenovelas com mais facilidade que uma adolescente. Claro que nunca admitiriam aos amigos que vão ficar em casa a ver ‘Desejo Proibido’, mas prepare-se, porque lá chegará o dia em que vai querer sair com ele e ele há-de atirar ofendido: “Nem penses. Hoje é o dia em que a Maria Paula vai dizer ao Reginaldo que o filho não é dele.”

- A Barriga – Com um bocado de sorte, passam a ir ao ginásio connosco, principalmente se lá andarmos, não tanto para perder a barriga como para fiscalizar a concorrência. Geralmente, acontece uma de duas coisas: ou desistem ao fim de duas semanas, ou ficam daqueles ‘freaks’ do Body-Attack que fazem a aula com dois relógios de calorias um em cada pulso e vão à net ver as coreografias novas e se correspondem com outros ‘freaks’ de todo o mundo e quando você diz que aquilo até está fácil franzem as sobrancelhas e respondem: “Deixa-me decorar os passos e aprender a coreografia e tu já vais ver o que é que é fácil’. Acham todos que dois passos à frente e um atrás é uma coreografia.

- A Ajuda – Pronto, é verdade: eles acham que ‘ajudar em casa’ é levar o cão à rua e pôr o lixo lá fora. Mas com muita persistência, até se pode treiná-los para qualquer coisa. Claro que a iniciativa é sempre nossa, por eles dormiam nos mesmos lençois até ao Euro 2012, mas enfim…

- A Comida – Com os amigos continuam a comer feijoada e perceves, mas em casa nós é que mandamos porque somos nós que vamos ao supermercado, quando eles só se lembram de ir ao Clube del Gourmet comprar patê de texugo turco e ostras congeladas.

- A Decoração – Há uns muito picuinhas que vão connosco às lojas e fazem finca-pé porque sempre sonharam ter cortinados roxos na sala como a família Adams, mas homem que é homem nem vê onde é que está sentado, e se for um sofá aos coraçõezinhos com a cara da Betty Boop tudo bem, desde que seja um sofá.

sábado, 17 de abril de 2010

A ELECTRICIDADE VAI DOMINAR O MUNDO

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

AO QUE PARECE, depois da revolta falhada do dia 1, as pessoas resolveram descansar um bocadinho.
Pelo menos o meu pai.
Hoje até fechou a livraria mais cedo para ir à Academia Real das Belas Artes, à inauguração de uma exposição de um pintor chamado Silva Porto, que já morreu há anos mas de quem ele gosta muito.
Diz-se que o Rei também lá vai estar.

- Quero ver a recepção que vai ter — disse o meu pai.
Como a inauguração prometia ser calma, a minha mãe também foi, muito contra a vontade da minha avó:
- A menina sabe muito bem que, no seu estado, não deve sair de casa!

(Lá vinha outra vez aquela coisa do “estado”, um dia destes tenho mesmo de saber do que é que se trata)
Mas a minha mãe disse que isso eram ideias antigas, sentia-se bem, e não ia perder a inauguração por nada.
Antes de saírem, o meu pai perguntou-me:

- Já leste o novo Salgari que te trouxe da livraria?
- Está quase…- murmurei, sabendo que ainda não tinha passado do princípio.
- Depois falamos — disse ele.

O Emílio Salgari é dos meus autores preferidos, mesmo ao lado do Júlio Verne.
O meu pai até nem gosta muito, porque diz que aquilo é pirataria a mais, e nem o facto de um dos heróis ser português o consegue comover.
Mas desta vez o novo livro de Salgari não trata de Sandokan, nem de Gastão de Sequeira, nem da ilha de Mompracém.
Desta vez o livro passa-se…imaginem! — no ano 2000!
Eu nem consigo imaginar o que seja o ano 2000. Para já, a minha avó garante que é nesse ano que o mundo vai acabar.
E então nesse ano 2000, conta o Salgari, a electricidade vai dominar o planeta, e acontecem coisas extraordinárias: as paredes da nossa casa transmitem imagens do mundo inteiro, e a electricidade é tanta que as pessoas andam sempre a correr e em choque permanente.
E como há muitas máquinas para substituir as pessoas, há muitos trabalhadores desempregados. E quando eu estava à espera de greves e bombas e estas coisas que agora acontecem por causa do desemprego - não!: os trabalhadores transformam-se todos em agricultores e pescadores!
E não há revoluções, nem ditaduras, nem guerras. E, em vez de exércitos, só há um destacamento de bombeiros, para acudir a alguma catástrofe natural – ou, enfim, a um ou outro anarquista que tenha sobrado do passado…E quais os castigos para esses? Apanham com um jacto de água electrificada, e depois são conduzidos num trem eléctrico até ao Pólo Norte, para trabalharem, até ao fim das suas vidas, pelo bem do planeta.
E se por acaso nesse tempo ainda houver criminosos, daqueles que roubam e assaltam casas, então esses são enfiados em prisões flutuantes e, ao mais leve sinal de revolta, umas bombas, estrategicamente colocadas, mandam todos para o fundo do mar.
Tudo por causa da electricidade que vai dominar o mundo no ano 2000.
Mas como ainda estamos em 1910, espero que a república, quando vier, não venha carregada de electricidade.

«JN» de 17 Abr 10

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Todas acreditamos no amor romântico

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Por Catarina Fonseca


EMBORA nos estejam sempre a dizer que ‘isso só acontece aos outros’, a verdade é que todas acreditamos em milagres… amorosos. Quer a prova? A gente apresenta uma data delas. Atreva-se a dizer que consigo é diferente.

Mesmo o mais racionalista, o duro dos duros, o que sabe perfeitamente que o amor romântico é um mito, poucos resistem aos seguintes gestos:

- Abrir um mail com o título ‘encontre a sua alma gémea’ – Mesmo que esteja farta de dizer a si própria que não existem almas gémeas, quando muito existem almas ligeiramente irmãs, ou enfim, primas, quem é que não resiste a saber se por acaso, do outro lado do mar ou aqui mesmo à porta, não está o verdadeiro amor da nossa vida?

- Fazer um teste de compatibilidades entre signos – Mesmo quem não acredita em signos, mesmo quem está farta de dizer a toda a gente que não tem nada a ver com o Escorpião que as estrelas lhe destinaram, a verdade é que fazemos sempre aqueles testes que dizem que, se lhe calhou um Aquário na rifa, esqueça, porque o Aquário não atura um Escorpião. A gente lê e fica tristíssima, embora continue a não acreditar em nada disso, e até chegamos a pôr a hipótese de nos concubinarmos com um Touro qualquer, que pelo menos astralmente é mais dado a escorpiões.

- Achar que ele nos lê a mente – É um dos mitos mais perigosos do amor romântico, e no entanto toda a gente parte do princípio de que é verdade. Achamos que, só porque ele nos ama de paixão, sabe exactamente o que nos vai na alma em cada minuto da nossa existência, e se isso não acontece é porque afinal não nasceu para nós.

- Acreditar no amor à primeira vista – Mesmo que nunca tenha acontecido connosco, sabemos que há-de haver um dia em que vamos bater os olhos nele e cair um raio do céu e ouvir vozes, muitas vozes, que nos dizem que sim, que finalmente aconteceu.

- Acreditar nos anúncios – A gente sabe que aquelas cenas do rapaz a correr pela rua fora à chuva e à neve atrás da rapariga, ou dos namorados a atirarem-se do prédio, ou o clássico dos clássicos do desconhecido que nos oferece flores (que saudades!) são só para vender carros, ou telemóveis, ou desodorizantes, mas no fundo no fundo achamos que mais telemóvel menos telemóvel aquilo ainda vai acontecer connosco, qualquer dia.

- Acreditar que a Barbie anda mesmo com o Ken - Embora toda a gente saiba que ela tem um caso com o Action Man.

- Acreditar que o amor existe mesmo, nós é que não procuramos direito – Como diria o Luis Fernando Veríssimo. Aliás, na maioria das vezes nem procuramos, deixamo-nos estar sentadinhas à espera que ele nos desça pela chaminé, como o Pai Natal, mesmo que nem sequer se tenha chaminé…

- Acreditar que o Hugh Grant existe mesmo, nós é que nunca fomos a Hollywood – Mas quando lá formos vai acontecer o mesmo que com a Júlia Roberts em ‘Notting Hill’, a gente vai entrar numa livraria e ele vai lá estar. Que o Hugh Grant não trabalha em livrarias é um pormenor sem a mínima importância.

sábado, 10 de abril de 2010

FALHOU A REVOLUÇÃO E A TOURADA

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

DESDE QUE NESTA CASA só se pensa em revoluções, andamos todos muito apoquentados. Como diz a minha avó, “só tenho coisas que me ralem”.
Desconfiamos de toda a gente.
Qualquer barulho é uma bomba a rebentar.
Se um rato de madrugada se lembra de atravessar o soalho, é logo uma vozearia (“ai minha Nossa Senhora que está um ladrão a arrombar a porta!”) e o prédio inteiro acorda.
Aqui há dias a Rosa ia já de vassoura em punho para dar em cima de quem não parava de bater à porta da cozinha — quando lhe apareceu pela frente a Senhora Felismina, trouxa à cabeça, aos berros:

- Ó santinha, dá-me lá uma ajuda, senão ainda a roupa se me rebola toda pelas escadas!

A Senhora Felismina é quem lava a nossa roupa. Todas as semanas a vem buscar, todas as semanas a vem trazer.
Vive em Caneças, e aproveita a carroça que vem distribuir as bilhas de água a Lisboa.
Caneças fica longe, não há estrada, e por isso as carroças têm de sair de madrugada para se meterem naqueles caminhos de cabras e chegarem cá de manhã. Muitas lavadeiras aproveitam a viagem, e chegam cá doridas de tanto solavanco.
Atrás da Senhora Felismina vem o aguadeiro entregar as bilhas.
Cá em casa só bebemos água de Caneças. A minha mãe diz que ela cura anemias e males de estômago. Se cura ou não, não sei, nunca me lembro de ouvir o Dr. António José receitá-la no consultório.
A Rosa pediu desculpa, escondeu a vassoura, e conferiu com o rol se todas as peças de roupa que tinham ido para lavar tinham voltado lavadas. A Senhora Felismina é mulher séria, mas nunca fiando.
E por causa da revolução, o meu pai até se esqueceu de me levar ao Campo Pequeno.
Todos os anos, no domingo de Páscoa, começa a temporada das touradas na Praça do Campo Pequeno.
Desde miúdo que não falho uma — apesar dos protestos da minha avó, que tem sempre muita pena dos touros e diz que só um ateu é que pode festejar o domingo de Páscoa daquela maneira.
O meu pai, como sempre, faz que não é nada com ele.
Às vezes, quando vou à livraria, oiço-o discutir o assunto com alguns amigos que passam por lá para dois dedos de conversa. E há os que o censuram e lhe dizem que as touradas são próprias de talassas e que ele, como bom republicano, devia lutar pela sua abolição, ao que o meu pai responde que tourada é arte, e arte não tem nada a ver com monárquicos ou republicanos, ao que eles dizem que tem-- e nunca mais dali saímos.
Este ano veio a Páscoa, e o meu pai desculpou-se com o mau tempo.

- Mas tu queres apanhar uma pneumonia? Não vês como chove?

Chovia torrencialmente, é verdade — basta ver as fotografias que vieram há dias na “Ilustração Portuguesa”.
Mas o motivo não foi esse.
O que acontece é que o meu pai no domingo de Páscoa já andava muito apoquentado: uma semana depois, foi o tal dia da revolução que era para ser, mas falhou.
Falhou-lhe a revolução, falhou-me a tourada.
Só tenho coisas que me ralem.

«JN» de 10 Abr 10

quinta-feira, 8 de abril de 2010

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A Lei das Compatibilidades: Descubra o Homem que Nasceu para Si

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Por Catarina Fonseca

AO CONTRÁRIO
do que nos ensinaram, não há almas gémeas absolutas. Às vezes, as almas gémeas dependem da altura da vida em que se está. Saiba quais podem ser as suas melhores escolhas em termos de… romance.

Diga-nos em que situação está, e nós dizemos-lhe para onde dirigir as suas energias:

A Principiante
- Situação: Tem 17 anos, é estudante, mora em casa dos pais. Tem quem lhe lave a roupa e lhe faça a cama, o que não é necessariamente mau. É da geração que já sabe que o Príncipe Encantado não existe, mas nunca comeu morangos sem açúcar, e portanto ainda não sabe até que ponto a inexistência de um príncipe é dramática.

- Par incompatível: Sabe aquele amigo do seu pai? O que tem nome de Rei Mago, o Baltazar, o que aparece ao fim da tarde e lá fica a um canto da sala a fumar e a beber um resto de conhaque dourado num copo de borda metálica, tão metálica como os olhos dele que a apanham de vez em quando lá do fundo, muito de vez em quando como quem não quer a coisa, e de vez em quando vem ter umas conversinhas para o seu lado, ronronando como um gato, assim umas coisas de adultos sobre jazz pós-moderno e Kafka, coisas que se viessem de uma pessoa normal lhe entravam a si por um ouvido e saíam pelo outro, que também é o que acontece agora mas também não interessa nada o que ele está a dizer. Sabe quem é? Esqueça. Saia da sala quando ele entrar. Vá ao cinema com o João Filipe. Vá ouvir jazz pós-moderno fechada no seu quarto.

- Par compatível: O João Filipe, seu colega de carteira (ou enfim. De mesa pré-fabricada) pode parecer absolutamente inviável: partilham o mesmo autocarro (ele a cair de sono e a cheirar a ténis velhos, você a tentar ter um ar digno apesar de àquela hora nem sequer saber como é que se chama a sua mãezinha), ele dá-lhe graxa para que você lhe empreste os apontamentos de química, e o mais romântico de que se consegue lembrar é passar-lhe uma rasteira e dar-lhe um carolo como prova do seu amor e da sua dedicação. Más notícias: nesta altura do campeonato, é a sua melhor hipótese.

A Desalentada
- Situação: Tem 25 anos, acabou com o seu último namorado e acha que a vida acabou. Entre a sua vida e o deserto de Góbi, parece-lhe que a única diferença é que o deserto ainda vai tendo uns oásis. A sua vida é isto: o emprego de sonho custa a chegar, um amigo do seu pai (não o Gato Baltazar, que fisgou uma sueca e montou uma empresa de produção de eventos em Estocolmo) arranjou-lhe um lugarito de ‘assistente’ num escritório de contabilidade onde você baralha os números e navega pela net com toda a fúria do cargueiro do ‘Speed 2’, apesar de toda a gente dizer que é ‘muito aplicada’.

- Par Incompatível: O Vasco, que é primo da sua amiga Constança e que conheceu numas férias em Vilamoura. O Vasco também é aplicadinho, tirou Economia e Gestão na Católica e não pára de lhe falar em casamento. Ao princípio até parece um Par Compatível, mas cuidado antes de comprar o vestido de noiva: o Vasco há-de desatar a comprar lençóis de linho biológico pela net, depois amua porque a loja não tem o serviço Vista Alegre que ele queria, depois há-de querer convidar 600 pessoas, depois a mãezinha dele há-de dizer que o seu vestido é pindérico e corre o risco de se achar daqui a um ano grávida de gémeos sem saber muito bem como é que se meteu naquilo.

- Par Compatível: O irmão mais velho do João Filipe, que você quase nunca via porque sempre que lá ia a casa ele estava nos treinos de horseball de alta competição ou enfiado no quarto a bater com o lápis da mesa e a estudar engenharia genética de ‘headphones’ postos com os Pixies a berrar muito, e as guitarradas dos Placebo que ele acha que lhe dá um ar cool, ou os ronronanços do Leonard Cohen, que lhe dá um ar ainda mais cool mas de que ele se envergonha secretamente porque acha que é música para meninas. Voltou a encontrá-lo numa festa de amigos e descobriu que ele não só tinha um ar cool como era a sua alma gémea. Quando perceber que não existem almas gémeas, já estará casada com ele. Mas não se preocupe com isso agora.

A Desesperada
- Situação: Tem 35 anos, e das duas uma: ou está desesperada porque acabou de se separar do Paulo Jorge que a deixou sozinha com os gatos nos braços, ou está desesperada porque depois de passar anos em festas de amigos, passeios temáticos, cruzeiros no Douro (sozinha) e chats onde só lhe apareciam criançolas inconscientes à procura de noites escaldantes, percebeu finalmente que o Príncipe Encantado só existia na ‘Bela Adormecida’ e mesmo aí, uma aposta em como era gay.

- Par Incompatível – Com separação ou sem ela, muito cuidado com os ‘homens do desespero’: não se meta em nada a achar que é só ‘para animar’. Os homens que adoram as desesperadas geralmente só querem é copos e curtes. Os que querem qualquer coisa mais séria, nunca a querem com uma desesperada. Portanto, arrisca-se a dar com uma alma que só quer é curtes e copos. Problema: você também diz que o que quer é curtes e copos, mas as mulheres NUNCA querem só curtes e copos, portanto arrisca-se a entrar numa relação em que as duas partes querem coisas diferentes.

- Par Compatível – Como dizia o Luís Fernando Veríssimo, ‘o amor é como a tesourinha das unhas, nunca está onde a gente espera’. Por isso, refreie o desespero. Volte a frequentar as festas de amigos. Com um bocado de sorte, o irmão do João Filipe, que você deixou escapar aos 25, também se há-de estar a divorciar. Com ainda mais sorte, o Baltazar já voltou de Estocolmo (pormenor irritante: tem três filhos suecos, o Lars, a Ingrid, e qual é o outro, o Sven? Todos a falarem como se estivessem num filme do Ingmar Bergman mas pronto). Azar: continua a não querer mais nada do que ronronar-lhe ao ouvido. É capaz de continuar a não ser boa ideia.

A Carente
- Situação: Tem 43 anos e um divórcio traumático aos ombros. Teve de dividir filhos, pratas e DVDs. Foi chato. Principalmente o Sebastião. Teve de lutar pelo Sebastião, porque o seu ex também o queria. Mas ficou com o vinil do álbum ‘Revolver’ dos Beatles. Isso calou-o. O Sebastião agora dorme com a cabeça na sua almofada e passa as noites a ladrar por tudo e por nada, deve achar que é o homem da casa.

- Par Incompatível – Qualquer pessoa com um divórcio igualmente traumático. Quem está recentemente divorciado não tem alma para andar a construir novas relações, eles nem têm alma para lavar a louça quando chegam a casa, quanto mais para se apaixonarem. Só têm alma para desabafarem os seus desgostos, e como você também precisa de colo, vão-se chocar dois divórcios, duas carências, e quatro pessoas. Ah, e esqueça os romances com rapazes de 20 só para fazer ciúmes ao seu ex (ele não está nem aí) ou se sentir 20 anos mais nova. Correm sempre mal, principalmente porque os rapazes de 20 nunca ouviram falar da ‘África Minha’ e não se pode ter romance decente com alguém que nunca viu a ‘África Minha’. Se ele se chama Fábio e o filme preferido dele é ‘O Maneta de Ferro contra a Guilhotina Voadora’, parta para outro.

- Par Compatível – Temos pena, mas não é o Sebastião. O homem certo é aquele que a ama em segredo há anos, à espera que você finalmente visse a Luz e desse um chuto no Luís Miguel. Tristemente, você despreza-o, acha-o um choninhas, e nem sequer sabe que ele existe. Investigue bem. Não se esqueça de olhar por baixo da secretária.

A Impaciente
- Situação: Tem 52 anos. Está sozinha há mais tempo do que leva a aprender mandarim. Mil caracteres de solidão por dia. Há tanto tempo que até já nem liga. Parece que já nada de interessante vai acontecer. Passa o serão no sofá a ler ‘600 Receitas Para Quem Gosta de Cozinhar mas Não Tem Tempo’. Só fala com velhinhos chatos a querem desabafar consigo as suas mazelas, colegas de trabalho que a vêem como uma colega de trabalho, rapazolas que não lhe ligam porque afinal já é uma cota (aliás, se tivesse vinte anos a menos já era uma cota), e a sua filha a querer que você ature as crianças no fim de semana enquanto ela vai em segunda lua-de-mel com o marido para o Choupana Hill, e em resumo, ninguém percebe a mulher fantástica que ali está. Parvos.

- Par Incompatível: A sua filha, que só quer o seu bem, a sua felicidade, e mais um par de braços para manietar o Salvador, o Tomás e o Sebastião (o filho, não o cão) arranjou um jantar a quatro com ela e o marido e mais um amigo do marido. Problema: não tem gracinha nenhuma. Só lhe pergunta se já foi ver a exposição do Berardo. Diz que as lulas lhe dão azia. Os dentes dele gritam por um aparelho desde que ele tinha 14 anos (que já foi há mais ou menos 120). Os abdominais dele gritam por um ginásio desde que ele tinha 18 (que já foi há 116). Ele continua surdo. Metafórica e verdadeiramente falando. E ainda há quem ache que podia ser o homem da sua vida.

- Par Compatível: Como dizem no Canal Odisseia, ‘Abra Sua Mente’. Se Sua Mente não está definitivamente virada para os encantos dos velhinhos nem dos rapazolas nem dos tipos com divórcios traumáticos às costas, pode ser que um dia destes tenha uma surpresa e descubra que aquele seu colega que se oferece para lhe tirar fotocópias para que você não perca o seu rico tempo pode ser o homem da sua vida. Ah, e é verdade: o Baltazar agora é que deve estar no ponto, quando nenhum de vocês está interessado em nada mais sério (é verdade que já fez 75, mas continua charmoso e a beber conhaque com ar de gato se os gatos bebessem conhaque).

sábado, 3 de abril de 2010

AINDA NÃO FOI DESTA…

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".


O MEU PAI NÃO PAROU em casa este fim-de-semana e, no domingo à noite, entrou no escritório com a minha mãe e, passados alguns minutos, chamou-me.

- José Joaquim – disse-me com a voz das horas graves — lembra-te que, se um dia eu faltar, és o homem desta casa.

Fez uma pausa, enquanto a minha mãe se estendia na chaise-longue.

- Entre hoje e amanhã, alguma coisa de muito importante vai acontecer. E seja o que for que oiças, quero que saibas que tudo foi feito para bem do povo, para que mais ninguém viva na miséria, para que toda a gente tenha pão, instrução, liberdade…

De repente lembrei-me do comício do Dr. António José em Sintra e quase sorri. Mas o momento era sério.
Mas acho que só percebi que era mesmo sério quando o meu pai nessa noite não veio dormir, e na segunda-feira o nosso professor nos mandou para casa:

- Está para rebentar um trinta-e-um e eu não quero responsabilidades.

Quando cheguei a casa a minha mãe não parava de chorar, a minha avó não parava de fazer novenas, a Rosa não parava de dar água chalada a toda a gente — incluindo ao Alfredo, que não parava de bater à porta “a contar as últimas”.

- É hoje!
- É hoje o quê? — perguntou a Rosa.
- Mas então o que há-de ser? A revolução, rapariga!

Ela deu um grito:

- A revolução é hoje? Ai minha Nossa Senhora! E o patrão que não está em casa
- Claro que não está! Há-de lá estar com eles…
- Com eles, quem?
- Ora…com os que fazem a revolução! Com os que têm tudo combinado…O meu patrão nem abriu a loja. Também lá deve estar.
- Mas lá…onde?
- E eu sei? Lá…Onde se fazem as revoluções... Se calhar a esta hora já mataram o reizito…
- Tu nem me digas isso!
- Se não for hoje…é um dia destes! Aquele, coitado, não me parece que vá ter longa vida.

Também, segundo diz o meu patrão, a única coisa para que tem jeito é para ouvir missa e namorar francesas…
Foi nessa altura que a minha avó chamou a Rosa, e o Alfredo lá se foi escada abaixo.
Estes têm sido uns dias estranhos.
Quando vou na rua, só se ouve falar de bombas e atentados e greves.
Dizem-se as coisas mais loucas.
Dizem que as ciganas roubam as crianças para lhes tirarem os santos óleos
Dizem que há revoltas entre os marinheiros.
Dizem que a Rainha-Velha endoideceu de vez, e anda a regar as alcatifas do palácio como se estivesse no jardim.
Felizmente o meu pai chegou a casa na segunda-feira à noite.
Não disse nada, sentou-se à mesa de cabeça baixa e de colarinho aberto, e todos entendemos que as coisas tinham corrido mal.

- Deixa lá… - murmurou a minha mãe — não foi desta, será da próxima.

Ele deu-lhe um beijo na testa e, olhando para mim, disse:

- E o menino amanhã vai à escola, ouviu? A revolução precisa de homens instruídos!

E a vida voltou ao normal: o rei (que se calhar até nem deu por nada…) já hoje foi a uma festa no quartel de engenharia – e eu voltei aos juros, aos quebrados e ao “D. Jayme”.
Ainda gostava de saber para que é que a revolução precisa disto.

«JN» de 3 Abr 10