quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

UM PAÍS PEQUENINO

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Por Alice Vieira

DEIXA-SE cair na cadeira que dá para o corredor, há-de dormir a viagem toda, porque está cansada de dias seguidos a subir e descer de aviões, faz rapidamente as contas e em dez dias já entrou e saiu de oito aviões, e ela já não tem propriamente 20 anos. Fora isto mesmo que dissera ao jovem que a viera acompanhar ao aeroporto, e ele atirara-lhe com o habitual “o que interessa é a juventude de espírito”, coisa em que, evidentemente, só os jovens é que acreditam. Ela sorriu e lembrou-se do Rafael, que fugazmente tinha passado pela sua vida e que, nos seus últimos anos, a essa frase respondia sempre “o pior é que a juventude de espírito não me ajuda a subir escadas”.
“Qualquer dia também estou a dizer o mesmo”, pensa, enquanto põe o cinto de segurança, e tira o livro da mala, embora saiba que nem o vai abrir. Sente-se embalada por aquele bruaá característico dos aviões, choros de crianças, risos, línguas várias, o barulho dos motores, está quase a fechar os olhos.
É então que ouve a passageira do lado perguntar-lhe, num inglês arrastadamente americano, se é de Portugal ou se vai de visita.
É uma velhota loira platinada, a pele esticada de botox ou outra coisa semelhante, olhos piscos dos muitos dry-martinis ou gin-tónicos. Deve ser das que vivem na Califórnia, entre praias, palmeiras, t-shirts de papagaios e velhas missões mexicanas transformadas em hotéis.
Diz-lhe que sim, que é portuguesa e regressa a casa, e espera que a conversa fique por ali, dormir é tudo quanto deseja, e sonhar com os presépios com que vai inundar a sala assim que chegar, e o cheiro a canela a espalhar-se por todos os cantos.
Mas a americana não se cala, e sem ela perguntar nada vai dizendo que não gosta de sair de Santa Mónica, mas a filha e os netos vieram para este fim do mundo (“sorry!”, acrescenta logo), e é o primeiro natal que estão longe, por isso decidiu-se a apanhar o avião. De Portugal sabe apenas que “é um país muito, muito pequenino”, não é verdade?
Ela esteve para lhe dizer que era ainda mais pequenino que Santa Mónica, mas teve medo que o sentido de humor californiano não chegasse até aí e contentou-se em acenar com a cabeça.
A velhota vai embalada na conversa, a filha também lhe disse isso mesmo, embora não se falem muito, e por isso ela tem tanta curiosidade, ela nunca esteve num país pequenino, a bem dizer nunca saiu dos EUA que, evidentemente, não conhece totalmente porque esses sim são um país muito, muito grande.
De repente, encara-a com os olhos ainda mais piscos, e pergunta: “Como é viver num país onde todos se conhecem? Sim, porque vocês devem conhecer-se todos, how nice, how nice…!”
Ela tem vontade de lhe dizer que ainda o país dela não era país e já nós andávamos a fazer pela vida por terra e mar, conhecidos e desconhecidos – mas desiste. Para quê. É agora que vai mesmo dormir, não aguenta mais, o patriotismo que fique para depois.
Só acorda no fim da aterragem.
Por um daqueles acasos da vida, há uma funcionária em terra que a conhece e lhe vem dar beijinhos e desejar feliz Natal – enquanto a velhota passa por elas, e desaparece na porta de saída, abanando a cabeça e repetindo “how nice, how nice!...”
Para quê tirar-lhe as ilusões, ainda por cima em tempo de paz entre as pessoas.

ACTIVA de Dezembro de 2011

sábado, 3 de dezembro de 2011

UMA SEMANA NO CORVO

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Por Alice Vieira

12 DE OUTUBRO, 4ª FEIRA

CHEGUEI ao fim do mundo.
Mal entrei neste quarto que vai ser a minha casa até à próxima semana, deixei-me cair em cima da cama, e ainda não percebo o que me espera. A única coisa que sei é que, desta estada terá de sair, mais tarde, o texto para um livro de fotografias do Jorge Barros.
Que me impôs um único requisito: que eu, que nada sei do Corvo, assim continuasse até aqui aterrar.
Nem me reconheço: eu que, de cada vez que parto em viagem, faço sempre um rigoroso trabalho de casa, leio livros, e googlo-me a uma velocidade impressionante – desta vez chego a uma terra de que apenas sei o nome.
Mas já percebi que, a haver um fim do mundo, é aqui.
No mesmo avião, e também para o Corvo, veio D. Manuel Martins, antigo bispo de Setúbal. Diz-me que o padre da terra, que ele nem conhece, precisou de ir tratar-se aos EUA e lhe telefonou a pedir que o substituísse uma semana. E ele veio.
Sou recebida na pista por um senhor que acarta com a minha mala, e logo me enfia para dentro de um carro que já viu melhores dias. Diz-me que é em casa dele que vou ficar, porque Outubro é o mês em que a ilha se enche de ornitólogos em cata de aves em trânsito, e é difícil arranjar camas vagas. De repente dá uma gargalhada, apontando para as minhas mãos desesperadamente em busca do cinto de segurança;
- Não há! Aqui no Corvo não se usa. Nem capacetes nas motorizadas, nem nada disso…
Olha para as nuvens ameaçando chuva e diz:
- O melhor é eu levá-la já ao vulcão. A gente aqui não se pode fiar no tempo, e se começa a chover e vem nevoeiro, nunca mais vê nada.
Percebo que o Jorge lhe deu instruções sobre aquilo que eu tenho de ver, e lá vamos, por caminhos estreitos e cheios de curvas.
No cimo do monte, o espectáculo é deslumbrante. A cratera de um vulcão, extinto há séculos, mancha os diversos tons de verde da vegetação e abre-se em várias lagoas, salpicadas de pequenas ilhas. É nas lagoas e nas turfeiras que fica armazenada toda a água das chuvas, que se infiltram na terra e vão circulando em ribeiras subterrâneas. Por isso por aqui se diz que “no Corvo a água cai do céu mas não nasce!”
Não há ninguém por perto. Barulho, só o do vento e, muito ao longe, o bater das ondas na falésia.
- Não se pode nadar nas lagoas?
Encolhe os ombros. Poder, pode, mas ninguém vem para aqui, “em tempos ainda vinha para aí uma alemã tomar banho, mas já morreu”.
Quero organizar o trabalho para os dias seguintes, e peço um táxi para me levar de manhã a dar uma volta pela ilha.
Um sorriso de olha-para-a-esperta-que-vem-do-continente, e logo a resposta: no Corvo não há táxis, não há transportes públicos, e a frota automóvel existente resume-se a meia dúzia de carros particulares, ou nem tanto. Depois há motorizadas, e algumas carrinhas de caixa aberta, onde as pessoas levam o necessário para irem trabalhar as terras.
E uma tabacaria para comprar jornais?
Jornais não há, tabacarias também não.
E juro que lhe senti um leve orgulho na voz quando, a seguir a todas as minhas perguntas (“e lojas? E mercado? “, etc) ele ia respondendo “não há, não há…”
Indica-me onde vou tomar as refeições todos os dias e ,já vai a sair ,quando lhe peço que me dê uma chave da casa, para eu não estar sempre a incomodar quando entro ou saio.
Novo sorriso:
- No Corvo não há chaves. As portas ficam todas no trinco.
Estou no fim do mundo.

Dia 13, 5ª feira
O CAFÉ onde tomo as refeições fica no fundo da rua. De resto, o Corvo tem apenas duas ruas, não há que enganar.
Saio cedo e a vista abarca tudo o que há para ver: a escola, os correios, algumas casas, o posto médico, pequenas hortas, a igreja, os bombeiros, a pista do aeroporto.
No café a televisão está sempre acesa, mas ninguém olha. A Teresinha é quem põe e dispõe. Só há meia dúzia de mesas onde se possa beber um café porque, segundo informa, “depois as pessoas ficam aí sentadas a manhã toda, e quando é hora do almoço não as podemos mandar sair.”
Habituada a trabalhar em cafés, começo a pensar onde é que aqui poderei instalar a minha tralha habitual… Mas por hoje quero apenas fazer visitas de reconhecimento, ontem foi tudo a correr.
Ao almoço (parece que toda a gente come no café da Teresinha), D. Manuel Martins recorda-me que hoje é dia de procissão. Apesar de já ter estado no Corvo, D. Manuel admira-se sempre da pouca frequência nas missas, e da pouca alegria: “ninguém canta!”.
Não é hoje que as coisas mudam: depois da missa das oito da noite, a procissão percorre rapidamente as duas ruas da vila, já quase no fim alguém se lembra de entoar alguns cânticos, mas o entusiasmo não é grande, até porque a maioria é muito velha, as mulheres arrastam-se com dificuldade, faltam-lhe forças para aquele caminho de pedras salientes, quanto mais para cantar.
À cabeça da procissão, D. Manuel pára muitas vezes para olhar para trás. Numa procissão normal, o padre vem sempre no fim. Mas também aqui deve ser diferente. E por isso ele olha para trás, e faz pausas, para que ninguém fique pelo caminho.
“Este padre é pequenino, mas anda tão depressa…”, murmura uma velhota ao meu lado, dobrada sobre a bengala.

Dia 14 – sexta-feira
SAIO cedo, e meto pés ao caminho. Há nuvens anunciando chuva.
Meto-me por trilhos que vão sempre dar a outros trilhos, muitos deles com as falésias a pique a impor respeito. Ouve-se o canto dos pássaros, que pássaros serão estes, meu Deus? (de súbito a recordação da voz do meu marido, “ai, lisboeta de Arroios, que não distingues um melro de uma cotovia!…”), apanho folhas e flores de que também não sei o nome, para as secar entre as páginas de um livro – mania que me ficou da infância – e vou olhando as poucas espécies florestais que reconheço – cedro, fetos, urzes, canaviais… E por toda a parte o negro das rochas de basalto.
A chuva começa, e regresso à estrada, com receio de me perder, mas de repente oiço a buzina de um carro, e o presidente da Câmara a acenar-me para que entre. Sorri quando lhe pergunto como sabia que eu andava por ali: “nesta terra tudo se sabe.”
Janto no sítio do costume, a ver na televisão o Benfica ganhar por dois a zero ao Portimonense. Sou a única a olhar para o ecrã. Os homens estão todos lá fora, a fumar.
Benfica e Portimonense devem dizer-lhes tão pouco.

Dia 17 — 2ª Feira
AFINAL, de que precisamos para viver? Isto perguntava-me eu, nas primeiras horas de aqui chegar – convencida de que iria encontrar, no meio deste isolamento, uma sociedade ainda não contaminada pelos males do consumo.
Rapidamente me fazem descer à terra: estou na sociedade mais desenfreadamente consumista que conheço. Tudo se compra - por encomendas de catálogo, pela lancha que vai às Flores e ao Faial, pela net. A dependência da electricidade é total. A televisão domina tudo. Todas as casas têm arca frigorífica, televisor último grito, computador, microondas, etc. Se algum tem – todos os outros compram a seguir. E há sempre alguém que vende qualquer coisa: fico a saber, por exemplo, que a Teresinha vende Bimby’s que são, ao que parece, um sucesso.
Durante o fim de semana tive longas conversas com o médico da vila e com o presidente da Câmara. Separadamente, claro. Num cenário a lembrar vagamente o de D. Camilo e Peppone, nos livros de Giovanni Guareschi…
Ambos me dão informações necessárias: tirando as casas da vila, onde vivem os cerca de 300 corvinos, não há casas em mais nenhum sítio da ilha. Ninguém se aventurou nunca a morar longe do porto. Surgem por vezes, no verde da paisagem, umas rudimentares construções de pedra que em tempos abrigavam as vacas, mas que agora servem apenas para guardar alfaias.
Aqui ninguém passa fome e, se não há ricos, também não há pobres.
Nunca aqui oiço falar de crise.
Dizem-me que cada corvino tem um lote de terreno, e uma vaca. E que a esmagadora maioria vive do subsídio: se tem vaca, recebe subsídio para tratar dela; se não tem, recebe subsídio para compensar a falta.
E assim se vive.
Trabalha-se, pesca-se, à noite vê-se a telenovela, e os mais novos bebem cerveja nos bombeiros.
São um povo estranho. Fechado, pouco simpático, sem tradições de convívio. Em tempos antigos, os homens juntavam-se no Outeiro onde discutiam (e resolviam) problemas comuns.
E ainda não há muitos anos aqui havia um clube de futebol, um coro, um grupo de teatro.
Tudo isso acabou.
Mas há um moderníssimo (e horrível) Pavilhão Multiusos – fechado quase sempre.

Dia 18, 3ª feira
ESTOU de partida. Preciso de mais umas voltas pela ilha, antes de o avião me levar amanhã de volta.
D. Manuel regressa também.
De todas as conversas que mantivemos, há uma que não me sai da memória:
“Eu acho que esta gente não vai muito à igreja porque não sente necessidade. Eles passam a vida neste isolamento todo, nesta lonjura, neste silêncio, nesta imensidão, estão todos os dias em contacto com Deus. Para quê irem à igreja à procura de um Deus formatado?”
Quero acreditar que sim.
Mas também não me sai da cabeça aquela frase do Raul Brandão, no seu texto sobre o Corvo: “se não fossem cristãos, matavam-se uns aos outros.”
Ele esteve por cá em 1924. Seria o Corvo muito diferente do que é hoje?
Acho que já encontrei o fio condutor do texto para o livro do Jorge.
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«JL» de 30 Nov 11