sexta-feira, 22 de abril de 2011

O SR. PEDROSO DE PROVIDENCE

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Por Alice Vieira

MAL ENTRO na loja e logo ele me diz “já a vi, já sei quem é e o que faz!”- abrindo de imediato o jornal da comunidade portuguesa, que conta a minha vida e o que ando a fazer desde que aterrei na costa leste dos EUA.

Há 50 anos que o Sr. Pedroso está atrás do balcão do seu “Friends Market”, na Brooks Street, de Providence. Sempre só ele, sozinho, na aparente fragilidade dos seus 90 anos, atendendo a freguesia.

Eu tinha andado pela cidade, feliz por ter encontrado todas as referências que procurava - casas, lojas, pontes, a estação – de uma série (“Providence”) que, meses a fio, a televisão passara, e agora , de repente, dava por mim a aterrar numa nesga de Portugal, numa loja que vendia tudo.

Prateleiras do chão ao tecto, atulhadas de garrafões de azeite, de óleo, garrafas de vinho, conservas, batatas, cebolas, trens de cozinha, detergentes, perfumes, sabonetes Ach Brito e Patti, galos de Barcelos, Nossas Senhoras de porcelana, bibelôs de gesso, tachos de barro, bolos, chocolates, canetas, blocos de papel, discos de vinil (“Vicente canta Afonso Lopes Vieira”…), números desgarrados da “Caras”,da “Visão”, e da “Maria”.

Mas do que verdadeiramente o Sr. Pedroso se orgulha (para lá dos portugueses ilustres que já entraram na sua loja, “até o Saramago!”) é dos dicionários de português, a cheirarem a novo, acabados de chegar, já conforme o acordo. Entristece-o que, na televisão da sua pátria, se fale tão mal :
- Ensine-os que não podem dizer “há três anos atrás!” Havia de ser há três anos à frente, não?
É o erro que mais lhe custa ouvir, fica logo com vontade de protestar. Prometo que farei tudo o que estiver ao meu alcance — e ele enche-me de amêndoas (“são da Confeitaria da Ajuda, já viu?”), de canetas, de calendários.

Vou já a sair, quando o ouço : “ah, e também vendo o “Jornal de Notícias”, mas a esta hora já não tenho nenhum.”

E sorri, na certeza de ter feito bem o seu trabalho de casa.
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«JN» de 22 Abr 11

sexta-feira, 15 de abril de 2011

DIAS ÚTEIS

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Por Alice Vieira

TODAS as manhãs, nestes últimos dez anos, fazia o mesmo percurso.
Com excepção para os dias de folga.
Aí mudava um bocadinho, embora os passos fossem sensivelmente os mesmos, nos mesmos lugares. Via apenas outros rostos, os dos dias de semana estavam já, àquela hora, encaixados nos seus guichés, nos seus balcões, atrás de secretárias.
Nos dias de folga era ligeiramente diferente, o rapaz da leitaria dizia “hoje vem mais tarde”, ela respondia “é o meu dia de folga”, sempre, durante estes dez anos que ali tem vivido.
Entretanto o rapaz envelheceu dez anos, tal como ela, até já tem um filho de 7 anos, soube-o pela porteira, porque ela não gosta de grandes intimidades. Sempre falou apenas o que era necessário falar. Nem os vizinhos consegue encaixar nos seus andares, é “bom dia” ou “boa tarde” se os encontra no elevador, e não mais que isso.
Há dez anos o rapaz da leitaria nem sequer tinha barba e fazia uma voz esganiçada quando ela entrava, “bica e croissant para a D.Laura!”.
Às vezes não lhe apetecia nada bica e croissant, mas tinha a sensação de estar a cometer qualquer pecado se, em vez disso, pedisse meia de leite e um queque.
- Vem hoje mais tarde! — diz-lhe o rapaz da leitaria
E ela já não responde “é o meu dia de folga”, porque a partir de agora todos os dias são de folga.
Começa a pensar em quantos cafés bebeu, em quantos croissants comeu nestes anos todos, mas desiste, não são pensamentos próprios para a sua idade, e na sua idade só se devem ter pensamentos úteis, que sirvam para alguma coisa.
Tal como as conversas.
- Como vai o seu filho na escola? - pergunta ao rapaz, na hora de pagar, e logo se admira das suas palavras, que necessidade tinha de entrar em intimidades .
- Lá vai…- respondeu ele, admirado também. (Mais tarde dirá ao patrão, “a velhota do 54 estava hoje muito esquisita”, e o patrão há-de responder, “é da idade, coitada! qualquer dia dá-lhe um badagaio e vai desta para melhor”)
Ela levanta-se da mesa, olha para o relógio como sempre tem feito, embora, a partir de agora não haja horários a cumprir, e procura as chaves dentro da mala.
Atravessa a placa, resmunga qualquer coisa quando vê o caixote do lixo ainda na rua, entra em casa.
Fecha a porta e encosta-se a ela.
- E agora? – diz para si própria.
É então que ouve o telefone.
Ninguém lhe costuma telefonar para o fixo, está quase decidida a nem atender, mas muda de ideias e corre até à sala, e do lado de lá perguntam “é a D. Elisa?”, e ela ri e responde, quase nem se reconhecendo, “não, é a D. Laura, não serve?”
E a pessoa deve ter sentido de humor e nenhuma pressa, ou se calhar também está pela primeira vez em casa e não no emprego, porque ainda fica uns minutos à conversa, rindo de coisa nenhuma.
Quando desliga, a casa parece-lhe cheia de barulhos que não reconhece. Quem estará no andar de cima com aspirador àquela hora?
Então volta a vestir o casaco, e vai ao café, e desta vez há-de pedir meia de leite e um queque, e há-de saber a história toda do filho do rapaz — tudo, para conseguir esquecer a sua própria casa, à luz da manhã de um dia útil.

«ACTIVA» de Abril 2011

sexta-feira, 8 de abril de 2011

UM CURSO SUPERIOR

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Por Alice Vieira

- Ó PROFESSORA, que prazer levá-la no meu táxi!”

Depois de um dia de muito trabalho, agrada-me ser recebida tão efusivamente, embora emende o tratamento, e diga que não sou professora, mas ele ri-se e diz “claro que é, então eu não sei!, até já foi à escola dos meus netos!”
Desisto, enquanto ele fala, olhando de vez em quando pelo retrovisor a ver se estou a segui-lo.
Conta-me a vida toda, desde os tempos difíceis de infância numa aldeia perto da Guarda, onde só se lembra de ter calçado sapatos no dia em que foi fazer o exame da 4ª classe, até à ida para África e o regresso em 75.
Tudo para me explicar o amor pela sua professora, e o desgosto que sentiu quando ela morreu, “igual ao que senti pela morte da minha mãe”, garante.
“Porque, ó Professora!, a nossa professora de instrução primária era mesmo importante! Agora é que já ninguém lhes liga nada, mas no meu tempo – olha pelo retrovisor e corrige--”no nosso tempo, a escola era uma coisa séria. E o que a gente aprendia!...”
Volta a olhar pelo retrovisor e eu aceno com a cabeça, claro, uma 4ª classe tirada há 50 e tal anos era outra coisa, e ele dá quase um salto, “outra coisa?? Era um curso superior! A gente saía a saber tudo! A gente fazia problemas complicados, a gente sabia rios, sabia serras…”
Nova piscadela pelo retrovisor.
“Ó professora, ainda se lembra das serras? Era assim, deixe cá ver… Peneda, Suajo, Gerês, Arga…” E lá vai ele serras acima, serras abaixo, entre curvas e contracurvas, e de repente estou a chegar a casa, e ele “Nogueira, Bornes, Marão…”, e eu “é já aí nessa esquina!”, e ele “Mogadouro, Moncorvo, Gralheira…”, e eu, “é mesmo aqui!”, e ele lá trava às quatro rodas, felizmente não há ninguém atrás de nós, pago, dá-me o troco, deseja-me muitas felicidades e, enquanto abro a porta, remata: “Leomil, Marofa e Lapa!”
Já vou a entrar em casa e ele, da janela do táxi, ainda grita “Era um curso superior, ó Professora!”
Certamente já a atacar as serras de outro sistema.

«JN» de 8 Abr 11