Por Alice Vieira
NEM SABIA há quanto tempo não entrava naquele
jardim, perto da casa onde nascera. Ou antes: do sítio onde nascera, já que a
casa há muito se transformara num stand de automóveis.
Uma vez passou
por lá e ficou feita parva a olhar para a montra, pensando se o lugar da cama
da mãe seria ali onde então se exibia um Aston Martin em todo o seu esplendor,
ou, se calhar, lá mais para o fundo, onde se situava a secretária do vendedor .
Riu-se e o
vendedor, lá de dentro, franziu os olhos, certamente nunca devia ter visto
ninguém rir diante da montra, e ela desceu logo a rua, não fosse ele chegar à
porta e perguntar “deseja alguma coisa?”, e ela “nasci onde o senhor está
sentado.”
Mas nem mesmo
nessa altura se lembra de ter entrado no jardim.
De resto o
jardim estava então quase em
ruínas. Os jornais traziam notícias e fotos,acabando todos a
insultar a Câmara, que não fazia o que lhe competia.
Nunca mais se
lembrara do assunto. O seu lugar de nascimento dizia-lhe muito pouco, até
porque, segundo lhe contavam, tinha saído de lá aos quinze dias de idade.
Mas agora os
netos andavam num curso de férias ali perto, e não havia outro sítio onde ela
pudesse passar o tempo até serem horas de os ir buscar.
Alegrou-se com a
recuperação do jardim (“ jardins abandonados só ficam bem nos poemas românticos
e nas fotografias a preto e branco”, dizia muitas vezes) mas a dor de cabeça,aliada
a um cansaço que ultimamente se agravava, quase a impedia de ver tudo como
desejaria. O sol feria-lhe a vista, e teve de se sentar numa das cadeiras da
pequena esplanada debaixo do enorme jacarandá, sem flor mas com sombra.
Em seu redor – e
isso lembra-se de ser “imagem de marca” daquele bairro – muitos mendigos, por
ali arrastando miséria e sujidade.
No meio do
jardim, um parque infantil, onde as crianças gritavam e os adultos ainda
gritavam mais do que elas, “Ruben, não caias! Ó Sónia,se atiras outra vez a
bola lá para fora, a avó não ta vai buscar! Ai valha-me Deus, que são horas de
ir fazer o almoço!”
Os gritos ainda
lhe aumentam a enxaqueca (Odeia a palavra mas, quando está mesmo muito
atacada é só assim que se lhe refere,
para tudo ser ainda pior..) Deixa cair a cabeça entre as mãos, fecha os olhos,
deseja que aquelas duas horas passem depressa.
De repente ouve
uma voz muito perto de si, sente um estranho bafo rente à sua cara:
“Precisa de
alguma coisa?”
Abre os olhos e
dá de caras com um dos mendigos.
“Quer que lhe vá
buscar um copo de água ao quiosque?”
Nem consegue
responder e já ele se arrasta até ao quiosque, onde há um jarro e copos no
parapeito, e vê-o encher cuidadosamente o copo até acima.
E ela não quer
ver a sujidade das mãos, e da barba e do cabelo, e não quer sentir o cheiro de
há pouco, não quer mesmo mas não consegue, e ele traz o copo até à sua mesa,
devagarinho para que não se entorne.
“Beba que lhe
vai fazer bem”
E ela a olhar para
as mãos dele, para sujidade das unhas, para os farrapos daquilo que um dia terá
sido um casaco, e ele, estendendo-lhe o copo:
“Vá, beba”.
Agarra no copo e
bebe a água toda de uma vez.
Ele sorri e ela
sorri também.
Quando se lembra
de lhe perguntar o nome, já ele tinha desaparecido. Vê-o, ao ,longe, a tirar
qualquer coisa de um caixote do lixo.
São horas de ir
buscar os netos.
Há-de
contar-lhes esta história. Até para eles aprenderem a maneira mais rápida e eficaz
de curar uma dor de cabeça.
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«ACTIVA» de Setembro
2012