Por Catarina Fonseca
AGORA JÁ NÃO SAÍMOS a dois, mas a três (e quando não a quatro) – eu, tu e o teu telemóvel. Desde quando é que começámos a precisar tanto de nos ‘partilhar’?
Toda a gente que me conhece sabe que eu sou uma facebookiana convicta. Mas esta coisa que há agora de só existirmos enquanto existimos para os outros assusta-me. No outro dia liga-me uma amiga minha a contar esta cena comovente: uma tarde destas de verão foi com um admirador beber um copo a uma esplanada. Vieram as bebidas, e ela vê-o sacar do telemóvel e tirar uma fotografia ao copo do daikiri. Passam-se minutos e minutos, e ele não larga o telemóvel. Às tantas, ela lá pergunta: - Olha lá, tu estás no Facebook? - E estava! Tinha postado a foto do copo mais uma legenda do tipo ‘Ai que lindo pôr do sol, como eu estou aqui bem’, e estava na converseta com os amigos e amigas, sem lhe ligar nenhuma a ela.
‘O que mais me deprimiu’, dizia ela, ‘é ele achar que devia tirar a foto ao copo...’
Percebi nos dias seguintes, quando contava esta história, que estes menages à trois – eu, tu e o teu telemóvel – eram recorrentes, e que a cena de postarem a foto do copo enquanto tomavam o dito era tão comum que só podia mesmo ter escapado à pessoa mais distraída do universo (eu). A partir daí, fui a desconfiança em pessoa. Desenvolvi um reflexo de Pavlov sempre que via um telemóvel. Nos dias seguintes, rosnava quando avistava um Nokia. Fez-me meditar nesta necessidade de nos ‘partilharmos’ constantemente com os outros. Sempre me ensinaram que existimos sozinhos – myself and my Creator – (eu e o meu Criador, dizia o Dr. Johnson, que é um fantástico exemplo para uma ateia, mas vocês percebem) Existimos e somos nós inteiros sem precisar do olhar dos outros. Agora já não...
A cena do telemóvel, além de recorrente, tem ‘adendas’ ainda mais requintadas. “Eu e o meu namorado estávamos completamente apaixonados”, contou-me outra amiga. “Até que, em pleno fim de semana romântico, ele me fez essa cena do telemóvel. Achei estranho, não me perguntes porquê. Cheguei a casa, e criei um alter ego no Facebook. Ele ‘amigou-me’ logo, claro que sem saber que era eu. Então perguntei-lhe se era comprometido. Resposta dele: Sou, mas não hei de ser por muito tempo...”
Fiquei a pensar até que ponto esta facilidade de comunicações – telemóveis, facebooks, mailes – nos está a afastar das conversas difíceis. Conheço várias pessoas que foram despedidas por mail – o mesmo para todas, note-se – sem que o patrão se tivesse dado sequer ao trabalho de lhes ligar, quanto mais ter uma conversa cara a cara (e ainda teve a lata de acrescentar: ‘Apareça quando quiser, está em sua casa’ e não era uma piada).
O ‘cara a cara’ sempre nos assustou, mas agora temos possibilidade de fugir dele, e fugimos sem que isso nos tire o sono. Já não há pessoas, há ‘recursos humanos’ – duas palavras que, não sei se repararam, são mutuamente exclusivas: quando somos um ‘recurso’, qual é a humanidade possível? Como dizia a Lídia Jorge, já não há museus, há ‘equipamentos culturais’. Podem dizer-me que isso são só palavras. Mas são as palavras que constroem o nosso mundo.
Cansada de pensar, que está demasiado calor para isso, fui ‘partilhar’ tudo isto com a minha amiga Tininha, que é uma alma sábia. Ela ouve (ou talvez não), levanta uma sobrancelha e recita: ‘Toda à vida fui pastor, toda a vida guardei gado, e tenho uma cova no peito ai ai de me encostar ao cajado.’
É o que dá tentar discutir sociologia com insensíveis.
AGORA JÁ NÃO SAÍMOS a dois, mas a três (e quando não a quatro) – eu, tu e o teu telemóvel. Desde quando é que começámos a precisar tanto de nos ‘partilhar’?
Toda a gente que me conhece sabe que eu sou uma facebookiana convicta. Mas esta coisa que há agora de só existirmos enquanto existimos para os outros assusta-me. No outro dia liga-me uma amiga minha a contar esta cena comovente: uma tarde destas de verão foi com um admirador beber um copo a uma esplanada. Vieram as bebidas, e ela vê-o sacar do telemóvel e tirar uma fotografia ao copo do daikiri. Passam-se minutos e minutos, e ele não larga o telemóvel. Às tantas, ela lá pergunta: - Olha lá, tu estás no Facebook? - E estava! Tinha postado a foto do copo mais uma legenda do tipo ‘Ai que lindo pôr do sol, como eu estou aqui bem’, e estava na converseta com os amigos e amigas, sem lhe ligar nenhuma a ela.
‘O que mais me deprimiu’, dizia ela, ‘é ele achar que devia tirar a foto ao copo...’
Percebi nos dias seguintes, quando contava esta história, que estes menages à trois – eu, tu e o teu telemóvel – eram recorrentes, e que a cena de postarem a foto do copo enquanto tomavam o dito era tão comum que só podia mesmo ter escapado à pessoa mais distraída do universo (eu). A partir daí, fui a desconfiança em pessoa. Desenvolvi um reflexo de Pavlov sempre que via um telemóvel. Nos dias seguintes, rosnava quando avistava um Nokia. Fez-me meditar nesta necessidade de nos ‘partilharmos’ constantemente com os outros. Sempre me ensinaram que existimos sozinhos – myself and my Creator – (eu e o meu Criador, dizia o Dr. Johnson, que é um fantástico exemplo para uma ateia, mas vocês percebem) Existimos e somos nós inteiros sem precisar do olhar dos outros. Agora já não...
A cena do telemóvel, além de recorrente, tem ‘adendas’ ainda mais requintadas. “Eu e o meu namorado estávamos completamente apaixonados”, contou-me outra amiga. “Até que, em pleno fim de semana romântico, ele me fez essa cena do telemóvel. Achei estranho, não me perguntes porquê. Cheguei a casa, e criei um alter ego no Facebook. Ele ‘amigou-me’ logo, claro que sem saber que era eu. Então perguntei-lhe se era comprometido. Resposta dele: Sou, mas não hei de ser por muito tempo...”
Fiquei a pensar até que ponto esta facilidade de comunicações – telemóveis, facebooks, mailes – nos está a afastar das conversas difíceis. Conheço várias pessoas que foram despedidas por mail – o mesmo para todas, note-se – sem que o patrão se tivesse dado sequer ao trabalho de lhes ligar, quanto mais ter uma conversa cara a cara (e ainda teve a lata de acrescentar: ‘Apareça quando quiser, está em sua casa’ e não era uma piada).
O ‘cara a cara’ sempre nos assustou, mas agora temos possibilidade de fugir dele, e fugimos sem que isso nos tire o sono. Já não há pessoas, há ‘recursos humanos’ – duas palavras que, não sei se repararam, são mutuamente exclusivas: quando somos um ‘recurso’, qual é a humanidade possível? Como dizia a Lídia Jorge, já não há museus, há ‘equipamentos culturais’. Podem dizer-me que isso são só palavras. Mas são as palavras que constroem o nosso mundo.
Cansada de pensar, que está demasiado calor para isso, fui ‘partilhar’ tudo isto com a minha amiga Tininha, que é uma alma sábia. Ela ouve (ou talvez não), levanta uma sobrancelha e recita: ‘Toda à vida fui pastor, toda a vida guardei gado, e tenho uma cova no peito ai ai de me encostar ao cajado.’
É o que dá tentar discutir sociologia com insensíveis.
«Activa» de Agosto 2011