Por Alice Vieira
JÁ NÃO sabia as vezes que tinha
feito, desfeito e refeito a mala.
- Raio de tempo… --murmurou.
O marido largou o jornal e as palavras cruzadas e sorriu:
- Ninguém te entende…Se chove é porque chove, se faz sol é porque
faz sol…
Deixou-se cair no sofá. Não era nada disso e ele sabia.
- O que eu queria era o tempo certo. Fiável. Dantes, quando íamos
de férias no verão, levávamos roupa leve, um guarda-chuva, vá lá, por mera
precaução, mas nunca enchíamos a mala de camisolas, casacos, meias…
No verão anterior nunca conseguira largar o casaco de fazenda.
Mesmo as pessoas daquela praia do norte, habituadas a pouco calor, diziam que
nunca se lembravam de um tempo assim, o vento a levar tudo atrás, tempestades
de areia, as pessoas dias inteiros enfiadas em casa. Lembra-se
até que a Goretti, amiga de há muitos anos, lhe tinha telefonado a dizer “se
quiseres lareira, arranja-se!”
Só por vergonha não aceitou.
- O que eu queria…
- O que tu querias – riu o marido -- era ser criança, confessa!
Quatro meses de férias, um verão que nunca mais acabava, as ”férias grandes”
dizíamos nós, sem preocupações nenhumas…Mas isso, minha querida, isso era o
paraíso, e já devias saber que, quando nos tornamos adultos, os paraísos
desaparecem.
Regressou às palavras cruzadas, repetindo:
- Era mesmo o paraíso.
Ela voltou a enfiar mais umas camisolas na mala.
Sempre que o verão aparecia
no calendário (e, cada vez mais , só mesmo no calendário) vinha-lhe aquela
estúpida saudade da infância, ela que nunca tinha saudades de nada, muito menos
da infância, ficava amarrada à recordação da quinta, do grande plátano diante
da casa, da ruazinha orlada de cedros que levava ao muro que dava para a outra
quinta, onde vivia a família do António.
O António vivia sempre enfiado lá em casa, lia os números atrasados
da “Mecânica Popular” que os irmãos dela colecionavam e iam deixando na quinta,
quando chegava a hora de voltar para Lisboa, e fazia coisas complicadíssimas
com as peças do Meccano.
- Hei de ser engenheiro…-- garantia ele
Mas houve um dia em que ele largou a revista e o Meccano e lhe
disse:
- Vamos dar uma volta.
Os pais tinham saído, a caseira andava distraída no galinheiro, os
irmãos tinham pegado nas bicicletas e desaparecido.
Foi na ruazinha dos cedros que então o António lhe perguntou:
- Queres ser minha namorada?
E ela sem saber o que responder, porque acabara de fazer 12 anos e
nunca tinha tido um namorado.
Mas durante aquele verão foram namorados.
E foi um verão muito quente, e os dias eram enormes, e as noites
parecia que ardiam.
Até que um dia o pai chegou muito zangado a casa, porque tinha
ouvido não sei o quê no café, mandou a mãe fazer as malas e voltaram para
Lisboa mais cedo do que era habitual. Nunca o pai lhe disse o que acontecera,
mas a verdade é que ela nunca mais voltou a ver o António, que nas férias
seguintes já não morava naquela casa ao lado do muro da rua dos cedros.
Às vezes dá consigo a pensar no que lhe terá acontecido, se será
engenheiro, se terá emigrado, se estará casado e pai de família. Como era
possível as pessoas desaparecerem assim das nossas vidas.
Deve ter suspirado com muita força porque o marido perguntou:
- Disseste alguma coisa?
Não respondeu.
Pensava ainda na palavra
“paraíso”.
-
«Activa» de Julho 2012
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