domingo, 15 de maio de 2011

MAIO QUERIDO MÊS DE MAIO

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Basta às vezes um pormenor, ou uma antiga recordação, para um mês ser diferente dos outros

Por Alice Vieira

MAIO nunca era um mês igual aos outros.
De resto, pensando bem, -- e tirando os meses de Junho, Julho e Agosto que se juntavam na palavra maravilhosa e única que era “Verão” - nenhum mês era igual aos outros.
Janeiro era o frio e aquela tola crença de que um ano novo poderia ser diferente.
Fevereiro era o carnaval mesmo quando o carnaval não era em Fevereiro.
Março eram os aniversários da família inteira, meu Deus, nunca conhecera caso igual, irmãos, primos, tios, cunhados, toda a gente tinha nascido em Março. Era no que davam os ardores de Junho, lembrava-se de ouvir dizer em casa desde os tempos em que nem percebia o que isso queria dizer.
Abril eram as saudades revolucionárias que voltavam, e os infindáveis “e tu lembras-te?” , e a risota descambando na fatal pergunta” onde é que estavas a 25, ó camarada!”, a família dividindo-se entre os que estavam gloriosamente nos seus postos de trabalho, e os que estavam, não menos gloriosamente, a faltar à escola.
Depois com Setembro vinha o cheiro das vindimas, e do mosto a fermentar nas cubas, e o sobrinho génio de 12 anos logo a explicar por que é que os Estados Unidos deviam levantar o embargo. “O embargo a quê?, perguntava sempre alguém, “ o embargo a todas as cubas deste mundo, ora essa!” , e as pessoas calavam-se, com pena que não fosse já Outubro.
Porque Outubro era assim uma espécie de Janeiro antecipado, o início de muita coisa, das escolas, embora agora as escolas até começassem mais cedo, e os planos para uma vida melhor e mais saudável (ginásio, brócolos a todas as refeições, cigarros largados de vez).
Novembro era a passagem para o natal de Dezembro, as listas já a serem planeadas, os projectos das festas, a grande antecipação da maior festa do ano, a única que a fazia esquecer maus momentos, zangas, separações.
Pelo meio do calendário ficava Maio, “Maio, querido mês de Maio, em breve voltarás”, como ela dizia sempre, rindo por nunca ter entendido a razão de aquele mês lhe ter ficado tão encalhado na memória, ainda agora, não há manhã nenhuma em que não acorde a trautear aquela música, e a voz de D. Aurora ao ritmo do metrónomo em cima do piano, “pizzicato!,, Margarida! não deixes descansar os dedos em cima das notas, Margarida! não adormeças, é Maio que vai chegar, Margarida!”, e ela ralada.
Um dia D. Aurora chegou mais cedo, e encontrou-a afadigada ao piano, tentando acompanhar-se num tango de Gardel. Ainda hoje se lembra, os dedos nas teclas, “dó, ré, ré, mi, fá, mi, ré, mi, fá, sol”, e a voz em tremidos,“ por una cabeza /de un nobre potrillo/ que justo en la raya/ afloja al llegar”…e D. Aurora aos gritos como se a sala estivesse em chamas, e todos a correrem para ver o que tinha acontecido, mas não tinha acontecido nada, era só ela a trocar Schuman e o querido mês de maio por aventuras pouco consentâneas com meninas da sua idade e posição.
Gardel foi para o lixo, e o Maio-querido-mês-de-Maio-em-breve-voltarás voltou imediatamente ao seu lugar de sempre.
Com pizzicatos que ela nunca foi capaz de respeitar, e acordes que os dedos não decoraram nunca.
Até que por fim a família e D. Aurora desistiram dela.
Mas o mês de Maio tinha ficado para sempre contaminado.

«ACTIVA» de Maio 2011

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