Por Alice Vieira
AQUILO andava a matraquear-lhe na cabeça,
dias e noites a fio, ela nem acreditava nessas coisas de sonhos e presságios, e
mais não sei o quê, mas a verdade é que tinha de haver qualquer razão, não
podia ser por acaso que uma pessoa, de repente, desatava a recordar um filme
visto há mais de 50 anos, nem sequer um grande filme, nada de “ we’ll always
have Paris” ou “you can whistle, can you?”, nem sequer “me tarzan, you jane”,
filme anódino de que nem recordava o título.
Até tinha ligado ao
Francisco a perguntar que filme seria, mas ele não lhe deu grande ajuda,
preocupado em arranjar verbas para o novo projeto.
A bem dizer, ela não se recordava de nada. Nem dos atores, nem da
história. Nada de nada, a não ser aquela cena (seria no princípio da história?
Seria no fim?) e aquela palavra, continuamente repetida: “fica, fica, fica!”.
Vê a cena nitidamente, e a preto e branco. A mesa da cozinha, os
pais, os três filhos, e o que estava para ser adotado. Lembra-se que era um
miúdo muito complicado, muito difícil de aturar, e muito doente (que doença é
que não recordava, mas andava de muletas), e aquela era a altura em que se ia
decidir se ele ficaria a viver com eles ou não. Havia um jarro para onde cada
um tinha deitado um papelinho com o seu ”voto” : “stay” (fica) ou “go” (vai).
Depois, um deles (já não recorda qual),entregou a jarra ao miúdo, para que ele
desdobrasse os papelinhos e lesse a sentença.
O miúdo olha para os papelinhos mas não reage.
“Só sei ler termómetros”, murmura.
Então, sem qualquer troca de palavras, sem sequer uma troca de
olhares, uma das outras crianças faz o trabalho. Pega nos papelinhos e vai
lendo em voz alta, à medida que os desdobra, “stay…stay…stay…” – enquanto a
câmara foca o que realmente está escrito em todos: “go…go… go..”
Lembra-se de ter chorado que nem uma madalena a ver aquilo. Quase
tanto como com a morte da mãe do Bambi.
Mas agora já não é criança, e não entende por que, de repente,
aquilo não lhe sai da cabeça.
Foi então que ele ligou.
Ela teve dificuldade em conhecer-lhe a voz, mas de repente
lembrou-se de que o Sporting tinha ganho, e ele devia estar em casa de amigos a
festejar, e já devia ter bebido um pouco mais, como sempre fazia, no tempo em
que ainda viviam juntos.
“Se eu tivesse vergonha na cara nem lhe respondia”, pensou, mas a
verdade é que lhe respondeu, como se nada se tivesse passado naqueles anos
todos em que ele não dera sinal de vida.
E ele, com a voz doce que o álcool sempre lhe dava, a dizer coisas
parvas, a perguntar por amigos de há anos, e ela só a ver a cena do filme, e a
repetir “vai…vai…vai…”,mas lá bem dentro dela a vontade de dizer “
fica…fica…fica…” , e ele nem merecia nem nada, não era doentinho nem andava de
muletas nem ia ser adotado.
Mas pela janela vinha o cheiro das laranjeiras do quintal, e era verão,
e o mundo estava todo lá fora.
Acabaram por combinar um jantar lá em casa ( “fica…fica…fica…”)
para dali a dias.
Deu consigo a rir que nem uma doida e, depois dos beijinhos da
praxe e do “ligo amanhã”, tinha tantas saudades tuas”, desliga, abre o computador
e manda um mail ao Francisco:
“ainda está de pé o convite para escrever a tal telenovela?”
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In “Activa”, Junho 2012
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In “Activa”, Junho 2012
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