Por Alice Vieira
ERA SEMPRE a mesma coisa, estava pior que os
cãezinhos de Pavlov, e já tinha tido mais que tempo de se esquecer de tudo
isso.
Toda a gente morta há já um ror de anos, e ela
sempre a lembrar-se do mesmo.
A rapariga a deitar-lhe o chá na chávena e ela,
mesmo sem querer, a recusar, “não, jasmim não!”
É por isso que lá em casa as pessoas dizem que
ela é alérgica ao jasmim, coisa que a nora, vegetariana de nascença, não
entende e, nos primeiros anos de pertencer à família, ainda protestava “ nunca
vi ninguém alérgico ao jasmim!”.Como ninguém nunca lhe respondeu, acabou por
desistir. Mas, ao fim destes anos todos, ainda a olha com desconfiança, e abana
a cabeça de cada vez que entram num restaurante chinês e ela recusa o chá.
Alergia. Claro. Que outra explicação poderia dar que os
outros aceitassem sem lhe chamarem doida?
Mas sabe que nunca poderá esquecer aqueles enormes dias de
verão, a voz cantada de Joaquina (Quininha, era assim que elas todas chamavam
àquela tia mais nova, naquele tempo em que as meninas usavam diminutivos e
laços na cabeça), eles todos na esplanada diante da praia, à espera de se irem
vestir para o jantar.
Era também no tempo em que as meninas acompanhavam a família
nos hotéis de verão e tinham de se vestir a preceito para o jantar.
E pôr novas fitas no cabelo.
Dia e noite o ar tinha sempre o mesmo cheiro.
Cheiro a jasmim, explicava Quininha.
Um cheiro que rebentava de todos os jardins, que entrava nas
pessoas, que se entranhava na roupa, que se misturava com as gargalhadas de
quem acreditava que era impossível envelhecer um dia.
Quininha dizia então:
“O jasmim é que é o culpado das desgraças que por aí
acontecem.”
Ela era muito pequena e não percebia por que é que a tia
dizia aquilo, e por que é que as irmãs mais velhas desatavam a rir. Desgraças
eram desgraças, e na catequese estavam sempre a repetir que Deus castiga quem
se ri das desgraças dos outros.
Quininha sorria e continuava na dela:
“Este cheiro a jasmim é o diabo…Quando entra em nós, já não
podemos fazer nada...”
Uma vez ela olhou para a tia tão fixamente que esta achou-se
na obrigação de explicar melhor, tia é tia.
“ Nunca te chegues perto, Joaninha! Nunca! O cheiro do
jasmim é veneno!”
“Veneno dos que fazem muito mal?”
“Veneno dos que matam”.
E as irmãs riam, riam, e caíam as fitas do cabelo, e a mãe
fingia que não ouvia, e a avó, tentando disfarçar um sorriso, olhava para
Quininha e murmurava:
“ Ai, rapariga, não tens mesmo juízo nenhum…”
Depois passaram muitos anos, as pessoas foram
descobrindo que afinal se envelhecia, que o mundo não era já aquele imenso
jardim de verão diante do mar, com o cheio a jasmim a prolongar a felicidade.
As pessoas foram morrendo, outras nascendo. E
ela, instintivamente, recuando sempre, quando se falava em jasmim.
Como os cãezinhos de Pavlov.
Um dia,
no verão, disse para a filha:
“O jasmim é que é o culpado de muitas desgraças
que acontecem!”
Mas os tempos (e as filhas) eram diferentes. E
Elsa respondera que a comunicação social, essa sim, essa é que era a culpada de
toda as desgraças.
Nunca mais falou em jasmim.
A não ser para dizer que é alérgica, quando
tentam encher-lhe a chávena de chá.
-
In “Activa”, Maio 2012
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