Por Alice Vieira
E
DE REPENTE a casa voltou a ficar silenciosa.
De um momento para o outro, os objetos
regressaram todos ao seu lugar habitual, o piano fechou-se, deixou de haver
sapatos largados pelo meio da casa de banho e dos quartos, acabaram-se as
risadas à meia noite (“meninos! Já deviam estar a dormir há que horas!”), o
frigorífico readquiriu o seu ritmo pacato e parou de ser esvaziado de cinco em
cinco minutos, a despensa readquiriu o seu ar honesto e saudável, sem pacotes
de batatas fritas nem garrafas de coca-cola, os livros de histórias encontraram
de novo o seu lugar na estante, os “Simpsons” e a “Family Guy” desapareceram
dos serões televisivos,
E a casa voltou ao que era, antes de os
netos todos terem chegado para se apoderarem dela durante um mês inteiro.
Olho para os quartos, para a cozinha,
para o corredor – e acho que a casa se deve ter sentido muito bem.
Durante este mês, ela deve ter pensado
que tinha finalmente regressado ao antigamente da nossa vida, quando havia
sempre gente a chegar e gente a partir, e a voz do meu filho, pequenino, a
perguntar logo de manhã ao meu ouvido “mãe, temos hóspedes?”
A seguir ao 25 de Abril de 1974, o ritmo
da casa serenou.
Quer dizer: a casa ficou, a partir dessa
altura, a pertencer menos aos adultos e mais às crianças – e raro era o dia de
anos em que, no fim da festa, eu não tivesse de ligar aos pais, a pedir que os
deixassem cá ficar a dormir. (Aqui tenho de partilhar a responsabilidade com o
meu marido, que inventava grutas de lobos na sala, fazia jogos de futebol no
corredor — acabando toda a gente a desenhar ou a escrever o que lhe passasse
pela cabeça numa parede mágica que havia reservada para isso mesmo. Hoje,
lavada e pintada desde que o meu filho foi para universidade, é uma parede
igual às outras…)
A Ana Rita ficou célebre até hoje (em
que já deve ser mãe de filhos crescidos…) por cá ter dormido quase uma semana,
até que foi preciso o pai vir pôr ordem naquilo e arrastá-la de cá por um
braço...Quase todos os anos encontro a tia na Feira do Livro, e recordamos
sempre essa odisseia…
Mas antes de 1974, os tempos eram muito
difíceis, e raro era o dia em que não nos batiam à porta amigos que precisavam
de cá ficar uma noite, duas noites, sabiam lá eles e nós quantas noites… Às
vezes partiam de manhã cedo, e nunca mais tínhamos notícias deles.
O quarto do fundo estava sempre
disponível (lembras-te, Rogério? Lembras-te, Isabel? Lembras-te, Daniel?
Lembras-te, Armindo? e por aí fora…) e,
quando não estava, havia sempre uma cama vaga, ou chão livre para nele se
estenderem colchões-camas.
Uma noite, o Armando bateu à nossa
porta.
Eu nunca tinha visto o Armando.
Conhecia-o apenas dos textos que ele mandava para o suplemento “Juvenil” do
jornal “Diário de Lisboa”, onde eu trabalhava.
Quer dizer: do Armando, as únicas coisas
que eu sabia era que escrevia muito bem, e que vivia nos Carvalhos, perto do
Porto.
Ele à porta e eu sem saber quem era
aquele que, em hora tão pouco apropriada, me batia ao ferrolho.
Ele, “sou o Armando”, e eu só a pensar
“pelo amor de Deus, vai-te embora, vai-te embora!”, e ele, coitado, só a
repetir o nome e a dizer “desculpa, mas preciso de cá ficar esta noite!”— e a
olhar para mim, estranhando certamente o ar de poucos (de nenhuns…) amigos que
via na minha cara, caramba!, nem um sorriso, nem um “entra amigo, a casa é
tua!”, nada.
O Armando a olhar para mim, e eu,
apoiada à ombreira da porta, só a respirar fundo, a respirar muito fundo, a
respirar fundíssimo.
Afastei-me e fiz-lhe sinal que entrasse.
Ele entrou, e ali ficou, com um saco aos
pés, esperando que eu dissesse alguma coisa.
Passados alguns minutos, e depois de ter
novamente respirado muito fundo, apontei-lhe o armário que ficava mesmo no fim
do corredor:
- Sabes fazer uma cama, não sabes?
Ele acenou que sim.
- Então olha, os lençóis estão ali, o
cobertor também, faz a cama onde quiseres, fica o tempo que quiseres, sai
quando quiseres — que eu tenho de ir já para a maternidade!
A minha filha nascia horas depois.
Acho que o Armando nunca chegou a
conhecê-la – mas, durante anos a fio, nunca se esqueceu de lhe mandar os
parabéns.
Devia ser de tudo isto que a casa tinha
saudades.
Revista “Audácia”, Nov. 12
Sem comentários:
Enviar um comentário