Por Alice Vieira
ESTE
É O Nº 500 da “Audácia”. Este é um número muito especial e, por isso,
estamos todos em festa.
A “Audácia” nasceu em Novembro de 1966 -
o que significa que está quase, quase a fazer 46 anos.
O que significa que os seus leitores
atuais ainda nem eram sonhados quando ela apareceu. E, se calhar, nem a maioria
dos pais.
Em 1966 o mundo era outro. Nós éramos
outros. A maneira de fazer revistas era outra.
Nada destas máquinas sofisticadas que
agora nos poupam tanto trabalho e tantas horas de esforço.
Lembro-me muito bem desse ano de 1966.
Eu tinha 23 anos, um curso acabado há
dois, a família toda a insistir para que eu fosse professora (pois não era para
isso que, segundo toda a gente, eu tinha estudado?), e eu, muito a contragosto,
a ensinar um alemão rudimentar a alunos que queriam seguir Direito e precisavam
de fazer exame de alemão e de ter ao menos 10 para poderem aceder à
Universidade.
Foi a primeira e única vez que eu
ensinei o que quer que fosse a alguém.
Eu já trabalhava no jornal – mas, para a
família, jornalista era profissão que nenhuma menina decente e de boas famílias
poderia escolher.
Jornalista era profissão de homens.
Feios, porcos, sujos e maus.
Mas esse foi o ano em que eu decidi que
era preciso arriscar e não ter medo de escolher o que queria fazer da minha
vida – mesmo que os outros abanassem a cabeça ou me virassem as costas.
Há alturas em que tem de ser assim.
Porque ninguém vive a nossa vida por nós.
E é por isso que, de cada vez que
pronuncio a palavra “audácia”, me lembro da audácia que tive em largar tudo, de
um momento para o outro, nesse ano de 1966: profissão, família, casa, conforto,
segurança, despreocupação.
Tive a audácia de arriscar.
Depois – porque estas coisas acabam
sempre por ser recompensadas…-- tive a felicidade de encontrar alguém, com quem
partilhei quase 40 anos da minha vida, e que também nunca teve medo de arriscar,
quando sabia que estava em jogo a liberdade, a coerência, a justiça, um futuro
que sonhávamos bem melhor.
Pediram-me para hoje aqui falar dele.
Porque Mário Castrim escreveu na
“Audácia” nos últimos anos da sua vida e, por isso, festejar este nº 500 é
também festejar todos os que nesta revista têm trabalhado.
Mas, para mim, é tarefa muito
complicada. É muito difícil falar de alguém de quem estive (e continuo a
estar…) tão próxima.
Basta ler os seus textos – e as crónicas
publicadas aqui na “Audácia” estão, felizmente, reunidas em livro — para se
perceber a pessoa que ele era.
Trabalhou — trabalhámos… - muitos anos
da nossa vida sob a censura.
Aqueles que já nasceram em liberdade têm
dificuldade em entender o que isso era.
O que era não se poder falar nem escrever
sobre aquilo que queríamos.
O que era “o lápis azul” a cortar
páginas de alto a baixo.
O que era vermos completamente deturpado
tudo o que escrevíamos (bastava o “lápis azul” cortar um “não”, por exemplo…)
O que era haver gente cujo nome nem
sequer se podia mencionar.
Muitos foram desistindo. Por cansaço.
Pela sensação de inutilidade. Pelo risco. (Abril vinha muito longe ainda…)
Mas o Mário nunca desistiu. Nem quando o
telefone tocava cá em casa de madrugada, com ameaças. (Ainda hoje me custa
atender um telefone que toca noite dentro…)
Talvez que a infância difícil que teve o
tivesse preparado, e de que maneira, para a luta. A infância -- boa ou má
–molda sempre as nossas vidas.
O Mário entrou para o sanatório do Outão
aos 9 anos de idade – e saiu de lá dez anos depois.
Dez anos de afastamento da família, que
vivia longe, de amigos, da vida normal de uma criança.
Dez anos em que sonhava com livros,
muitos livros que pudesse ler à vontade, que o ajudassem a suportar dias e
noites difíceis.
Acho que a única coisa que pedia, nesse
tempo, eram livros.
Um dia o sanatório foi visitado por um
grupo de dirigentes do Benfica, que iam conversar sobretudo com os miúdos,
tentar, por momentos, fazê-los participar da vida que corria lá por fora.
- O que é que tu gostavas mais que te
dessem? – perguntaram-lhe.
- “A Cidade e as Serras”, do Eça de
Queiroz — respondeu ele.
Imagino o ar espantado da comitiva…
O que é certo é que, dias depois,
chegava ao Sanatório do Outão um caixote com as obras completas do Eça de
Queiroz e do Camilo Castelo Branco.
E esta foi a razão que tornou o Mário
num benfiquista ferrenho até ao fim da sua vida.
E a vontade de nunca se deixar vencer
pela doença foi sempre uma constante: estudou sozinho e pediu para fazer exames
no sanatório, e fez. Quando saiu do Outão, quase com 20 anos, vinha disposto a
ser professor – e foi.
Ainda hoje encontro velhos alunos dele
que vêm ter comigo para me contarem como eram as aulas do “professor Fonseca”.
E depois o jornalismo.
A escrita de livros.
O resto da sua vida.
E isto é o pouco, o muito pouco, que sou
capaz de dizer dele.
O resto é só meu.
Revista “Audácia”, Out.12
Não sei por onde andei nestes dias de dezembro, que não tinha visto esta crónica....
ResponderEliminarMário Castrim deve ter sido uma pessoa realmente PESSOA.
E faz bem em guardar para si o resto.
Beijinho