Por Alice Vieira
OS MORTOS, claro!, os mortos de Novembro! os intermináveis mortos de Novembro — e ela de vermelho.
Podia ter escolhido outra cor, digamos, menos agressiva, menos “espampanante”, diria a mãe...
Adora a palavra “espampanante”, lembra-lhe champanhe a transbordar da flûte.
Meu Deus, os mortos de Novembro, e ela de vermelho e a pensar em champanhe.
Teresa a chamar por ela, a esperar por ela, a mandar-lhe SMS atrás de SMS, “tou cá em baixo”, “desces ou subo?”, “tás muito atrasada?”, e ela de telemóvel na mão sem saber o que responder, porque só tem olhos para o vestido vermelho, logo hoje, por que raio se esqueceu que era novembro, data marcada para pensar nos mortos, única altura em que a irmã se lembrava deles.
Com a morte da mãe (que se fizera enterrar na aldeia natal, a centenas de quilómetros dali) chegara a pensar que tudo isso tinha terminado.
Mas já devia saber que Teresa era igual à mãe.
Vêm-lhe subitamente à cabeça os Dias dos Mortos da sua infância, em que a mãe os levava a todos ao cemitério.
A mãe dizia sempre “Dia dos Fiéis Defuntos”.
Um dia ela perguntou-lhe se havia defuntos infiéis (na escola falavam muito dos “infiéis” com quem D.Afonso Henriques andava sempre à espadeirada), e a mãe deu-lhe um estalo com tanta força que os dedos lhe ficaram marcados na cara durante uma semana. A mãe sempre tivera uma maneira muito própria de responder a perguntas difíceis.
Iam sempre na véspera, porque na véspera é que era feriado e a mãe não trabalhava. Sentava-os em minúsculos banquinhos portáteis, contava-lhes rapidamente a história dos que ali estavam (e que, com o andar dos anos, já todos sabiam de cor) — enquanto tirava do saco um frasco de detergente e se punha a esfregar o mármore das campas, como se não houvesse amanhã.
“O Sr. Salvador está cada vez mais desleixado…” — ouviam-na murmurar.
O Sr. Salvador era o coveiro e quem ali tratava de tudo.
E todos olhavam uns para os outros e riam à socapa, para que a mãe não ouvisse, porque achavam muita graça à ideia de alguém, chamado Salvador, tratar de quem já não tinha salvação possível.
Todos, menos Teresa, evidentemente. Muito direita no banco, e muito séria, Teresa estava ali para sofrer, honestamente, por todos.
Às vezes a mãe até lhe pedia ajuda: “Teresinha, toma o esfregão e limpa aí esse lixo ao pé da “saudade eterna” da placa do tio João Martins”
E a Teresa que, tal como os outros, nem sabia quem tinha sido o tio João Martins, desatava a esfregar, rivalizando com a mãe em suor e dedicação.
Uma vez por ano, na véspera do Dia dos Mortos, Teresa tinha pena dos mortos da família — mesmo que nunca os tivesse visto em vida.
Mesmo que a mãe já não dominasse as suas vidas.
“Amanhã venho buscar-te ao meio-dia”, tinha-lhe dito, num rápido telefonema.
E ela pensara que, num súbito (embora estranho) ataque de saudades, a irmã mais velha quisesse passar o feriado com ela.
Nem se lembrou de perguntar “para quê?”
Ficou contente, até se vestiu de vermelho.
Agora, de repente, tão despropositado.
Faz um esforço para recordar onde estão enterrados os seus mortos, aqueles de que verdadeiramente sente a falta, aqueles cujas campas nunca conheceram as fúrias salvadoras da mãe e da irmã.
E sorri a pensar neles todos, e em como todos eles, à sua maneira, tinham dado sentido à sua vida, e era como se ainda ouvisse as suas palavras, como se ainda sentisse o calor das suas mãos, a alegria das suas gargalhadas.
Novo SMS: “então?”
“Já desço” - responde.
Pega na carteira, fecha a porta, entra no elevador.
Enquanto Teresa estiver a chorar pelos mortos desconhecidos, ela irá em busca dos que lhe pertencem.
Dos que a fizeram feliz.
Dos que merecem o seu vestido vermelho.
.OS MORTOS, claro!, os mortos de Novembro! os intermináveis mortos de Novembro — e ela de vermelho.
Podia ter escolhido outra cor, digamos, menos agressiva, menos “espampanante”, diria a mãe...
Adora a palavra “espampanante”, lembra-lhe champanhe a transbordar da flûte.
Meu Deus, os mortos de Novembro, e ela de vermelho e a pensar em champanhe.
Teresa a chamar por ela, a esperar por ela, a mandar-lhe SMS atrás de SMS, “tou cá em baixo”, “desces ou subo?”, “tás muito atrasada?”, e ela de telemóvel na mão sem saber o que responder, porque só tem olhos para o vestido vermelho, logo hoje, por que raio se esqueceu que era novembro, data marcada para pensar nos mortos, única altura em que a irmã se lembrava deles.
Com a morte da mãe (que se fizera enterrar na aldeia natal, a centenas de quilómetros dali) chegara a pensar que tudo isso tinha terminado.
Mas já devia saber que Teresa era igual à mãe.
Vêm-lhe subitamente à cabeça os Dias dos Mortos da sua infância, em que a mãe os levava a todos ao cemitério.
A mãe dizia sempre “Dia dos Fiéis Defuntos”.
Um dia ela perguntou-lhe se havia defuntos infiéis (na escola falavam muito dos “infiéis” com quem D.Afonso Henriques andava sempre à espadeirada), e a mãe deu-lhe um estalo com tanta força que os dedos lhe ficaram marcados na cara durante uma semana. A mãe sempre tivera uma maneira muito própria de responder a perguntas difíceis.
Iam sempre na véspera, porque na véspera é que era feriado e a mãe não trabalhava. Sentava-os em minúsculos banquinhos portáteis, contava-lhes rapidamente a história dos que ali estavam (e que, com o andar dos anos, já todos sabiam de cor) — enquanto tirava do saco um frasco de detergente e se punha a esfregar o mármore das campas, como se não houvesse amanhã.
“O Sr. Salvador está cada vez mais desleixado…” — ouviam-na murmurar.
O Sr. Salvador era o coveiro e quem ali tratava de tudo.
E todos olhavam uns para os outros e riam à socapa, para que a mãe não ouvisse, porque achavam muita graça à ideia de alguém, chamado Salvador, tratar de quem já não tinha salvação possível.
Todos, menos Teresa, evidentemente. Muito direita no banco, e muito séria, Teresa estava ali para sofrer, honestamente, por todos.
Às vezes a mãe até lhe pedia ajuda: “Teresinha, toma o esfregão e limpa aí esse lixo ao pé da “saudade eterna” da placa do tio João Martins”
E a Teresa que, tal como os outros, nem sabia quem tinha sido o tio João Martins, desatava a esfregar, rivalizando com a mãe em suor e dedicação.
Uma vez por ano, na véspera do Dia dos Mortos, Teresa tinha pena dos mortos da família — mesmo que nunca os tivesse visto em vida.
Mesmo que a mãe já não dominasse as suas vidas.
“Amanhã venho buscar-te ao meio-dia”, tinha-lhe dito, num rápido telefonema.
E ela pensara que, num súbito (embora estranho) ataque de saudades, a irmã mais velha quisesse passar o feriado com ela.
Nem se lembrou de perguntar “para quê?”
Ficou contente, até se vestiu de vermelho.
Agora, de repente, tão despropositado.
Faz um esforço para recordar onde estão enterrados os seus mortos, aqueles de que verdadeiramente sente a falta, aqueles cujas campas nunca conheceram as fúrias salvadoras da mãe e da irmã.
E sorri a pensar neles todos, e em como todos eles, à sua maneira, tinham dado sentido à sua vida, e era como se ainda ouvisse as suas palavras, como se ainda sentisse o calor das suas mãos, a alegria das suas gargalhadas.
Novo SMS: “então?”
“Já desço” - responde.
Pega na carteira, fecha a porta, entra no elevador.
Enquanto Teresa estiver a chorar pelos mortos desconhecidos, ela irá em busca dos que lhe pertencem.
Dos que a fizeram feliz.
Dos que merecem o seu vestido vermelho.
«ACTIVA» de Nov 2010
Olá Alice Veiga, acompanho alguns trabalho teus, e gostava muito se possivel que me esclarecesse uma cronica para mim: O MEU IRMÃO JA TEM NOME.
ResponderEliminar>>interessei-me muito nesta cronica, e gostava que me esclarecesse se possível, porque o irmão de José Joaquim vai se chamar Manoel Alfredo?
Muito Obrigado!
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