quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

UM PAÍS PEQUENINO

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Por Alice Vieira

DEIXA-SE cair na cadeira que dá para o corredor, há-de dormir a viagem toda, porque está cansada de dias seguidos a subir e descer de aviões, faz rapidamente as contas e em dez dias já entrou e saiu de oito aviões, e ela já não tem propriamente 20 anos. Fora isto mesmo que dissera ao jovem que a viera acompanhar ao aeroporto, e ele atirara-lhe com o habitual “o que interessa é a juventude de espírito”, coisa em que, evidentemente, só os jovens é que acreditam. Ela sorriu e lembrou-se do Rafael, que fugazmente tinha passado pela sua vida e que, nos seus últimos anos, a essa frase respondia sempre “o pior é que a juventude de espírito não me ajuda a subir escadas”.
“Qualquer dia também estou a dizer o mesmo”, pensa, enquanto põe o cinto de segurança, e tira o livro da mala, embora saiba que nem o vai abrir. Sente-se embalada por aquele bruaá característico dos aviões, choros de crianças, risos, línguas várias, o barulho dos motores, está quase a fechar os olhos.
É então que ouve a passageira do lado perguntar-lhe, num inglês arrastadamente americano, se é de Portugal ou se vai de visita.
É uma velhota loira platinada, a pele esticada de botox ou outra coisa semelhante, olhos piscos dos muitos dry-martinis ou gin-tónicos. Deve ser das que vivem na Califórnia, entre praias, palmeiras, t-shirts de papagaios e velhas missões mexicanas transformadas em hotéis.
Diz-lhe que sim, que é portuguesa e regressa a casa, e espera que a conversa fique por ali, dormir é tudo quanto deseja, e sonhar com os presépios com que vai inundar a sala assim que chegar, e o cheiro a canela a espalhar-se por todos os cantos.
Mas a americana não se cala, e sem ela perguntar nada vai dizendo que não gosta de sair de Santa Mónica, mas a filha e os netos vieram para este fim do mundo (“sorry!”, acrescenta logo), e é o primeiro natal que estão longe, por isso decidiu-se a apanhar o avião. De Portugal sabe apenas que “é um país muito, muito pequenino”, não é verdade?
Ela esteve para lhe dizer que era ainda mais pequenino que Santa Mónica, mas teve medo que o sentido de humor californiano não chegasse até aí e contentou-se em acenar com a cabeça.
A velhota vai embalada na conversa, a filha também lhe disse isso mesmo, embora não se falem muito, e por isso ela tem tanta curiosidade, ela nunca esteve num país pequenino, a bem dizer nunca saiu dos EUA que, evidentemente, não conhece totalmente porque esses sim são um país muito, muito grande.
De repente, encara-a com os olhos ainda mais piscos, e pergunta: “Como é viver num país onde todos se conhecem? Sim, porque vocês devem conhecer-se todos, how nice, how nice…!”
Ela tem vontade de lhe dizer que ainda o país dela não era país e já nós andávamos a fazer pela vida por terra e mar, conhecidos e desconhecidos – mas desiste. Para quê. É agora que vai mesmo dormir, não aguenta mais, o patriotismo que fique para depois.
Só acorda no fim da aterragem.
Por um daqueles acasos da vida, há uma funcionária em terra que a conhece e lhe vem dar beijinhos e desejar feliz Natal – enquanto a velhota passa por elas, e desaparece na porta de saída, abanando a cabeça e repetindo “how nice, how nice!...”
Para quê tirar-lhe as ilusões, ainda por cima em tempo de paz entre as pessoas.

ACTIVA de Dezembro de 2011

sábado, 3 de dezembro de 2011

UMA SEMANA NO CORVO

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Por Alice Vieira

12 DE OUTUBRO, 4ª FEIRA

CHEGUEI ao fim do mundo.
Mal entrei neste quarto que vai ser a minha casa até à próxima semana, deixei-me cair em cima da cama, e ainda não percebo o que me espera. A única coisa que sei é que, desta estada terá de sair, mais tarde, o texto para um livro de fotografias do Jorge Barros.
Que me impôs um único requisito: que eu, que nada sei do Corvo, assim continuasse até aqui aterrar.
Nem me reconheço: eu que, de cada vez que parto em viagem, faço sempre um rigoroso trabalho de casa, leio livros, e googlo-me a uma velocidade impressionante – desta vez chego a uma terra de que apenas sei o nome.
Mas já percebi que, a haver um fim do mundo, é aqui.
No mesmo avião, e também para o Corvo, veio D. Manuel Martins, antigo bispo de Setúbal. Diz-me que o padre da terra, que ele nem conhece, precisou de ir tratar-se aos EUA e lhe telefonou a pedir que o substituísse uma semana. E ele veio.
Sou recebida na pista por um senhor que acarta com a minha mala, e logo me enfia para dentro de um carro que já viu melhores dias. Diz-me que é em casa dele que vou ficar, porque Outubro é o mês em que a ilha se enche de ornitólogos em cata de aves em trânsito, e é difícil arranjar camas vagas. De repente dá uma gargalhada, apontando para as minhas mãos desesperadamente em busca do cinto de segurança;
- Não há! Aqui no Corvo não se usa. Nem capacetes nas motorizadas, nem nada disso…
Olha para as nuvens ameaçando chuva e diz:
- O melhor é eu levá-la já ao vulcão. A gente aqui não se pode fiar no tempo, e se começa a chover e vem nevoeiro, nunca mais vê nada.
Percebo que o Jorge lhe deu instruções sobre aquilo que eu tenho de ver, e lá vamos, por caminhos estreitos e cheios de curvas.
No cimo do monte, o espectáculo é deslumbrante. A cratera de um vulcão, extinto há séculos, mancha os diversos tons de verde da vegetação e abre-se em várias lagoas, salpicadas de pequenas ilhas. É nas lagoas e nas turfeiras que fica armazenada toda a água das chuvas, que se infiltram na terra e vão circulando em ribeiras subterrâneas. Por isso por aqui se diz que “no Corvo a água cai do céu mas não nasce!”
Não há ninguém por perto. Barulho, só o do vento e, muito ao longe, o bater das ondas na falésia.
- Não se pode nadar nas lagoas?
Encolhe os ombros. Poder, pode, mas ninguém vem para aqui, “em tempos ainda vinha para aí uma alemã tomar banho, mas já morreu”.
Quero organizar o trabalho para os dias seguintes, e peço um táxi para me levar de manhã a dar uma volta pela ilha.
Um sorriso de olha-para-a-esperta-que-vem-do-continente, e logo a resposta: no Corvo não há táxis, não há transportes públicos, e a frota automóvel existente resume-se a meia dúzia de carros particulares, ou nem tanto. Depois há motorizadas, e algumas carrinhas de caixa aberta, onde as pessoas levam o necessário para irem trabalhar as terras.
E uma tabacaria para comprar jornais?
Jornais não há, tabacarias também não.
E juro que lhe senti um leve orgulho na voz quando, a seguir a todas as minhas perguntas (“e lojas? E mercado? “, etc) ele ia respondendo “não há, não há…”
Indica-me onde vou tomar as refeições todos os dias e ,já vai a sair ,quando lhe peço que me dê uma chave da casa, para eu não estar sempre a incomodar quando entro ou saio.
Novo sorriso:
- No Corvo não há chaves. As portas ficam todas no trinco.
Estou no fim do mundo.

Dia 13, 5ª feira
O CAFÉ onde tomo as refeições fica no fundo da rua. De resto, o Corvo tem apenas duas ruas, não há que enganar.
Saio cedo e a vista abarca tudo o que há para ver: a escola, os correios, algumas casas, o posto médico, pequenas hortas, a igreja, os bombeiros, a pista do aeroporto.
No café a televisão está sempre acesa, mas ninguém olha. A Teresinha é quem põe e dispõe. Só há meia dúzia de mesas onde se possa beber um café porque, segundo informa, “depois as pessoas ficam aí sentadas a manhã toda, e quando é hora do almoço não as podemos mandar sair.”
Habituada a trabalhar em cafés, começo a pensar onde é que aqui poderei instalar a minha tralha habitual… Mas por hoje quero apenas fazer visitas de reconhecimento, ontem foi tudo a correr.
Ao almoço (parece que toda a gente come no café da Teresinha), D. Manuel Martins recorda-me que hoje é dia de procissão. Apesar de já ter estado no Corvo, D. Manuel admira-se sempre da pouca frequência nas missas, e da pouca alegria: “ninguém canta!”.
Não é hoje que as coisas mudam: depois da missa das oito da noite, a procissão percorre rapidamente as duas ruas da vila, já quase no fim alguém se lembra de entoar alguns cânticos, mas o entusiasmo não é grande, até porque a maioria é muito velha, as mulheres arrastam-se com dificuldade, faltam-lhe forças para aquele caminho de pedras salientes, quanto mais para cantar.
À cabeça da procissão, D. Manuel pára muitas vezes para olhar para trás. Numa procissão normal, o padre vem sempre no fim. Mas também aqui deve ser diferente. E por isso ele olha para trás, e faz pausas, para que ninguém fique pelo caminho.
“Este padre é pequenino, mas anda tão depressa…”, murmura uma velhota ao meu lado, dobrada sobre a bengala.

Dia 14 – sexta-feira
SAIO cedo, e meto pés ao caminho. Há nuvens anunciando chuva.
Meto-me por trilhos que vão sempre dar a outros trilhos, muitos deles com as falésias a pique a impor respeito. Ouve-se o canto dos pássaros, que pássaros serão estes, meu Deus? (de súbito a recordação da voz do meu marido, “ai, lisboeta de Arroios, que não distingues um melro de uma cotovia!…”), apanho folhas e flores de que também não sei o nome, para as secar entre as páginas de um livro – mania que me ficou da infância – e vou olhando as poucas espécies florestais que reconheço – cedro, fetos, urzes, canaviais… E por toda a parte o negro das rochas de basalto.
A chuva começa, e regresso à estrada, com receio de me perder, mas de repente oiço a buzina de um carro, e o presidente da Câmara a acenar-me para que entre. Sorri quando lhe pergunto como sabia que eu andava por ali: “nesta terra tudo se sabe.”
Janto no sítio do costume, a ver na televisão o Benfica ganhar por dois a zero ao Portimonense. Sou a única a olhar para o ecrã. Os homens estão todos lá fora, a fumar.
Benfica e Portimonense devem dizer-lhes tão pouco.

Dia 17 — 2ª Feira
AFINAL, de que precisamos para viver? Isto perguntava-me eu, nas primeiras horas de aqui chegar – convencida de que iria encontrar, no meio deste isolamento, uma sociedade ainda não contaminada pelos males do consumo.
Rapidamente me fazem descer à terra: estou na sociedade mais desenfreadamente consumista que conheço. Tudo se compra - por encomendas de catálogo, pela lancha que vai às Flores e ao Faial, pela net. A dependência da electricidade é total. A televisão domina tudo. Todas as casas têm arca frigorífica, televisor último grito, computador, microondas, etc. Se algum tem – todos os outros compram a seguir. E há sempre alguém que vende qualquer coisa: fico a saber, por exemplo, que a Teresinha vende Bimby’s que são, ao que parece, um sucesso.
Durante o fim de semana tive longas conversas com o médico da vila e com o presidente da Câmara. Separadamente, claro. Num cenário a lembrar vagamente o de D. Camilo e Peppone, nos livros de Giovanni Guareschi…
Ambos me dão informações necessárias: tirando as casas da vila, onde vivem os cerca de 300 corvinos, não há casas em mais nenhum sítio da ilha. Ninguém se aventurou nunca a morar longe do porto. Surgem por vezes, no verde da paisagem, umas rudimentares construções de pedra que em tempos abrigavam as vacas, mas que agora servem apenas para guardar alfaias.
Aqui ninguém passa fome e, se não há ricos, também não há pobres.
Nunca aqui oiço falar de crise.
Dizem-me que cada corvino tem um lote de terreno, e uma vaca. E que a esmagadora maioria vive do subsídio: se tem vaca, recebe subsídio para tratar dela; se não tem, recebe subsídio para compensar a falta.
E assim se vive.
Trabalha-se, pesca-se, à noite vê-se a telenovela, e os mais novos bebem cerveja nos bombeiros.
São um povo estranho. Fechado, pouco simpático, sem tradições de convívio. Em tempos antigos, os homens juntavam-se no Outeiro onde discutiam (e resolviam) problemas comuns.
E ainda não há muitos anos aqui havia um clube de futebol, um coro, um grupo de teatro.
Tudo isso acabou.
Mas há um moderníssimo (e horrível) Pavilhão Multiusos – fechado quase sempre.

Dia 18, 3ª feira
ESTOU de partida. Preciso de mais umas voltas pela ilha, antes de o avião me levar amanhã de volta.
D. Manuel regressa também.
De todas as conversas que mantivemos, há uma que não me sai da memória:
“Eu acho que esta gente não vai muito à igreja porque não sente necessidade. Eles passam a vida neste isolamento todo, nesta lonjura, neste silêncio, nesta imensidão, estão todos os dias em contacto com Deus. Para quê irem à igreja à procura de um Deus formatado?”
Quero acreditar que sim.
Mas também não me sai da cabeça aquela frase do Raul Brandão, no seu texto sobre o Corvo: “se não fossem cristãos, matavam-se uns aos outros.”
Ele esteve por cá em 1924. Seria o Corvo muito diferente do que é hoje?
Acho que já encontrei o fio condutor do texto para o livro do Jorge.
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«JL» de 30 Nov 11

domingo, 27 de novembro de 2011

Recursos humanos

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Por Catarina Fonseca

AGORA JÁ NÃO SAÍMOS a dois, mas a três (e quando não a quatro) – eu, tu e o teu telemóvel. Desde quando é que começámos a precisar tanto de nos ‘partilhar’?

Toda a gente que me conhece sabe que eu sou uma facebookiana convicta. Mas esta coisa que há agora de só existirmos enquanto existimos para os outros assusta-me. No outro dia liga-me uma amiga minha a contar esta cena comovente: uma tarde destas de verão foi com um admirador beber um copo a uma esplanada. Vieram as bebidas, e ela vê-o sacar do telemóvel e tirar uma fotografia ao copo do daikiri. Passam-se minutos e minutos, e ele não larga o telemóvel. Às tantas, ela lá pergunta: - Olha lá, tu estás no Facebook? - E estava! Tinha postado a foto do copo mais uma legenda do tipo ‘Ai que lindo pôr do sol, como eu estou aqui bem’, e estava na converseta com os amigos e amigas, sem lhe ligar nenhuma a ela.

‘O que mais me deprimiu’, dizia ela, ‘é ele achar que devia tirar a foto ao copo...’

Percebi nos dias seguintes, quando contava esta história, que estes menages à trois – eu, tu e o teu telemóvel – eram recorrentes, e que a cena de postarem a foto do copo enquanto tomavam o dito era tão comum que só podia mesmo ter escapado à pessoa mais distraída do universo (eu). A partir daí, fui a desconfiança em pessoa. Desenvolvi um reflexo de Pavlov sempre que via um telemóvel. Nos dias seguintes, rosnava quando avistava um Nokia. Fez-me meditar nesta necessidade de nos ‘partilharmos’ constantemente com os outros. Sempre me ensinaram que existimos sozinhos – myself and my Creator – (eu e o meu Criador, dizia o Dr. Johnson, que é um fantástico exemplo para uma ateia, mas vocês percebem) Existimos e somos nós inteiros sem precisar do olhar dos outros. Agora já não...

A cena do telemóvel, além de recorrente, tem ‘adendas’ ainda mais requintadas. “Eu e o meu namorado estávamos completamente apaixonados”, contou-me outra amiga. “Até que, em pleno fim de semana romântico, ele me fez essa cena do telemóvel. Achei estranho, não me perguntes porquê. Cheguei a casa, e criei um alter ego no Facebook. Ele ‘amigou-me’ logo, claro que sem saber que era eu. Então perguntei-lhe se era comprometido. Resposta dele: Sou, mas não hei de ser por muito tempo...”

Fiquei a pensar até que ponto esta facilidade de comunicações – telemóveis, facebooks, mailes – nos está a afastar das conversas difíceis. Conheço várias pessoas que foram despedidas por mail – o mesmo para todas, note-se – sem que o patrão se tivesse dado sequer ao trabalho de lhes ligar, quanto mais ter uma conversa cara a cara (e ainda teve a lata de acrescentar: ‘Apareça quando quiser, está em sua casa’ e não era uma piada).

O ‘cara a cara’ sempre nos assustou, mas agora temos possibilidade de fugir dele, e fugimos sem que isso nos tire o sono. Já não há pessoas, há ‘recursos humanos’ – duas palavras que, não sei se repararam, são mutuamente exclusivas: quando somos um ‘recurso’, qual é a humanidade possível? Como dizia a Lídia Jorge, já não há museus, há ‘equipamentos culturais’. Podem dizer-me que isso são só palavras. Mas são as palavras que constroem o nosso mundo.

Cansada de pensar, que está demasiado calor para isso, fui ‘partilhar’ tudo isto com a minha amiga Tininha, que é uma alma sábia. Ela ouve (ou talvez não), levanta uma sobrancelha e recita: ‘Toda à vida fui pastor, toda a vida guardei gado, e tenho uma cova no peito ai ai de me encostar ao cajado.’

É o que dá tentar discutir sociologia com insensíveis.

«Activa» de Agosto 2011

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

ENTÃO É ASSIM

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Por Alice Vieira

A IRMÃ dizia-lhe sempre “não te metas!”, mas nunca fazia caso.
Naquele dia também não. Olhou para o miúdo a arrumar carros, sujo, calças esburacadas, corpo que não devia ver água há eternidades, e meteu logo conversa. A princípio as respostas não passaram de grunhidos acompanhados de encolher de ombros, mas ao fim de algum tempo já sabia que largara a escola, não tinha poiso certo, andava por ali a fazer pela vida.

- E não gostavas de voltar à escola?

Novo encolher de ombros, e um assobio para um possível freguês.
Ela não desistia às primeiras e por ali ficou, a tentar conhecer mais da vida do rapaz que, por essa altura, já sabia que se chamava Chico.
Assim que chegou a casa agarrou-se ao telefone e ao computador, ligou para meio mundo e mandou mensagens para o outro meio, mexeu todos os cordéis e guitas que estavam ao seu alcance, meteu a paróquia e a empresa ao barulho – e, em poucas semanas, o Chico voltava à escola, e dormia num centro de acolhimento.
De vez em quando aparecia-lhe em casa à hora de jantar. Aproveitava para ter uma refeição decente enquanto lhe dava notícias, e às vezes ficavam algum tempo na conversa.
Depois deixou de aparecer, o que ela nem estranhou, quando chegam a homens têm outras prioridades na vida.
Um dia bateram à porta.
Foi abrir.
Um homem sorria para ela.

- Então já não se lembra de mim? Sou o Chico!

Grandes exclamações, grandes abraços, “deixa-me olhar bem para ti!”, ele a pedir desculpa de nunca mais ter dito nada “mas a vida não tá fácil!”, e logo a seguir explica ao que vem:

- Então é assim: vou-me casar e queria convidá-la para madrinha!
Ela espanta-se, se “a vida não tá fácil” e com esta crise, como vai ser? Ele tranquiliza-a e diz que há uns tempos que tem a vida estabilizada - “graças a si, tudo graças a si!” — trabalha num ferro-velho que pertence a um vizinho.

Ela estremeceu ligeiramente ao ouvir a palavra “ferro-velho”, teria ficado mais satisfeita se ele falasse de empresa, escritório, supermercado, call-center, enfim… Mas recompôs-se.
Aceita o convite, toma nota do dia, da hora e da igreja.
E no dia, na hora e na igreja certa lá está.
Não há grandes rituais preparatórios, o Chico aparece num carro e a noiva logo no carro atrás. Ele abre-lhe a porta e, antes de entrarem na igreja, vai apresentá-la.

- Esta é a Hortense!

Ela sorri para a noiva, a noiva sorri para ela, desengraçadinha mesmo pelo meio de quilómetros de tule a enfaixar-lhe a cara.
Sobem lentamente as escadarias da igreja, e ela começa a ouvir ruídos estranhos, olha em volta mas não vê nada, mas os ruídos continuam, ruídos de latas, de arames que se entrechocam, uma coisa assim…
Torna a virar a cabeça para ver se percebe donde vêm, olha para as escadas e, de repente, descobre que, à sua frente, a noiva se movimenta em duas próteses.
Não quer que ninguém perceba o seu choque, não quer voltar a olhar, a cabeça gira em todas as direcções, mas o Chico deu por isso.
Volta-se para trás, sorri-lhe, pisca o olho e murmura:

- Então…Foi o que se pôde arranjar…

Quando ao fim da tarde chegou a casa, a irmã ligou:

- Então, o casório?

Ela deu uma gargalhada.

- Não sei se terão muitos meninos, mas que vão ser felizes para sempre não tenho dúvidas!

E foi à procura de uma moldura para pôr o retrato que o Chico prometera mandar.

«ACTIVA» de Nov 2011

sábado, 19 de novembro de 2011

Amigas salva-vidas

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Por Catarina Fonseca

OS AMIGOS são a nossa rede afetiva: como sobreviveríamos, sem eles?

Penso muitas vezes que, se não tivesse amigos, a minha vida seria desesperada. É verdade que também penso isso se não tivesse sobrinhos, mãe, bacalhau à Brás, livros, festinhas e chocolate branco (não necessariamente por esta ordem) mas isso agora não interessa nada.

É triste mas só me vêm frases kitsch à cabeça, como a dos amigos serem a família que se escolhe, ou que os amigos estão connosco mesmo quando não estão. Ter amigos é um bocadinho como estar apaixonado, mas sem os AVCs da paixão (ai tomem lá mais esta kitsch, isto hoje vai ser sem dó nem piedade). Se bem que há várias formas de se exercer uma amizade. Lembro-me de uma altura em que andava em baixo, e de ter dito à minha amiga Cristina, “Olha, posso ligar-te quando estiver desesperada?”. Depois comecei a ver a conta de telemóvel, e reformulei: “Olha, posso só pensar em ligar-te quando estiver desesperada?”

Há amigas que eu tenho há mais de 20 anos e que sobreviveram a casamentos e filhos e separações. Há quem tenha reencontrado e com quem tenha construído uma amizade que nunca tivemos quando éramos crianças ranhosas. Há quem eu tenha amado em pequena e se tenha afastado até não ter quase pontos de encontro comigo. Há as pessoas com quem trabalho, que eu não escolhi como não escolhi a minha família, mas que são a minha segunda família.

Também tenho amigos ‘virtuais’, que me animam de manhã quando acordei com nuvens, que têm sempre um ‘like’ para me sustentar. Ai irrita-me tanto aquela teoria que há agora de que o Facebook leva à solidão! Até porque geralmente quem diz isso é quem lá não está. Quem é solitário por definição nunca deixa de o ser, com ou sem FB.

É verdade que temos cada vez menos paciência para os outros. Uma coisa que me irrita é quando eu digo ‘Não querem vir jantar comigo? ‘ e respondem: ‘Ai não, vem tu cá a casa’. Mas a culpa não é do Facebook. Nunca deixei de ver os meus amigos ‘reais’ por causa dos ‘virtuais’. Pelo contrário: vejo-os muito mais agora. Conheço muito mais gente ‘em carne e osso’ desde que tenho gente – quê? Desossada? – a falar comigo. Há pessoas que eu nunca teria conhecido sem o FB, e sem as quais a minha vida agora – como sem chocolate branco e sem sobrinhos – seria desesperada. Todas as oportunidades para fazer amigos são boas: porquê perder mais esta, num mundo em que as pessoas já se encontram tão pouco? Entre não ter amigos nenhuns e ter um amigo internético, o que é que escolhiam? E entre ter só amigos ‘reais’ e ter os mesmos amigos reais mais outros amigos ‘virtuais’, o que é que escolhiam? E entre ter só amigos reais e ter amigos virtuais e mais amigos reais que começaram em virtuais, o que é que escolhiam?

Olhem, vão lá ligar aos vossos amigos. Não façam como eu, e não pensem só em ligar-lhes.

(Como já repararam, desta vez não estou sozinha. Estas são a Tininha e a Catarina. Estão aqui em representação das minhas amigas todas porque são as que consegui agarrar assim de repente sem que pudessem fugir – inda quiseram evadir-se mas o edifício é ‘inteligente’ e as janelas não abrem - e porque lhes disse que as desamigava se recusassem, e elas não tiveram outro remédio senão concordar de boa vontade).

«Activa» de Julho 2011

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

ÓDIO VELHO

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Por Alice Vieira

DE VEZ em quando ouvia-se a voz da mãe, do canto da sala:

- Não se esqueçam de levar o cão à rua.
- Esteja descansada – respondia ela, ou alguém que andasse por perto.

Raramente a mãe dizia fosse o que fosse.
Sentada diante da porta de vidro que dava para o jardim, ali ficava manhãs inteiras, silenciosa.
Nem mesmo quando às vezes os miúdos iam lá a casa ela mostrava algum tipo de emoção. Só o cão a preocupava.
Se não fosse o cuidado com o cão, Teresa era bem capaz de supor que ela perdera o uso da fala. Mas o médico já lhe dissera que era assim mesmo, e que muita sorte eles tinham de ela não ser violenta ou agressiva, como muitas nas suas condições.
Não havia cão nenhum lá em casa.
Nunca tinha havido cão nenhum lá em casa.
O pai sempre detestara animais (“animais só no Jardim Zoológico e em jaulas!”) e nem pensar em contradizê-lo. Quando morreu, Teresa e os irmãos já tinham todos saído de casa e, quando um deles sugeriu que um cão talvez fosse uma boa companhia para a mãe, agora sozinha naquele casarão, ainda para mais com jardim, ela disse zangou-se e disse que tinha mais que fazer do que criar animais, que além disso eram uma prisão.
Ninguém mais tocou no assunto, e o cão passou à história.
Às vezes Teresa punha música. Sentia que a rádio a enervava ligeiramente, por isso decidira-se por músicas calmas, uma ou outra ária de ópera, de que ela fora sempre fanática. Desde criança que se lembrava de ir a reboque dos pais e dos irmãos para o camarote no S. Carlos, e tentar, muitas vezes sem resultado, ficar acordada até ao fim.
Naquela tarde caíra-lhe no colo um CD que há dias Gabriel lhe dera. O irmão mais velho fôra o único a herdar a paixão da ópera, e vibrava imenso quando conseguia encontrar gravações históricas ou de intérpretes já esquecidos.
Como aquela, de uma brasileira de que ela nunca tinha ouvido falar - a bem dizer, em termos de Brasil, ela era mais Caetano e Bethânia - mas que o irmão garantia ter sido, no seu tempo, mais popular que a Callas.
Mostrou-o à mãe, que quase nem olhou para ele.

- A mãe alguma vez ouviu falar desta cantora? Bidu Saião… Nome estranho… Mas o Gabriel diz que o pai gostava muito…

Nem teve tempo de acabar a frase. Com uma energia há muito desaparecida, a mãe arranca-lhe o CD das mãos e atira-o pela porta fora.
Mais calma, murmura apenas:

- Se alguma vez a vires na escada, nunca a cumprimentes.

À noite, quando o irmão passou por lá, como sempre fazia antes de ir para casa,Teresa contou-lhe a história.

- Ódio velho não cansa, nunca ouviste dizer? –riu-se ele.
- Mas ela alguma vez conheceu esta .…
- Bidu Saião. Não, claro que não. Mas o nosso pai passava a vida a dizer “ a Fernandinha é tal qual a Bidu Saião…E canta tão bem como ela…
- A Fernandinha?
- Tu eras pequena e não te lembras. Era a nossa vizinha de cima, quando morávamos nas Avenidas Novas. Acho que estudava no conservatório. Lembro-me muito bem de o pai ficar imenso tempo à varanda, a olhar para cima, quando ela cantava…

Riram-se os dois.
Antes de sair, Gabriel foi até junto da mãe e murmurou:

- Com que então, ainda se lembra da Bidú Saião…

Mas a mãe já tinha regressado o seu mundo. Fez-lhe uma festa, sorriu, e disse:

- Não te esqueças de levar o cão à rua

ACTIVA de Outubro de 2011

sábado, 5 de novembro de 2011

A MALA DA ALICE - UM DESCONTO JUSTO

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Por Alice Vieira

APESAR de todas as maravilhas electrónicas que fazem tudo, a minha mala ainda anda cheia de coisas que, para a maior parte das pessoas, são olhadas como dignas de estar em museu.
Agendas.
De papel mesmo, e capas duras.
Aquela onde tenho os meus dias todos marcados até ao fim de 2012; e aquela onde assento todos os telefones e moradas e mails - e o que eu me rio quando algum amigo me telefona, desesperado porque o telemóvel lhe “comeu” todos os endereços…
“Tu, que tens os telefones de toda a gente, diz-me lá…” – e lá ficam a tomar nota.
Mas, para lá das agendas, e de toneladas de fotografias, e de postais e bilhetes que, por qualquer motivo especial, amigos especiais me mandaram e andam sempre comigo – trago sempre um calendário.
Normalmente é um amigo coleccionador que mos fornece porque eu, a bem dizer, nem sei onde é que eles hoje se vendem.
Dantes sabia: na tabacaria da D. Rita.
Mas a tabacaria da D. Rita há um ano que se transformou numa agência imobiliária.
Felizmente que, no ano passado, ainda ninguém no bairro pensava que a D. Rita teria de fechar as portas, ela ainda teve tempo de atender uma senhora de muita idade que entrou e perguntou:

- Tem calendários?

A D. Rita nem estava a perceber, há que tempos ninguém lhe pedia calendários, e ainda perguntou se era para consultar ou para comprar mesmo, mas a voz da senhora não admitia dúvidas, “claro que é para comprar, para que é que eu havia de querer consultar um calendário a meio da tarde?”
A D. Rita lá deu uma vista de olhos pela loja, onde raio teria ela enfiado os calendários, Janeiro não tardava e era bom que os tivesse mais à mão.
Lá os descobriu no cimo de tudo, devia ter sido o marido a atirá-los para lá, esticou-se e agarrou num deles.

- Pronto, aí o tem. São dois euros.

A senhora deu uma gargalhada.

- Você deve pensar que eu estou maluca… Dar dois euros por esta porcaria?

A D. Rita olhou bem para ela, uma rede finíssima por sobre o cabelo todo branco, quilos de pó de arroz sobre as rugas, casaco a imitar pele, decerto mais por falta de dinheiro que por convicções ecológicas, e lá se vai defendendo, dizendo que é um calendário muito resistente, plastificado, com uma bonita ilustração, e além disso chega até ao ano 2015, “isto a bem dizer até são cinco calendários num só! Está a ver? Cinco calendários! Fica-lhe a 40 cêntimos cada um! A bem dizer, até poupa!”
Lembro-me que estava ao canto da tabacaria, e até me comecei a rir porque aquela conversa toda parecia um anúncio de champô ou creme de banho, dois em um, mas a senhora olhou para mim e não achou graça.

- Olhe bem para a minha cara – disse ela, e tanto eu como a D. Rita obedecemos. Como nenhuma de nós dissesse nada, ali feitas parvas a olhar para ela, perguntou:
- Que idade é que me dão?

Continuámos em silêncio

- Estou quase com 90 – disse ela.

Aí a D. Rita desatou naquela conversa idiota, “ai mas nem parece nada!, eu sou muito mais nova que a senhora e ando para aqui toda torta, com a minha ciática que dá cabo de mim, e então quando vem o inverno a bronquite não me larga, e a sinusite é…
A senhora cortou-lhe o rol de desgraças:

- Mais me ajuda. Se você, que é nova, já está assim, imagine o que seria de mim se durasse mais cinco anos! Claro que não duro! E vocês acham que vou dar dinheiro por uma coisa que quase de certeza não vou usar? Para que quero eu um calendário que dure cinco anos, se de certeza eu não vou durar mais cinco anos?

A D. Rita já não sabia que mais havia de dizer

- Então fazemos assim – disse a senhora – eu levo o calendário se me fizer um desconto.
- Um desconto? Mas o calendário custa dois euros! E serve para cinco anos! Praticamente fica a 40 cêntimos cada…
- Eu ainda sei fazer contas. Mas quero um desconto. Um desconto pelos calendários que não vou ter tempo de usar.

Parou por momentos e depois murmurou:

- É justo, não é?

A D. Rita olhou para ela, e depois para o calendário, que afinal eram cinco, e de novo para ela, esperando que, apesar da ciática e da bronquite, o ano de 2015 as encontrasse ali de novo, entre jornais, revistas, papelada – sem poder imaginar que, dali a uns tempos, viria uma agência imobiliária fechar-lhe a porta e empurrá-la para novas paragens.

- Justíssimo – disse, passando-lhe o calendário para as mãos.
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AUDÁCIA de Nov 2011

sábado, 29 de outubro de 2011

Uma aventura no deserto

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Por Catarina Fonseca

É PRECISO dizer que não sou esquisita com as praias. Desde que tenham areia e mar, para mim servem. Mas há sempre uma legítima na nossa vida, sejam quais forem os affaires. A minha legítima é o Guincho. É verdade que a engano a torto e a direito com qualquer outra que se me atravesse à frente. Mas sempre que lá volto percebo por que é que me casei.

Aliás, casaram-me à força. Eu tinha 4 anos e nem conhecia o noivo. Vais aprender a amá-lo, disseram-me, e eu acreditei, porque aos 4 anos acredita-se em tudo (que remédio).

Nem me lembro do primeiro encontro, que deve ter sido traumático. Mas lembro-me desses primeiros anos. Era na Pré-História. Os dinossauros partilhavam a areia com as gaivotas e ainda não havia um surfista à vista (rima interna. Não façam isto em casa). Aliás, não havia mesmo mais ninguém.
A minha avó tinha decidido, não sei porquê, que aquela era a praia a que se devia levar as crianças. Escusado será dizer que, naquela altura (foi há muitos anos mas há pouco tempo), a única criança num raio de bué quilómetros era eu. A minha avó avançava deserto fora intrepidamente comigo à trela (não sei se literalmente), mais uma terrina de canja, mais a panela do arroz de pato, mais mesa e quatro cadeiras (nunca percebi para quem era a quarta, quem iria visitar-nos àquele fim de mundo?), mais a toalha de linho e respetivos guardanapos bordados, mais os talheres de prata mais o meu avô de fato completo, colete e chapéu preto (que nunca tirava).
Passávamos o barqueiro e a casa do barqueiro que rangia como um barco e cheirava a madeira molhada e a lona molhada e a basicamente quase tudo desde que molhado. Alugávamos uma barraca de lona (a única no areal) e lá ficávamos o s três, eu com creme Nívea no nariz, a minha avó a correr atrás de mim com a toalha aberta como uma gaivota gigante, o meu avô de fato completo sentado numa cadeira de realizador, como se estivéssemos à espera dos outros atores para começar o filme, os dinossauros e as gaivotas a passarinharem por ali.

Todos os dias me explicavam por que é que aquela praia se chamava Guincho. Todos os dias eu percebia porquê. Era um descanso que pelo menos qualquer coisa nesta vida respondesse pelo nome. Acho que era por isso que íamos tanto para lá. Era uma praia em quem se podia confiar, como aquelas pessoas que estão sempre maldispostas.

Hoje já chegaram muitos outros atores. Já não se pode estacionar depois das 8 da manhã. Há campeonatos de surfe todos os minutos. Os dinossauros já debandaram. As gaivotas quase. Até já me contaram que há dias em que nem vento faz. Não interessa. Um amor verdadeiro é para sempre.

«JL» - Lulho 2011

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O CORVO — EM JEITO DE TELEGRAMA E NÃO MAIS

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Por Alice Vieira

VENHO ao Corvo em trabalho e aterro na ilha a saber só o que toda a gente sabe: é a mais pequena dos Açores.

O Presidente da Câmara explica que não vou ficar na Residencial porque em Outubro está cheia, “e até 2015 está tudo reservado”.

O Corvo é o paraíso dos ornitólogos. Em Outubro eles vêm de todo o do mundo, para filmar as aves em trânsito, captar-lhes o canto, tentar perceber as rotas que as trouxeram aqui.

Largo a bagagem e dizem-me que é melhor ir já ver a cratera do vulcão, “porque a gente aqui não se pode fiar no tempo e, se houver nuvens, não se vê nada.”

Minutos depois, no alto da estrada, abre-se a nossos pés a cratera do antigo vulcão, um manto de turfa a rodeá-la, de um verde que faz doer os olhos. Dizem-me que estas turfeiras são as menos conhecidas da Europa, e eu acredito. Quem se arrisca a vir a este fim do mundo e, por precipícios e rochas negras de basalto, chegar até aqui? E há que contar com os imprevistos: às vezes os ventos do sul produzem nevoeiros cerrados, a cratera fica escondida e é difícil encontrar o caminho de volta. Felizmente que as poucas nuvens desta tarde permitem que pelos meus olhos entre este panorama esplendoroso. Barulho – apenas o do mar e do vento; presenças – apenas a das vacas.

Olho lá para baixo : há duas lagoas na cratera e algumas minúsculas ilhas pelo meio delas. Diz a tradição que a configuração dessas ilhotas é a representação de todas as ilhas do arquipélago. A tradição lá sabe, embora à primeira vista me pareça um tanto exagerado.

Regresso à vila. A única do Corvo.

Não quero incomodar ninguém, por isso peço um táxi que, no dia seguinte, me leve a dar uma volta pela ilha. Sorriem, um sorriso igual a todos os que me dão à medida que vou fazendo perguntas para as quais a resposta é sempre a mesma: “não há.”

Táxis? Não há, nem qualquer transporte público.
Jornais? Não há.
Uma tabacaria? Não há.
Uma loja qualquer? Não há.
Mercado? Não há.

Adormeço na angústia de ficar uma semana num local onde não há nada do que me faz falta.

Mas curiosa de ver como existe ainda, à face da terra, uma sociedade onde o consumismo não entrou.

Os dias seguintes se encarregam de me dar novas lições: de que se aprende rapidamente a relativizar, e que passamos muito bem sem aquilo que julgávamos indispensável; e de que estranhos são os caminhos do consumismo.

A frase recorrente por aqui é “manda-se vir”.
Das Flores, pela lancha.
Ou pela net.
Ou por catálogo.

Aqui nada falta – e a dependência da electricidade é total.

Todas as casas têm televisão, net, arca frigorífica, e o mais que o progresso inventar. Tudo se vende, tudo se compra. Dizem-me logo que a Teresinha vende Bimby’s – mesmo antes de eu saber quem é a Teresinha. Se uma família tem uma qualquer maquineta sofisticada – todas as outras compram igual.

O médico da vila, com um olhar crítico, afirma que o Corvo já não é nada do que era há vinte anos. A vida comunitária acabou, os velhos já não se reúnem no Outeiro a resolver os problemas da terra, a televisão domina a vida das pessoas. Pergunto se não seria possível – nesta terra onde não há cinema, teatro, grupo de futebol, onde à tarde os jovens se limitam a beber cerveja no café dos bombeiros - organizar um grupo de leitura (aqui não há analfabetos, e existe uma biblioteca da Gulbenkian), ou de contadores de histórias.

Que não : ninguém largaria a telenovela.

Mas vamos esquecer tudo isto: no Corvo não há pobres, ninguém pede esmola, ninguém passa fome, todos têm um bocado de terra, uma vaca, um porco, e todo o peixe que o mar dá. Os cerca de 400 habitantes do Corvo têm, em abundância, o que falta a toda a gente: tempo. No Corvo – como me dizem por graça – “a gente levanta-se às 9 e 5, para entrar no trabalho às 9”…

Percorro a ilha a pé todos os dias. Encho-me desta solidão e deste silêncio, dos fetos, do zimbro, dos juncos, do verde do mar e do negro das rochas, e sinto que o que a ilha nos dá é fazer-nos sentir que o fundamental é olharmos para dentro de nós, e que olhar para fora é aqui perfeitamente acessório.

Como me dizia o bispo D. Manuel Martins, tentando justificar a pouca afluência nas missas no Corvo, “ as pessoas estão tão dentro desta imensidão, desta lonjura, deste silêncio – para quê irem à Igreja procurar Deus formatado?”

Realmente, para quê.
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Tempos Livres

sábado, 22 de outubro de 2011

domingo, 25 de setembro de 2011

FIM DO ANO EM SETEMBRO


Por Alice Vieira

Está assente que as festas têm o seu dia próprio. E quando qualquer coisa foge a esta regra, até os deuses se espantam

NUNCA SE LEMBRA de ter pensado no mês de Dezembro em termos de fim do ano.
Para ela, só havia anos lectivos e, por isso, o ano começava em Outubro e acabava em Julho – e entre eles seguiam-se uns meses de ninguém em que nada acontecia, a não ser umas leves e brevíssimas paixonetas, uns quilos a mais, e as saudades de regressar ao tempo normal.
Depois o calendário escolar teve de se adaptar à Europa, e ela teve de se habituar a que o ano começasse em Setembro – o que reduzia substancialmente o tempo em que tudo parecia parado.
Habituou-se menos mal — embora no seu íntimo, e porque já não tinha em casa ninguém em idade de entrar em horário escolar, só se sentisse verdadeiramente a atacar a frescura de um novo ano depois dos festejos da república.
Mas pronto, Setembro dava o ritmo.
Então fazia projectos, mudava as fotografias das molduras, punha a escrita em dia (sim, ela ainda se gabava de escrever cartas e postais e de não falhar um dia de anos de ninguém), escolhia novos livros para a mesa de cabeceira, começava a tricotar uma camisola, iniciava a dieta, não falhava o ginásio.
Um ano, novinho em folha, esperava por ela.
E era então que a atacava, forte e feia, a vontade maluca de fazer uma festa de fim de ano.
Festa de fim de ano a sério, com champanhe, ceia, serpentinas, ridículos chapelinhos de cartão no cocuruto da cabeça, música pimba a animar as massas, atacadas por papelinhos e línguas-de-sogra (por que raio se chamará língua-de-sogra àquilo? E por que não língua-de-nora?), telefonemas e sms à meia noite para os amigos, desejando a todos, com a voz embargada pela comoção, “boas festas e feliz ano novo!” Ou “boas saídas e melhores entradas!”
Por que não escolher, por exemplo, o dia 30 de Setembro?
E por que não este ano?
Este ano, já viu no calendário, até calha a uma 6ª feira, dia entre todos conveniente para festejos pela madrugada fora.
Deu consigo, de repente, a fazer listas : listas de amigos a convidar para a ceia, lista do que precisaria de trazer do supermercado, lista de telefonemas a avisar daquele princípio de ano em finais de Setembro.
E logo no dia seguinte o plano foi posto em prática.
Telefonemas, mails, sms, recados no facebook e nos atendedores de chamadas: “se o Natal pode ser quando um homem quiser, por que não o Ano Novo?”, rematava sempre nas mensagens que deixava.
Andava feliz: finalmente ia festejar em condições, e na altura em que sempre sonhara, um ano novinho em folha.
A pouco e pouco os amigos foram respondendo.
Que nesse dia não estavam em Lisboa.
Que era o dia de anos do sogro, ou da prima, ou da cunhada.
Que iam fazer todos os possíveis e lá mais para diante davam uma resposta.
Todos com voz estranhamente rouca, pausada, ela quase nem os reconhecia.
Até que uma tarde a filha lhe telefonou, com aquela voz tão cheia de riso que mal se conseguia perceber o que dizia.
- Pelo amor de Deus, mãe!, deixa-te dessa maluqueira de quereres festejar o ano novo em Setembro! Não fazes ideia da quantidade de gente que me tem telefonado a perguntar se o que tens é assim tão grave, se é mesmo um caso tão desesperado que nem tens a certeza de poderes chegar a Dezembro!
Ficou incapaz de dizer fosse o que fosse.
Quando desligou o telefone, a filha ainda ria.

«ACTIVA» de Set 11

terça-feira, 20 de setembro de 2011

As mulheres e o lobo mau

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Por Catarina Fonseca

DIGAM-ME LÁ, aqui que ninguém nos ouve (só para aí 220.000 leitoras e leitores): vocês admiram a pessoa com quem estão?

Aqui há uns tempos, dizia-me uma a amiga: ‘Tu já reparaste que os homens admiram sempre a mulher com quem estão?’ Podem admirá-la pelas razões mais estapafúrdias (adoro esta palavra, ainda mais que fibroblastos e sempre é mais fácil de usar): porque tem umas pestanas daqui até Nova Iorque, umas pernas daqui até Los Angeles (não vão à volta, faz favor), faz bem bacalhau à Gomes de Sá, porque joga póquer, sabe preparar um martini, cheira a relva molhada (eles não dão por isso, passem à frente), lembra-lhes a prima Anica que eles amaram aos 3 anos, ou é uma incansável defensora do meio ambiente, dos coiotes-bebé e dos pobres da Malásia.

Seja por que razão for, os homens admiram sempre a mulher com quem estão. E nós? Nós, pronto, para sermos honestas (e curtas), não. Nós, quanto mais nos fizerem sofrer, mais nós amamos o desgraçado. Para as mulheres, amar é sofrer.

Isto só me lembra uma história que a minha tia Aurora adora lembrar (não sei se já vos contei, desculpem lá, é o mal dos casamentos longos): um tipo pobretanas, planeando o golpe do baú, casou com uma senhora com muitos anos e ainda mais dinheiro, planeando esfalfá-la até à morte assim que pudesse. Durante esse ano em que estiveram casados, foi o desvario: o marido arrastou a pobre da velhinha rica por tudo quanto era atividade. Levou-a a calcorrear a muralha da China, a escalar os Himalaias, a aprender a comandar avionetas do tempo da Luftwaffe, esfalfava-a todas as manhãs com maratonas no paredão de Algés, todas as tardes no bowling do Colombo e todas as noites com sexo selvagem, e ela resistia heroicamente. Desesperado, ele resolveu comprar um descapotável para a levar a andar a 300 à hora e ver se ela arranjava, sei lá, um AVCzito. Quando guiava para casa, estampou-se numa árvore e morreu. No funeral, a viúva chorava desalmadamente e não parava de contar a toda a gente como ele tinha sido um marido dedicado e como ela se tinha divertido durante aquele único, e movimentado, ano de casada...

Depois pensei naquela amiga minha que tem um namorado giro, meigo, esperto e que a adora, mas que se embeiçou ultimamente com um idiota que não lhe liga nenhuma, que a trata com os pés e que lhe foge com as pratas, ao que ela diz, ‘ai ele no fundo no fundo gosta de mim!’
Pois. No fundo no fundo. Tão no fundo que só ela é que dá por isso. E quando eu pergunto, ‘Ouve lá, mas o que é que tu admiras nesse homem?’ Ela encolhe os ombros e não responde. Ou diz qualquer coisa do estilo ‘O amor não se explica’. Ai explica explica. Desculpem lá, mas explica. Ou então não é amor. É outra coisa. É dependência. Sonho. Maluquice. Medo. Sei lá, fome. Olhem, já lá dizia o Álvaro de Campos, ‘Come chocolates, pequena’. Pelo menos o Toblerone não nos foge com as pratas.

(Ai lembrei-me de repente que o tema deste mês era o Futuro! Ó Deus. Que é que eu digo em 4 linhas sobre o Futuro? Olhem, como dizia a mãe do Capuchinho Vermelho, vão pela sombra. Não se esqueçam do chapéu. Usem protetor solar. E obviamente, cuidado com o lobo mau.)

«Activa» de Junho de 2011

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Profissão: Convidada

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Por Catarina Fonseca

ADORO CASAMENTOS, embora não perceba para que é que servem. Mas isso sou eu, que sou uma insensível.

Quando eu era pequena, as pessoas casavam-se a torto e a direito.

Eu tinha casamentos praticamente todos os fins de semana. Eu e a minha avó. Atão era assim: a gente engalanava-se, metia-se no carro da noiva (a minha avó era sempre a madrinha da noiva, até aos 4 anos achei que a profissão dela era ser Madrinha e que eu estava a treinar para lhe suceder), o carro atulhado até ao cocuruto com montanhas de tule e tafetá e outras variações em branco e pó, eu a espirrar, o motorista a afastar o tule do nariz para ver o caminho, e a minha avó a dizer à noiva que não ficava bem chorar daquela maneira, que dava a ideia que preferia ir antes para a praia ou ter-se casado com o João Paulo. Chegados à igreja, davam-me um cestinho com uns anéis e explicavam-me que não desse os anéis a ninguém, e sobretudo que não os comesse. Passava a cerimónia a rosnar a quem se aproximasse dos anéis. A noiva ria. Chegava a altura em que o padre me dizia: “Podes dar-me as alianças, minha filha?”. Eu rosnava ao padre. A noiva ria. O padre tentava arrancar-me as alianças. Era o principio dos 100 metros barreiras. Eu desatava a correr igreja fora. A noiva ria. O padre gritava ‘agarrem aquela criança!’. Eu corria ainda mais. Eventualmente, a coisa tinha um final feliz (para o padre) mas frustrante (para mim). Foi aí que aprendi que era inútil fugir ao Destino, principalmente quando ele corria mais do que eu.

Quando o meu irmão casou, eu já não tinha três anos e fui promovida a madrinha. Por momentos, com as alianças na mão, ainda me apeteceu desatar a correr pelo mundo fora. Era o reflexo de Pavlov aplicado aos casamentos mas sem a baba, ai pelo menos sem a baba. Metade da família susteve a respiração. Mas eu já não tinha 3 anos, e como sou cobarde tive medo das represálias. Foi o primeiro casamento em que ninguém teve de correr atrás de mim.

Isto para vos dizer que, com ou sem alianças, as pessoas casavam-se a torto e a direito. E não percebo por que é que continuam a fazê-lo, com a taxa de divórcio nos 50%. É aquilo a que se chama um investimento a fundo perdido (não sei muito bem o que é, mas soa-me fantasticamente). Digam lá, se alguém vos viesse propor um negócio e dissesse: ‘Ah é uma fantástica oportunidade, é certo que metade dá para o torto, mas eu sou um romântico incurável.’ E nem se pode dizer ‘Ai vamos chamar o FMI e fazer eleições e salvar este casamento’.

Mas pronto. Digamos que a pessoa veja o copo meio cheio e ache que pode calhar nos primeiros 50, e além disso tudo vale a pena para se vestir de princesa. O que eu não percebo mesmo é aqueles vips que vão para a ‘Caras’ dizer que, pronto, encontraram o Zé Manel, que é o homem da vida delas, e compraram casa com ele, e tiveram três crianças com ele, sem falar no rotweiller, o Adolfo, e agora, depois de 24 anos de vida em comum, agora depois da Maria, do Joãozinho, da Carlota Alexandra, e do Adolfo a pingar veneno dos caninos, agora é que sim, agora é que estão finalmente preparados para dar o grande passo: o casamento. Quer dizer: têm uma criança com aquela pessoa, mas o grande passo é o casamento?
Não digo que, se o George Clooney se ajoelhasse aos meus pés, eu dissesse, ‘Ai ó Joca, pára lá de ver o copo meio cheio!’ Também eu (embora não pareça) sou uma romântica incurável. Mas por enquanto, continuo a preferir levar as alianças.

«Activa» de Maio 2011

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

COM A BÊNÇAO DE S. FIRMINO

Por Alice Vieira

Quando as filhas se querem armar em casamenteiras das mães, regra geral não se saem bem da empreitada... Nem com a ajuda dos santos.

JÁ NÃO estava com paciência para aquelas coisas.
Mas a filha tanto insistira (“ó mãe, até um cego consegue ver que o Firmino está mesmo caidinho por ti!”) que ela acabara por ceder.
A princípio concordou em convidá-lo para um café, coisa normal entre vizinhos, mais do que isso estava fora de causa.
A filha franziu o sobrolho.
“Um café? Que graça é que isso tem? Não, senhora, vais convidá-lo para um jantar aqui em tua casa. Não és tu que, por tudo e por nada, fazes jantarinhos cá em casa? Ou e porque o Benfica ganha, ou e porque o Benfica perde…Não me digas que não consegues encontrar agora um motivo para o convidares… Dizes que é para festejar, sei lá, a lua cheia, o equinócio, uma coisa qualquer que te passe pela cabeça… “
Ela ainda tentou reagir, mas no dia seguinte a filha entrou-lhe em casa a rir e com um jornal na mão:
“Olha, motivo já aí tens: depois de amanhã é dia de S. Firmino! Diz aqui! Não é tarde nem é cedo: bate-lhe a porta ou pega no telefone e liga-lhe para o convidares a festejar o dia do seu santo.
“E que fez o S. Firmino para merecer ser santo?”
A filha leu:
“Dia 25 de Setembro, dia de S. Firmino, 1.º bispo de Amiens, e martirizado nessa cidade.”
Fez uma pausa.
“Não dará para grandes conversas, mas serve como motivo do convite.”
Ainda protestou. Que era um disparate, o Firmino era apenas um vizinho do prédio, simpático mas nada mais do que isso.
A filha nem a deixou continuar:
“Às vezes, quando eu vou contigo no elevador e ele entra, até faz pena ver aqueles olhinhos de carneiro mal morto…Aquilo não é amor, mãe, aquilo é paixão!”
E o convite foi feito (“S. Firmino? Olhe que nem sabia…”) e aceite.
E a carne foi assada lentamente no forno, com todos os temperos que a receita exigia (“carrega no açafrão, mãe, que e afrodisíaco!”).
E os morangos foram misturados com framboesas e temperados com folhas de hortelã, cortadas directamente da planta, que crescia no vaso junto da janela.

Chegou a hora marcada.
De casaco e gravata, apesar do calor, e a rosa da praxe embrulhada em celofane.
“Parece que me vem pedir em casamento”, pensou, e por pouco não desatou a rir na frente dele.
Pôs um CD do Andre Rieu, cheio de violinos, para dar ambiente.
Mas a conversa tardava.
Não era fácil, para quem nunca tinha passado do bom-dia-boa-tarde-que-calor-que-faz-hoje, iniciar, de um momento para o outro, uma complexa discussão sobre os assuntos candentes da humanidade.
Ou até mesmo uma simples discussão.
Ou até mesmo sobre os assuntos do país.
Ou do prédio.

Foi no momento em que ela ia perguntar “bebe café?”, que ele, depois de aclarar a garganta (“ai não me digam que vai cantar!”), perguntou por Beatriz.
Se estava bem, como ia o trabalho, se já tinha namorado.
Ela vai respondendo a tudo com poucas palavras, decerto não estão ali para falar da filha, que sim, que estava bem e o trabalho também, e que não, que ainda não tinha namorado.
O sorriso dele iluminou a sala. Gaguejou ligeiramente e arrancou:
“Sabe, posso parecer-lhe um pouco, como é que se diz, antiquado, e se calhar sou, mas queria primeiro falar consigo antes de, enfim, antes de me atrever a falar com… a falar com ela…”
Beberam o café e não disseram nem mais uma palavra.
Ele saiu, agradecendo o jantar.
Ela agradeceu a flor.
Quando a filha ligou, já perto da meia-noite para saber o resultado, respondeu apenas que, tal como previa, o pobre do Firmino não estava nem aí, ela que deixasse de se armar em casamenteira.
E, já agora, que não lhe desse muita conversa se, por acaso, o encontrasse no elevador.

«ACTIVA» de Agosto de 2011

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A COSTA NOVA

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Por Alice Vieira

RUY BELO chamava às esplanadas “as nossas pequenas pátrias provisórias”.
Completamente dependente de esplanadas, vou estabelecendo muitas pátrias dentro da minha.
Mas há aquelas que se guardam apenas na memória, aquelas que só de longe em longe visitamos - e aquelas a que voltamos sempre.
A Costa Nova (com o prolongamento da Barra acoplado) é a pátria a que todos os anos regresso no verão.
Mas também às vezes no outono. E também às vezes no inverno. Pátria é onde um homem (e quando um homem) quiser.

Tenho de adormecer a olhar para o farol, tenho de acordar a olhar para o farol.

Tenho de me embrulhar em casacos e camisolas de lã no pino do verão, porque senão nem é verão nem é nada, e a gente até pode pensar que está, sei lá!, (bater três vezes na madeira) no Algarve.
Dantes a Costa (cá em casa a Costa foi sempre só uma, a Nova e mais nenhuma), tinha a ria a entrar quase até às casas da avenida. Apanhava-se o barco num pequeno ancoradouro que agora é posto de turismo, e os novatos olham e não percebem por que é que aquilo tem o feitio da proa de um moliceiro…Dantes apanhava-se aí o barco e ia-se à ”bruxa”, do outro lado da ria. Passávamos a tarde a beber ginjinha e a jogar matraquilhos. Houve campeonatos famosos…
Depois a terra entrou pela ria dentro, e as coisas nunca mais foram o que eram.

Dantes na Costa vendia-se o refugo da loiça da Vista Alegre – com aqueles minúsculos defeitos que o nosso olhar de simples mortal não descobria mas que fazia com que fosse vendida ao preço da chuva. Agora há loiça turística, com a cara do Papa e de Nossa Senhora.

A Costa/Barra tem o mais belo pôr do sol do mundo.
A Costa/Barra tem a praia mais limpa do mundo : seja a que horas, seja a que dia (fins de semana incluídos) não se vê um papel na areia.
A Costa/Barra tem o melhor rodovalho do mundo. E as melhores enguias do mundo.
E sobretudo é a pátria incontestada…da tripa.

Há quiosques do Zé da Tripa em todas as esquinas. (E, por favor, não confundir com bolacha americana, que um velhote anda a vender pelas praias!)

Há filas para comprar tripa até depois da meia noite. Há quem vá para marcar lugar para amigos, há quem vá com uma lista de encomendas (“duas simples”, “três com doce de ovos”, “ meia dúzia com chocolate”) e o maralhal a aguentar até chegar a sua vez.

E nada de refilar : estamos todos unidos na veneração por uma maravilha gastronómica que só ali existe.

Sei que há infelizes que nunca a provaram, e ignorantes que nem sabem o que isso é. Dizer que leva farinha, ovos, açúcar, manteiga, que é uma espécie de massa de crepe enrolada, mas muito mal passada-- não quer dizer absolutamente nada, porque não é isso.

O “Zé da Tripa” é um verdadeiro empório, que já deve ir para aí na terceira ou quarta geração. Lembro-me de estar um ano no Salão do Livro de Genève, com aquele ar com que todos nós ficamos quando estamos há mais de uma semana na Suiça – e de repente, oh visão criadora!, avisto um quiosque do Zé da Tripa no meio dos restaurantes internacionais daquele internacionalíssimo Salão! Foi o delírio…

Mas a Costa/Barra é também o lugar onde as pessoas se podem vestir da maneira que entenderem porque ninguém liga nenhuma ; onde o posto de correios nem sempre tem selos mas tem sempre CD´s da Filarmónica Gafanhense; onde há lojas de chineses, claro, mas também lojas que vendem tudo e (ainda) não são de chineses – e uma até tem um bicho empalhado à entrada , que diz uma asneirola quando se passa pela frente e é, como se compreende, grande atracção turística.

A Costa é a avenida com os palheiros às riscas, e nós a sonharmos passar a nossa velhice lá dentro, debruçados das janelas viradas todas para a luminosidade única da ria, e o sabor distante da ginjinha, e o som dos bonecos de madeira a meterem golos na baliza do adversário.

domingo, 17 de julho de 2011

A AMIGA LURDES

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Por Alice Vieira

DESDE o princípio que as amigas lhe tinham feito ver o disparate que era ter um caso com um homem casado. Mas ela encolhia os ombros, ou respondia com a frase estafada, “já somos ambos adultos para sabermos o que andamos a fazer”.
Ao princípio tudo tinha sido muito excitante, telefonemas a desoras, camélias no dia de anos, jantares prolongados ao som de velhas músicas francesas e italianas, tudo com um ligeiro sabor a aventura adolescente, do tempo em que namorava às escondidas dos pais.
Mas, a partir do momento que ele se reformou, as coisas complicaram-se — e, sem o trabalho a dar-lhe cobertura, cedo entrou numa rotina que a exasperava: os almoços no mesmo restaurante ao fim da rua, o amor quase cronometrado, e aquele olhar de fera acossada, com medo de ser apanhado.
Um dia ela explodiu: “nunca saímos deste gueto! Tens medo que a tua mulher nos encontre?”
Ele simulou um ar terrivelmente ofendido, e garantiu que nunca pensava na mulher, “se estou aqui, é porque é contigo que eu quero estar!“
Mas foi acrescentando:

- Tens de entender que agora, sem ter de ir trabalhar, as minhas saídas de casa são mais complicadas…

Um dia, no início de um almoço no restaurante do costume, e porque lhe apeteceu ser um pouco cruel e fazê-lo torcer-se ainda mais de pânico, lembrou-se de dizer:

- A minha amiga Lurdes conhece a tua mulher.

Ela, que nunca na vida tinha tido uma amiga Lurdes.
Mas fora o nome que naquela altura lhe saíra da boca.
Ele engasgou-se, tossiu até parecer que rebentava, levantou-se da mesa, deu alguns passos, voltou a sentar-se e, afogueado, perguntou apenas:

- Quem??

Ela foi compondo a personagem, ar sério nas palavras mas divertidíssima por dentro, a Lurdes, uma amiga de há anos, e vizinha, decerto que já lhe tinha falado nela!

- E donde é que ela conhece a Olívia? - murmurou ele.

Ela arranjou imediatamente cenário e trabalho apropriado:

- Acho que foram colegas na empresa, mas a Lurdes já se reformou.

A conversa morreu ali, mas nesse dia o almoço foi ainda mais rápido, ele a pedir desculpa de não a acompanhar a casa mas tinha um compromisso e já estava atrasado.
Em casa, ela deixou-se cair no sofá, divertindo-se a imaginar o pânico em que ele não estaria naquela altura, o pânico que iria sempre acompanhá-lo nos dias seguintes, a Lurdes, meu Deus!, o perigo que a Lurdes representava!
Na semana seguinte, ele falhou o almoço. Compromissos inadiáveis.
E nem houve 5 minutos disponíveis para uma bica.
E na outra semana, mais compromissos, cada vez mais inadiáveis.
Na outra, ligou-lhe com voz de caso:

- Temos de conversar.

Minutos depois estavam à mesa do café, ela à espera de que ele começasse a falar, ele de óculos escuros, que punha sempre que lhe queria mostrar que passara a noite em branco com tanta preocupação.
Minutos depois acabou por dizer, num fio de voz:

- Temos de acabar.
- Acabar? - exclamou ela - e porquê?

Mais alguns segundos de silêncio.

- Porque a Olívia já sabe tudo.

Ela estremeceu.

- Sabe tudo? Mas…tudo, o quê?
- Tudo… Sabe que há meses que temos um caso… Até sabe onde é que nos encontramos, onde almoçamos…Tudo…
- E sabe como?
- Foi a tua amiga Lurdes que lhe foi contar… Sabes como são as mulheres… Contou-lhe tudo, absolutamente tudo!

Se ele disse mais alguma coisa, ela nem ouviu: ficou a olhar para a cara dele, sem saber se havia de se sentir muito triste, ou muito furiosa, ou se, muito simplesmente, havia de desatar a rir à gargalhada.
Deixou-o levantar-se da mesa e sair para a rua, sem nenhuma palavra de adeus.

- A Lurdes… - murmurou ela, sorrindo. - Será loira, morena, gorda ou magra?

Chegou a casa, abriu o computador e fez a única coisa possível: escreveu uma história, a sua história, dando assim, finalmente, vida à Lurdes.
Se calhar até era capaz de a mandar para o concurso de contos que a junta de freguesia organizava sempre pelo natal.

«Activa» de Julho de 2011

domingo, 10 de julho de 2011

NOSSA SENHORA E A PÁTRIA

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Por Alice Vieira

AGORA não se rala muito mas, em miúda, sempre que falava no caso, todos atiravam as culpas para cima dos outros, e assobiavam para o ar.
Desde que se lembrava de ser gente e de ter direito a fazer perguntas (o que, lá em casa, era direito que chegava muito tarde) nunca ninguém lhe conseguiu dar resposta cabal.
O pai dizia:

- Eu nunca me meti nisso.

A mãe dizia:

- Eu estava mais para lá que para cá, aceitei o primeiro nome que me propuseram.

E os padrinhos garantiam que nem sequer tinham sido consultados.
Por isso levou a vida inteira sem ter um culpado a quem dirigir setas de raiva pelo facto de, num tempo de Cátias Sofias e Vanessas Alexandras, ter sido baptizada com o nome de Maria de Portugal.
E a mãe, sempre tão pronta a arranjar diminutivos para tudo (“este solinho é uma bênção!”, “ o cozidinho estava que era um regalo!”) — no que tocava a nomes era inflexível:

- Nome é a coisa mais importante que temos, fica no BI a vida inteira, nada de brincadeiras.

Por isso ela nunca foi “Mariazinha”, nem “Mimi”, nem “Micas” – nem, evidentemente, “Portugalzinha”…
Claro que, nos seus primeiros anos de criança, isso era questão que não a incomodava.
Se uma pessoa lhe perguntava o nome, atrapalhava-se um bocadinho a responder, mas havia sempre alguém por perto que a ajudava, e ela não tinha ainda discernimento para descodificar o olhar que no fim a pessoa lhe lançava, “coitadinha, o que te havia de acontecer”.
Mas um dia veio a escola.
E foi aí que tudo se complicou.
Nunca mais na vida há-de esquecer a professora de Religião e Moral, logo na primeira aula, a recordar-lhe a enorme responsabilidade que pesava nos seus ombros:

- Lembra-te, Maria de Portugal: tens de ser um exemplo para todos os teus colegas, um modelo de virtudes, tens de te portar sempre muito bem, porque trazes em ti Nossa Senhora e a Pátria.

Convenhamos que era demais para uma criança de seis anos: chegou a casa e chorou o dia inteiro.
Não fazia a mínima ideia do que quereria dizer “um modelo de virtudes”, mas portar-se sempre bem era destino que não a atraía.
A mãe quis saber o que tinha acontecido, mas ela não foi capaz de explicar.
Nunca soube o que aconteceu depois.
Nem perguntou. A princípio, porque ainda não estava na idade de poder fazer perguntas.
Mais tarde, porque já não lhe interessava.
Mas nunca mais se há-de esquecer da mãe, dias depois, vestindo-lhe uma saia verde e uma blusa vermelha e, no calor daquele feriado de Junho, meter-se com ela no eléctrico até ao Largo de Camões, fazendo-a sair aí e empurrando-a até junto da estátua.
Ela não sabia de quem era aquela estátua, nem lhe interessava por aí além.
A mãe desatou a contar uma história de que ela também não percebeu metade – mas a metade que percebeu deu para entender que, pelo facto de ter aquele nome, aquele era um dia só seu:

- Dia de Portugal! - repetia a mãe. Acrescentando:
- Dia só teu e daquele senhor! - apontando para o alto da cabeça “daquele senhor”, cheia de pombos.

Lembra-se de repente de uma imagem de Nossa Senhora, também rodeada de pombos, que está no livro de Religião.
Olha para os pombos sobre a estátua e tem a certeza de que “aquele senhor” deve chamar-se “Portugal”.
Só pode.
Nossa Senhora e a Pátria.
E sente-se feliz por ter um companheiro de infortúnio.
Quem sabe se um dia também ela vai ter direito a estátua – com muitos, muitos pombos à cabeça.

«Activa» de Junho de 2011

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A FOTOGRAFIA

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Por Alice Vieira

PARA ESQUECER maleitas e desgraças afins, nada melhor do que enchermo-nos de coragem…e desatar a rasgar papéis.
Mas às vezes temos de parar.
Porque de repente nos cai nas mãos, vinda sabe-se lá donde, memória de um tempo que julgávamos esquecido, ou em que já não pensávamos há anos.
Uma fotografia.
Olho para ela e lembro-me de tudo.
E porque os nossos chefes de redacção nos ensinavam que devíamos sempre escrever todos os elementos nas costas das fotografias, esta, que tem o carimbo do DN, diz-me que foi tirada no Teatro da Trindade, a 20 de Setembro de 1978, pelo meu camarada de redacção Luís Saraiva. Os fotografados são Anna Máscolo e Anton Dolin.
Acho que me lembro deste dia do princípio ao fim. Da entrevistas que fiz a ambos, da conversa que se prolongou tarde fora, da verdadeira força da natureza que era (e é…) a Anna, ao lado da aparente fragilidade do Anton Dolin - e eu nas nuvens, porque estava a falar com dois monstros da dança. Fiquei amiga da Anna até hoje.
Sorrio para a fotografia, e tenho a certeza de que nenhum chefe de redacção me daria hoje uma página inteira do jornal do dia (e o DN tinha ainda aquele formato gigantesco!) para eu encher com uma conversa sobre Dança.
E porque estas coisas andam todas ligadas, penso no pouco espaço que há hoje para a cultura, na pouca atenção dos governantes – como se ela fosse dispensável, uma espécie de traste que herdámos dos antepassados e estamos mortinhos por deitar fora. Daí que nem me espante a ideia de acabar com o Ministério da Cultura.

E agora deixem-me terminar esta crónica com uma história do século passado.
Durante a guerra, a Inglaterra fazia esforços titânicos para se aguentar com as despesas. Um dia propuseram a Churchill, para ajudar o “esforço de guerra”, como então se dizia, cortes muito substanciais na cultura.
Churchill recusou. Sem a cultura, “what are we fighting for?” (“por que é que estamos a lutar?”)
Outro tempo, claro.
Outra gente também.
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«JN» de 3 Jun 11

sexta-feira, 20 de maio de 2011

EM LOUVOR DA FRALDA DE PANO

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Por Alice Vieira

VOU CONTAR uma história verdadeira, de há mais de 30 anos.
Nesse tempo eu trabalhava no DN na mesma sala do meu querido amigo Pacheco de Andrade. Dávamo-nos muito bem, nas nossas ideologias completamente opostas, mas nem ele me queria converter a mim nem eu a ele.
Ele tinha acabado de ser pai. Um pai muito tardio, que nunca na vida sonhara ter um dia uma criança nos braços. Os meus filhos eram pequenos mas, de qualquer modo, mais velhos do que o seu bebé, e por isso eu era a sua conselheira para aqueles casos que só são banais quando se tem alguma experiência do assunto.
Um dia o Pacheco de Andrade foi convidado para ir a um programa de televisão. Lembro-me de que na véspera se riu para mim e murmurou: “o que não irá o seu marido escrever depois!”
Pus logo os pontos nos is e expliquei-lhe que tinha dito ao meu marido que, lá pelo facto de o entrevistado ser meu amigo, isso não deveria nunca impedi-lo de escrever o que muito bem quisesse; e, do mesmo modo lhe dizia agora que o facto de eu ser mulher de um crítico que possivelmente o iria desancar, não tinha nada a ver com a nossa amizade.
E o Pacheco de Andrade foi à televisão. E apanhou uma descasca sem apelo nem agravo.
E foi assunto de que nunca mais se falou : eram dois homens completamente opostos, nunca se poderiam entender.
Um dia chego a casa e oiço o meu marido numa estranha conversa telefónica:
“ó homem, faça como eu digo… dobre lá o pano em três partes…agora ponha o bebé ao meio…e ate com dois alfinetes de cada lado…”
O meu marido estava a ensinar o Pacheco de Andrade a pôr a fralda ao filho.
Ficaram amigos para o resto da vida.
Se me lembrei hoje disto é porque acabei de ler que, por causa da crise, as fraldas de pano estão de novo no mercado, a tentar ganhar um território que, durante gerações, lhe pertenceu.
Dão imenso trabalho, pois dão; não há descanso, pois não. Mas, se não chegam para dar cabo da crise, podem ser uma óptima ajuda para a paz entre as pessoas.
«JN» de 20 Mai 11

domingo, 15 de maio de 2011

MAIO QUERIDO MÊS DE MAIO

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Basta às vezes um pormenor, ou uma antiga recordação, para um mês ser diferente dos outros

Por Alice Vieira

MAIO nunca era um mês igual aos outros.
De resto, pensando bem, -- e tirando os meses de Junho, Julho e Agosto que se juntavam na palavra maravilhosa e única que era “Verão” - nenhum mês era igual aos outros.
Janeiro era o frio e aquela tola crença de que um ano novo poderia ser diferente.
Fevereiro era o carnaval mesmo quando o carnaval não era em Fevereiro.
Março eram os aniversários da família inteira, meu Deus, nunca conhecera caso igual, irmãos, primos, tios, cunhados, toda a gente tinha nascido em Março. Era no que davam os ardores de Junho, lembrava-se de ouvir dizer em casa desde os tempos em que nem percebia o que isso queria dizer.
Abril eram as saudades revolucionárias que voltavam, e os infindáveis “e tu lembras-te?” , e a risota descambando na fatal pergunta” onde é que estavas a 25, ó camarada!”, a família dividindo-se entre os que estavam gloriosamente nos seus postos de trabalho, e os que estavam, não menos gloriosamente, a faltar à escola.
Depois com Setembro vinha o cheiro das vindimas, e do mosto a fermentar nas cubas, e o sobrinho génio de 12 anos logo a explicar por que é que os Estados Unidos deviam levantar o embargo. “O embargo a quê?, perguntava sempre alguém, “ o embargo a todas as cubas deste mundo, ora essa!” , e as pessoas calavam-se, com pena que não fosse já Outubro.
Porque Outubro era assim uma espécie de Janeiro antecipado, o início de muita coisa, das escolas, embora agora as escolas até começassem mais cedo, e os planos para uma vida melhor e mais saudável (ginásio, brócolos a todas as refeições, cigarros largados de vez).
Novembro era a passagem para o natal de Dezembro, as listas já a serem planeadas, os projectos das festas, a grande antecipação da maior festa do ano, a única que a fazia esquecer maus momentos, zangas, separações.
Pelo meio do calendário ficava Maio, “Maio, querido mês de Maio, em breve voltarás”, como ela dizia sempre, rindo por nunca ter entendido a razão de aquele mês lhe ter ficado tão encalhado na memória, ainda agora, não há manhã nenhuma em que não acorde a trautear aquela música, e a voz de D. Aurora ao ritmo do metrónomo em cima do piano, “pizzicato!,, Margarida! não deixes descansar os dedos em cima das notas, Margarida! não adormeças, é Maio que vai chegar, Margarida!”, e ela ralada.
Um dia D. Aurora chegou mais cedo, e encontrou-a afadigada ao piano, tentando acompanhar-se num tango de Gardel. Ainda hoje se lembra, os dedos nas teclas, “dó, ré, ré, mi, fá, mi, ré, mi, fá, sol”, e a voz em tremidos,“ por una cabeza /de un nobre potrillo/ que justo en la raya/ afloja al llegar”…e D. Aurora aos gritos como se a sala estivesse em chamas, e todos a correrem para ver o que tinha acontecido, mas não tinha acontecido nada, era só ela a trocar Schuman e o querido mês de maio por aventuras pouco consentâneas com meninas da sua idade e posição.
Gardel foi para o lixo, e o Maio-querido-mês-de-Maio-em-breve-voltarás voltou imediatamente ao seu lugar de sempre.
Com pizzicatos que ela nunca foi capaz de respeitar, e acordes que os dedos não decoraram nunca.
Até que por fim a família e D. Aurora desistiram dela.
Mas o mês de Maio tinha ficado para sempre contaminado.

«ACTIVA» de Maio 2011

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O MEU AMIGO JOÃO MARIA

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Por Alice Vieira

NESTES ÚLTIMOS tempos parece que anda qualquer coisa no ar que nos vai levando, um a um, aqueles amigos de que ainda precisamos tanto.
Dizem-me, em jeito de consolo, “já tinham uma certa idade”.
É mentira: nunca se tem uma “certa idade”. Porque nunca há uma “idade certa” para morrer.
Há amigos de que continuo a ter muitas saudades, e de quem ainda nem sequer tive tempo de fazer o luto - e, de repente, desaparece o João Maria Tudela.
Conhecia-o desde o dia em que, nos finais dos anos 60, ele me telefonou a pedir autorização para cantar poemas de uns jovens autores, que lera no “Diário de Lisboa-Juvenil”. Digo-lhe que não sou eu que tenho de dar autorização mas, de qualquer modo, previno-o:

- Olhe que são constantemente cortados pela censura. Nem sei como esses passaram. Os censores deviam estar distraídos.
- Não me importo – respondeu - Gosto, canto.

Musicou-os, cantou-os em espectáculos ao vivo, e incluiu-os num LP que editou.
Um dos poemas era da Hélia Correia, outro do Jorge Massada, dos restantes já esqueci o nome.
Ficámos amigo – ele sempre com uma enorme preocupação em tentar mostrar às pessoas que não era só o cantor de “Kanimambo”.
Falávamos ao telefone, almoçávamos muitas vezes – e era um prazer conversar com ele.
Ligou-me há poucas semanas, estava eu de partida para os Estados Unidos – e confesso que não lhe dei a atenção que devia. Mas achei-o, pela primeira vez nestes anos todos, muito preocupado com a família. A Filomena, o Joãozinho e a Carlota estavam sempre presentes em todas as conversas mas, desta vez, senti que o futuro deles o afligia muito.
Tentei acalmá-lo, devo ter-lhe dito qualquer coisa parva, género “isto tudo se resolve”, e prometi ligar quando chegasse.
Já não liguei.
Chego à Basílica da Estrela e ficamos todos nós, os seus amigos, naquela posição estranha de ter muita vontade de chorar mas de só nos rirmos, lembrados das histórias delirantes que com ele tínhamos passado.
E eu acho que é com o sorriso dos amigos que se ganha a eternidade.
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«JN» de 6 Mai 11

terça-feira, 3 de maio de 2011

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O SR. PEDROSO DE PROVIDENCE

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Por Alice Vieira

MAL ENTRO na loja e logo ele me diz “já a vi, já sei quem é e o que faz!”- abrindo de imediato o jornal da comunidade portuguesa, que conta a minha vida e o que ando a fazer desde que aterrei na costa leste dos EUA.

Há 50 anos que o Sr. Pedroso está atrás do balcão do seu “Friends Market”, na Brooks Street, de Providence. Sempre só ele, sozinho, na aparente fragilidade dos seus 90 anos, atendendo a freguesia.

Eu tinha andado pela cidade, feliz por ter encontrado todas as referências que procurava - casas, lojas, pontes, a estação – de uma série (“Providence”) que, meses a fio, a televisão passara, e agora , de repente, dava por mim a aterrar numa nesga de Portugal, numa loja que vendia tudo.

Prateleiras do chão ao tecto, atulhadas de garrafões de azeite, de óleo, garrafas de vinho, conservas, batatas, cebolas, trens de cozinha, detergentes, perfumes, sabonetes Ach Brito e Patti, galos de Barcelos, Nossas Senhoras de porcelana, bibelôs de gesso, tachos de barro, bolos, chocolates, canetas, blocos de papel, discos de vinil (“Vicente canta Afonso Lopes Vieira”…), números desgarrados da “Caras”,da “Visão”, e da “Maria”.

Mas do que verdadeiramente o Sr. Pedroso se orgulha (para lá dos portugueses ilustres que já entraram na sua loja, “até o Saramago!”) é dos dicionários de português, a cheirarem a novo, acabados de chegar, já conforme o acordo. Entristece-o que, na televisão da sua pátria, se fale tão mal :
- Ensine-os que não podem dizer “há três anos atrás!” Havia de ser há três anos à frente, não?
É o erro que mais lhe custa ouvir, fica logo com vontade de protestar. Prometo que farei tudo o que estiver ao meu alcance — e ele enche-me de amêndoas (“são da Confeitaria da Ajuda, já viu?”), de canetas, de calendários.

Vou já a sair, quando o ouço : “ah, e também vendo o “Jornal de Notícias”, mas a esta hora já não tenho nenhum.”

E sorri, na certeza de ter feito bem o seu trabalho de casa.
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«JN» de 22 Abr 11

sexta-feira, 15 de abril de 2011

DIAS ÚTEIS

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Por Alice Vieira

TODAS as manhãs, nestes últimos dez anos, fazia o mesmo percurso.
Com excepção para os dias de folga.
Aí mudava um bocadinho, embora os passos fossem sensivelmente os mesmos, nos mesmos lugares. Via apenas outros rostos, os dos dias de semana estavam já, àquela hora, encaixados nos seus guichés, nos seus balcões, atrás de secretárias.
Nos dias de folga era ligeiramente diferente, o rapaz da leitaria dizia “hoje vem mais tarde”, ela respondia “é o meu dia de folga”, sempre, durante estes dez anos que ali tem vivido.
Entretanto o rapaz envelheceu dez anos, tal como ela, até já tem um filho de 7 anos, soube-o pela porteira, porque ela não gosta de grandes intimidades. Sempre falou apenas o que era necessário falar. Nem os vizinhos consegue encaixar nos seus andares, é “bom dia” ou “boa tarde” se os encontra no elevador, e não mais que isso.
Há dez anos o rapaz da leitaria nem sequer tinha barba e fazia uma voz esganiçada quando ela entrava, “bica e croissant para a D.Laura!”.
Às vezes não lhe apetecia nada bica e croissant, mas tinha a sensação de estar a cometer qualquer pecado se, em vez disso, pedisse meia de leite e um queque.
- Vem hoje mais tarde! — diz-lhe o rapaz da leitaria
E ela já não responde “é o meu dia de folga”, porque a partir de agora todos os dias são de folga.
Começa a pensar em quantos cafés bebeu, em quantos croissants comeu nestes anos todos, mas desiste, não são pensamentos próprios para a sua idade, e na sua idade só se devem ter pensamentos úteis, que sirvam para alguma coisa.
Tal como as conversas.
- Como vai o seu filho na escola? - pergunta ao rapaz, na hora de pagar, e logo se admira das suas palavras, que necessidade tinha de entrar em intimidades .
- Lá vai…- respondeu ele, admirado também. (Mais tarde dirá ao patrão, “a velhota do 54 estava hoje muito esquisita”, e o patrão há-de responder, “é da idade, coitada! qualquer dia dá-lhe um badagaio e vai desta para melhor”)
Ela levanta-se da mesa, olha para o relógio como sempre tem feito, embora, a partir de agora não haja horários a cumprir, e procura as chaves dentro da mala.
Atravessa a placa, resmunga qualquer coisa quando vê o caixote do lixo ainda na rua, entra em casa.
Fecha a porta e encosta-se a ela.
- E agora? – diz para si própria.
É então que ouve o telefone.
Ninguém lhe costuma telefonar para o fixo, está quase decidida a nem atender, mas muda de ideias e corre até à sala, e do lado de lá perguntam “é a D. Elisa?”, e ela ri e responde, quase nem se reconhecendo, “não, é a D. Laura, não serve?”
E a pessoa deve ter sentido de humor e nenhuma pressa, ou se calhar também está pela primeira vez em casa e não no emprego, porque ainda fica uns minutos à conversa, rindo de coisa nenhuma.
Quando desliga, a casa parece-lhe cheia de barulhos que não reconhece. Quem estará no andar de cima com aspirador àquela hora?
Então volta a vestir o casaco, e vai ao café, e desta vez há-de pedir meia de leite e um queque, e há-de saber a história toda do filho do rapaz — tudo, para conseguir esquecer a sua própria casa, à luz da manhã de um dia útil.

«ACTIVA» de Abril 2011

sexta-feira, 8 de abril de 2011

UM CURSO SUPERIOR

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Por Alice Vieira

- Ó PROFESSORA, que prazer levá-la no meu táxi!”

Depois de um dia de muito trabalho, agrada-me ser recebida tão efusivamente, embora emende o tratamento, e diga que não sou professora, mas ele ri-se e diz “claro que é, então eu não sei!, até já foi à escola dos meus netos!”
Desisto, enquanto ele fala, olhando de vez em quando pelo retrovisor a ver se estou a segui-lo.
Conta-me a vida toda, desde os tempos difíceis de infância numa aldeia perto da Guarda, onde só se lembra de ter calçado sapatos no dia em que foi fazer o exame da 4ª classe, até à ida para África e o regresso em 75.
Tudo para me explicar o amor pela sua professora, e o desgosto que sentiu quando ela morreu, “igual ao que senti pela morte da minha mãe”, garante.
“Porque, ó Professora!, a nossa professora de instrução primária era mesmo importante! Agora é que já ninguém lhes liga nada, mas no meu tempo – olha pelo retrovisor e corrige--”no nosso tempo, a escola era uma coisa séria. E o que a gente aprendia!...”
Volta a olhar pelo retrovisor e eu aceno com a cabeça, claro, uma 4ª classe tirada há 50 e tal anos era outra coisa, e ele dá quase um salto, “outra coisa?? Era um curso superior! A gente saía a saber tudo! A gente fazia problemas complicados, a gente sabia rios, sabia serras…”
Nova piscadela pelo retrovisor.
“Ó professora, ainda se lembra das serras? Era assim, deixe cá ver… Peneda, Suajo, Gerês, Arga…” E lá vai ele serras acima, serras abaixo, entre curvas e contracurvas, e de repente estou a chegar a casa, e ele “Nogueira, Bornes, Marão…”, e eu “é já aí nessa esquina!”, e ele “Mogadouro, Moncorvo, Gralheira…”, e eu, “é mesmo aqui!”, e ele lá trava às quatro rodas, felizmente não há ninguém atrás de nós, pago, dá-me o troco, deseja-me muitas felicidades e, enquanto abro a porta, remata: “Leomil, Marofa e Lapa!”
Já vou a entrar em casa e ele, da janela do táxi, ainda grita “Era um curso superior, ó Professora!”
Certamente já a atacar as serras de outro sistema.

«JN» de 8 Abr 11

sábado, 26 de março de 2011

A CHEGADA DA PRIMAVERA

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Por Alice Vieira

TENHO a casa cheia de lírios.

Acontece que os lírios e eu nunca fomos amigos íntimos.

Para mim, lírios eram apenas aquela flor que costumava entrar sempre nas histórias do Zé Gomes Ferreira, à mesa do Monte Carlo (que então nem sonhava que um dia viria a chamar-se Zara) .

Na sua juventude, o Zé Gomes Ferreira tinha publicado uma colectânea de bucólicos poemas, a que chamara “Lírios do Monte”. Anos mais tarde, num passeio ao campo com um amigo, umas flores chamaram-lhe a atenção: "que bonitas! Que flores serão aquelas?” E o amigo respondeu: "então, são os lírios do monte de que tu falaste tanto no teu livro…”

O Zé Gomes contava isto muitas vezes, e ria muito, e nós ríamos com ele, e ele dizia-me, a mim, jovem a tentar entrar naquele mundo privilegiado, "nunca escrevas sobre aquilo que não conheces! Lembra-te sempre da vergonha dos meus lírios…”
Foi lição que nunca esqueci.

Mas voltando aos lírios.

Sempre me pareceram flores tristes, daquelas que se mandam para aos funerais, tombando ao peso das faixas de “saudade eterna”.

Por isso quando há dias cheguei a casa e encontrei à minha porta um ramo gigantesco de lírios – os meus vizinhos são gente honesta, nunca me roubam as flores que tantas vezes se estendem pelo patamar à minha espera…- até me senti mal.

Mas as palavras do amigo que as mandara reconciliou-me com elas. Garantia ele — que sabe tudo sobre flores, e tem o dom de adivinhar quando eu preciso delas mais que de remédios - que os lírios são as flores da primavera.

E rematava:

“És como o Zé Gomes. Não percebes nada de lírios”.

E ali fiquei, parada no patamar, os lírios aos meus pés, chaves na mão e a tentar atinar com a fechadura, e a rir como há muito tempo não ria – e o meu riso a misturar-se com o riso do Zé Gomes, de repente tão vivo, e com o riso do Carlos, e com o riso do Mário, e com o riso do Abelaira, e com o riso de todos nós à mesa do Monte Carlo.
Todos, de repente, tão vivos.

E foi assim que a primavera entrou, finalmente, em minha casa.

«JN» de 25 Mar 11

sexta-feira, 11 de março de 2011

UMA QUESTÃO DE PORMENOR

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Por Alice Vieira

TODOS SABEMOS como as vozes ficam distorcidas através de altifalantes.
Mas que as palavras se pudessem transformar noutras – isso nunca me tinha acontecido.
Estava eu na sala de espera de um hospital, aguardando que, do altifalante, uma voz dissesse o meu nome.
Li o jornal, fiz as palavras cruzadas, tirei da mala uma edição de bolso de um livro do Machado de Assis, ao mesmo tempo que ia ouvindo os nomes que desfilavam.
Até que a espera me pareceu longa demais. Tenho frequentado com regularidade aquele hospital, e nunca me acontecera esperar tanto.
Cheia de sorrisos e de “se faz favor” e de ”desculpe” — lá fui ao balcão das informações saber o que se passava.
- Já foi chamada há mais de meia hora! – gritam-me – Estão para ali na conversa, nem ouvem, e depois queixam-se!
Eu não tinha estado na conversa, e tenho bom ouvido.
Protestei eu, protestou ela, voltei a protestar eu – até que a convenço a ir lá dentro informar-se melhor.
Não demorou nem cinco minutos.
Ar triunfante.
- Claro que a chamaram! Maria de Jesus Pereira! Chamaram-na até mais do que uma vez!
Explico-lhe, com a calma possível, que eu não me chamo Maria, “Jesus” é o meu segundo nome, e “Pereira” é um dos muitos apelidos com que carrego, mas nem o último, nem sequer o penúltimo. Adianto-lhe que estou habituada, em hospitais, a que me chamem Alice de Jesus Fonseca (os dois primeiros nomes e o último, como é normal nestas circunstâncias) mas nunca, até então, Maria de Jesus Pereira.
Olha para mim e encolhe os ombros:
- Se a gente se preocupasse com pormenores desses…
E manda-me entrar.
A minha neta mais nova, ainda sob os efeitos do Jardim-escola, quando ouve alguém perguntar “quem quer….” - levanta logo o braço, mesmo antes de saber do que se trata.
Acho que lhe vou seguir o exemplo: assim que o altifalante chamar alguém, apresento-me logo.
Se não for eu, paciência. Quem é que se preocupa com pormenores desses.
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«JN» de 11 Mar 11

sexta-feira, 4 de março de 2011

A LEI DE QUEM?

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Por Alice Vieira

OLHOU PARA O ÉCRAN do telemóvel e voltou a não atender. Ainda estava aborrecida. Farta daquele tom de superioridade com que ele lhe falara. Está bem, não era de grandes leituras, mas não era obrigada a conhecer toda a gente que ele conhecia, ou era?
Fez um esforço para recordar o nome que ele tinha dito.
Qualquer coisa que soava a “Mârfi” mas que se calhar até nem se devia escrever assim, era bem capaz de levar “ph” pelo meio, ou “y” no fim, estrangeirices.
Ele fizera questão de a acompanhar à entrevista, mas já tinham saído atrasados, e depois o trânsito, e o estacionamento impossível, quando entraram onde é que já iam as três horas. A rapariga da recepção suspirou fundo, olhou para o relógio, e disse-lhe que esperasse, que ia ver se conseguia que ela entrasse no fim.
Ela verificou mais uma vez a papelada e descobriu que lhe faltava um dossier, o que atestava o bom trabalho feito na empresa anterior, donde saíra só porque a crise obrigara a uma drástica redução de pessoal.
Foi então que ele começou com aquele disparate todo, que não valia a pena sequer ela esperar para ser recebida, estava na cara que não ia conseguir nada, o atraso de quase uma hora, o dossier que faltava, e o ar esbaforido dela, caramba!, quem vem a uma entrevista de emprego tem de se cuidar um pouco - e ela a dizer que eram coisas que aconteciam, e que até se tinha cuidado mas a chuva e o vento e a corrida para chegarem ali é que a tinham posto naquele estado, mas também não era nada demais, nem aquilo era um concurso de beleza.
“Não vai dar nada”, repetia ele, “é a lei de Mârfi…
“De quem?”
Ele olhou-a, espantado:
“De Mârfi... Não me digas que não conheces a lei de Mârfi?!”
“Porquê? Devia?”
“A Lei de Mârfi!”, repetia ele, “ se uma coisa puder correr mal, corre mal de certeza! Se houver três maneiras de um coisa correr mal, ainda há uma quarta que corre pior! Quando uma coisa começa mal, só pode piorar!”
Parou para tomar fôlego:
“Nunca ouviste?”
“Já. É aquele provérbio que a minha avó está sempre a repetir: o que nasce torto tarde ou nunca se endireita”
E ele a barafustar, que ela era a ignorância em estado puro, qual provérbio, qual avó, aquilo era a lei de Mârfi, como é que ela podia ter chegado àquela idade sem saber a lei de Mârfi!, e se as coisas tinham começado mal não valia a pena esperar porque os resultados só podiam ser piores, o melhor era irem embora.
Ela insistiu, ele que fosse, que ela ficava. Ele foi. Ela ficou.
Em casa, cansada de todas as horas em que olhara para a menina da recepção, vendo a porta do gabinete abrir e fechar, pessoas a entrarem e a saírem, e ela na cadeira, à espera — não lhe apeteceu atender as chamadas dele. Se calhar até era capaz de estar com esse tal Mârfi, a rirem ambos à sua custa.
Depois, lá cedeu.
“Só agora?”
“Que é que queres, entraram mais de 20 antes de mim. Mas depois, olha, nem cinco minutos lá estive. Foi entrar e sair.”
“Eu não disse? Começou tudo mal… Mais valia teres vindo comigo!”
Despachou-a rapidamente, prometeu-lhe um café para o dia seguinte e desligou.
E ela ficou a olhar para o telemóvel, com pena de não ter tido tempo de lhe dizer que começava a trabalhar no princípio da semana.
Com pena de nem lhe ter pedido que agradecesse por ela a esse tal Mârfi, fosse ele quem fosse, com “ph” pelo meio ou “y” no fim, que de certeza tinha metido uma cunha - e das fortes.
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«ACTIVA» de Março 2011

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

UMA QUESTÃO DE COIMAS

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Por Alice Vieira

O MUNDO está louco. (Isto por acaso soava melhor se fosse “tá”, mas o acordo ortográfico, que transformou todos os “espectadores” em “espetadores”, ainda não chegou a tanto).

Claro que há as grandes, as enormes, as desvairadas loucuras, que implicam sangue e mortos e massacres, com as pessoas a tentarem sobreviver, sabe-se lá como, e a tentarem fugir, sabe-se lá para onde.

Mas depois há aquelas loucuras pequeninas, quase nem se dá por elas, começam devagarinho, uma pequena notícia num dia e no outro já se esqueceu, que o pessoal tem mais que fazer.

Então parece que pelos Açores há quem proponha castigar os pais que não acompanhem os filhos nos estudos.

Mas castigar mesmo.

Com multas e perdas de direitos sociais.

“Coimas”, para parecer ainda pior. (Quando uma multa passa a coima, estamos feitos.)

Imaginem lá no Pico, nas Flores, na Graciosa, seja onde for, um desgraçado a chegar a casa derreado do trabalho, e ainda ter de dizer «ó Zé, vai lá buscar Os Lusíadas para a gente dividir as orações, senão o professor queixa-se, o governo sabe, e lá se vai o abono!»

No nosso país nada se constrói sem ameaças ou mão pesada.

Alguma coisa não corre bem? Coima para cima dela!

Não há sequer a preocupação de, como me disse um dia um extraordinário polícia que me desculpou uma infracção (levezinha…), “fazer pedagogia”.

Não seria preferível, nos Açores (ou em qualquer outro sítio…) ,explicar aos pais que têm de saber se os seus filhos vão ou não vão à escola, têm ou não têm aproveitamento, essas coisas?

Fazer pedagogia?

Não.

À partida, é logo a ameaça, é logo o chicote.

A gente manda com a coima (hoje estou apaixonada por esta palavra…) e depois logo se vê.

Se, quando os meus filhos andavam na escola, esta lei estivesse em vigor, as finanças tinham-se endireitado num instante: nunca me lembro de os ter ajudado nos trabalhos de casa, nem de alguma vez lhes vistoriar os cadernos.

(O que me vale é viver em Lisboa, senão ainda esta tardia confissão me levava a ser condenada, e a pagar retroactivos…)
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«JN» de 25 Fev 11