domingo, 17 de julho de 2011

A AMIGA LURDES

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Por Alice Vieira

DESDE o princípio que as amigas lhe tinham feito ver o disparate que era ter um caso com um homem casado. Mas ela encolhia os ombros, ou respondia com a frase estafada, “já somos ambos adultos para sabermos o que andamos a fazer”.
Ao princípio tudo tinha sido muito excitante, telefonemas a desoras, camélias no dia de anos, jantares prolongados ao som de velhas músicas francesas e italianas, tudo com um ligeiro sabor a aventura adolescente, do tempo em que namorava às escondidas dos pais.
Mas, a partir do momento que ele se reformou, as coisas complicaram-se — e, sem o trabalho a dar-lhe cobertura, cedo entrou numa rotina que a exasperava: os almoços no mesmo restaurante ao fim da rua, o amor quase cronometrado, e aquele olhar de fera acossada, com medo de ser apanhado.
Um dia ela explodiu: “nunca saímos deste gueto! Tens medo que a tua mulher nos encontre?”
Ele simulou um ar terrivelmente ofendido, e garantiu que nunca pensava na mulher, “se estou aqui, é porque é contigo que eu quero estar!“
Mas foi acrescentando:

- Tens de entender que agora, sem ter de ir trabalhar, as minhas saídas de casa são mais complicadas…

Um dia, no início de um almoço no restaurante do costume, e porque lhe apeteceu ser um pouco cruel e fazê-lo torcer-se ainda mais de pânico, lembrou-se de dizer:

- A minha amiga Lurdes conhece a tua mulher.

Ela, que nunca na vida tinha tido uma amiga Lurdes.
Mas fora o nome que naquela altura lhe saíra da boca.
Ele engasgou-se, tossiu até parecer que rebentava, levantou-se da mesa, deu alguns passos, voltou a sentar-se e, afogueado, perguntou apenas:

- Quem??

Ela foi compondo a personagem, ar sério nas palavras mas divertidíssima por dentro, a Lurdes, uma amiga de há anos, e vizinha, decerto que já lhe tinha falado nela!

- E donde é que ela conhece a Olívia? - murmurou ele.

Ela arranjou imediatamente cenário e trabalho apropriado:

- Acho que foram colegas na empresa, mas a Lurdes já se reformou.

A conversa morreu ali, mas nesse dia o almoço foi ainda mais rápido, ele a pedir desculpa de não a acompanhar a casa mas tinha um compromisso e já estava atrasado.
Em casa, ela deixou-se cair no sofá, divertindo-se a imaginar o pânico em que ele não estaria naquela altura, o pânico que iria sempre acompanhá-lo nos dias seguintes, a Lurdes, meu Deus!, o perigo que a Lurdes representava!
Na semana seguinte, ele falhou o almoço. Compromissos inadiáveis.
E nem houve 5 minutos disponíveis para uma bica.
E na outra semana, mais compromissos, cada vez mais inadiáveis.
Na outra, ligou-lhe com voz de caso:

- Temos de conversar.

Minutos depois estavam à mesa do café, ela à espera de que ele começasse a falar, ele de óculos escuros, que punha sempre que lhe queria mostrar que passara a noite em branco com tanta preocupação.
Minutos depois acabou por dizer, num fio de voz:

- Temos de acabar.
- Acabar? - exclamou ela - e porquê?

Mais alguns segundos de silêncio.

- Porque a Olívia já sabe tudo.

Ela estremeceu.

- Sabe tudo? Mas…tudo, o quê?
- Tudo… Sabe que há meses que temos um caso… Até sabe onde é que nos encontramos, onde almoçamos…Tudo…
- E sabe como?
- Foi a tua amiga Lurdes que lhe foi contar… Sabes como são as mulheres… Contou-lhe tudo, absolutamente tudo!

Se ele disse mais alguma coisa, ela nem ouviu: ficou a olhar para a cara dele, sem saber se havia de se sentir muito triste, ou muito furiosa, ou se, muito simplesmente, havia de desatar a rir à gargalhada.
Deixou-o levantar-se da mesa e sair para a rua, sem nenhuma palavra de adeus.

- A Lurdes… - murmurou ela, sorrindo. - Será loira, morena, gorda ou magra?

Chegou a casa, abriu o computador e fez a única coisa possível: escreveu uma história, a sua história, dando assim, finalmente, vida à Lurdes.
Se calhar até era capaz de a mandar para o concurso de contos que a junta de freguesia organizava sempre pelo natal.

«Activa» de Julho de 2011

domingo, 10 de julho de 2011

NOSSA SENHORA E A PÁTRIA

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Por Alice Vieira

AGORA não se rala muito mas, em miúda, sempre que falava no caso, todos atiravam as culpas para cima dos outros, e assobiavam para o ar.
Desde que se lembrava de ser gente e de ter direito a fazer perguntas (o que, lá em casa, era direito que chegava muito tarde) nunca ninguém lhe conseguiu dar resposta cabal.
O pai dizia:

- Eu nunca me meti nisso.

A mãe dizia:

- Eu estava mais para lá que para cá, aceitei o primeiro nome que me propuseram.

E os padrinhos garantiam que nem sequer tinham sido consultados.
Por isso levou a vida inteira sem ter um culpado a quem dirigir setas de raiva pelo facto de, num tempo de Cátias Sofias e Vanessas Alexandras, ter sido baptizada com o nome de Maria de Portugal.
E a mãe, sempre tão pronta a arranjar diminutivos para tudo (“este solinho é uma bênção!”, “ o cozidinho estava que era um regalo!”) — no que tocava a nomes era inflexível:

- Nome é a coisa mais importante que temos, fica no BI a vida inteira, nada de brincadeiras.

Por isso ela nunca foi “Mariazinha”, nem “Mimi”, nem “Micas” – nem, evidentemente, “Portugalzinha”…
Claro que, nos seus primeiros anos de criança, isso era questão que não a incomodava.
Se uma pessoa lhe perguntava o nome, atrapalhava-se um bocadinho a responder, mas havia sempre alguém por perto que a ajudava, e ela não tinha ainda discernimento para descodificar o olhar que no fim a pessoa lhe lançava, “coitadinha, o que te havia de acontecer”.
Mas um dia veio a escola.
E foi aí que tudo se complicou.
Nunca mais na vida há-de esquecer a professora de Religião e Moral, logo na primeira aula, a recordar-lhe a enorme responsabilidade que pesava nos seus ombros:

- Lembra-te, Maria de Portugal: tens de ser um exemplo para todos os teus colegas, um modelo de virtudes, tens de te portar sempre muito bem, porque trazes em ti Nossa Senhora e a Pátria.

Convenhamos que era demais para uma criança de seis anos: chegou a casa e chorou o dia inteiro.
Não fazia a mínima ideia do que quereria dizer “um modelo de virtudes”, mas portar-se sempre bem era destino que não a atraía.
A mãe quis saber o que tinha acontecido, mas ela não foi capaz de explicar.
Nunca soube o que aconteceu depois.
Nem perguntou. A princípio, porque ainda não estava na idade de poder fazer perguntas.
Mais tarde, porque já não lhe interessava.
Mas nunca mais se há-de esquecer da mãe, dias depois, vestindo-lhe uma saia verde e uma blusa vermelha e, no calor daquele feriado de Junho, meter-se com ela no eléctrico até ao Largo de Camões, fazendo-a sair aí e empurrando-a até junto da estátua.
Ela não sabia de quem era aquela estátua, nem lhe interessava por aí além.
A mãe desatou a contar uma história de que ela também não percebeu metade – mas a metade que percebeu deu para entender que, pelo facto de ter aquele nome, aquele era um dia só seu:

- Dia de Portugal! - repetia a mãe. Acrescentando:
- Dia só teu e daquele senhor! - apontando para o alto da cabeça “daquele senhor”, cheia de pombos.

Lembra-se de repente de uma imagem de Nossa Senhora, também rodeada de pombos, que está no livro de Religião.
Olha para os pombos sobre a estátua e tem a certeza de que “aquele senhor” deve chamar-se “Portugal”.
Só pode.
Nossa Senhora e a Pátria.
E sente-se feliz por ter um companheiro de infortúnio.
Quem sabe se um dia também ela vai ter direito a estátua – com muitos, muitos pombos à cabeça.

«Activa» de Junho de 2011