sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

EM DEFESA DAS AVÓS

.
Por Alice Vieira

DEI COMIGO há dias a assistir a um programa, destinado ao público feminino, onde se fazia, mais uma vez, a recorrente afirmação de que não há melhor infantário nem escola infantil do que a casa dos avós.

Confesso que acho estranho que, num tempo em que as avós são cada vez mais novas, e cada vez mais activas, não se ergam vozes feministas a contrariar essa peregrina ideia de avó-fada-do-lar.

Parece que ser mulher, com todos os seus direitos, e no pleno gozo das suas capacidades, tem prazo de validade.

Ficar em casa a tratar de marido e filhos — isso nunca.

Ficar em casa a tratar de marido e netos – parece quase um dever.

Claro que não estou a falar destes terríveis tempos de crise que atravessamos, em que é preciso cortar despesas e a casa da avó é mais barata que um infantário. Mas isso é uma solução de recurso, uma emergência.

Mas quem falava naquele programa, não falava de crise.

Falava do melhor para as crianças. Em todos os tempos.

Como se sabe, nem sequer é o melhor para as crianças que, desde pequeninas, precisam de regras, de aprender a viver com os outros, e de entenderem que não são o centro do mundo.

E se não é o melhor paras as crianças, muito menos o é para as avós.

Que, tal como as mães, trabalham.

Que, tal como as mães, contribuem para fazer progredir este país.

Quando se diz que as mães trabalham fora de casa, toda a gente acha normal e louvável, pois claro!, já lá vai o tempo de ser doméstica!

Mas quando uma avó explica que não pode, por muito que os ame de paixão, ficar com os netos em casa, porque sai às 8 da manhã e só volta às oito da noite, ou porque tem um trabalho para entregar, todos olham para ela como se estivessem diante de uma aberração da natureza.

E era aí que eu gostava de ver as feministas saírem em sua defesa. Mas não saem.

Se calhar porque também elas precisam de alguém a quem deixar as crianças.
.
«JN» de 28 Jan 11

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

NA MORTE DE VÍTOR ALVES

.
Por Alice Vieira

ESTAVA EM VISEU, quando um SMS me avisou: “Morreu o Vítor Alves”.
Infelizmente era uma notícia daquelas que se esperam — mas que, no fundo, nunca se esperam. Porque todos os nossos amigos são eternos e, quando descobrimos que não são, temos muita dificuldade em acreditar.
Vítor Alves pertencia àquele grupo de homens a quem devemos viver hoje em liberdade e em democracia. Para as gerações mais novas, isto parece um dado tão adquirido que nem lhes passa pela cabeça que alguma vez pudesse ter sido doutra maneira.
Mas foi. Durante muitos anos.
Até que um dia estes homens decidiram arriscar tudo -- vida, liberdade, carreira, saúde, família—em nome de um sonho que, com desvios e loucuras e erros e recuos, ainda é o que hoje nos mantém vivos e actuantes.
Esta é uma dívida que nunca poderemos pagar — nem eles estavam à espera disso.
Mas é muito triste descobrir como as pessoas têm a memória curta.
Foi vergonhosa a maneira como a morte de Vítor Alves foi tratada nos meios de comunicação — já para não falar das muitas horas de um velório quase vazio, quando deveria ter estado SEMPRE, em todas as horas, cheio de gente.
Atirada a notícia para o rodapé dos telejornais — que se enchiam do assassínio de Carlos Castro em Nova Iorque, com direito a um rol de jornalistas em directo, e entrevistas a meio mundo.
Reduzida, num jornal dito de referência, no dia a seguir ao enterro, a uma pequena fotografia em que se via a parte de trás do carro funerário e dois homens a ajudar a colocar o retrato junto do caixão — enquanto páginas inteiras continuavam reservadas ao crime passional de Nova Iorque.
Mas Vítor Alves não se meteu em escândalos, não morreu num hotel de luxo em Nova Iorque, não alimentou crónicas cor-de-rosa, nem sequer pertencia ao jet-set.
Pecados por demais suficientes para o atirar para o limbo dos que não merecem mais que uma breve evocação.
Mas se calhar é aí que ele fica bem — ao lado dos que deram tudo pela pátria, e que a pátria, vergonhosamente, esqueceu.
.
«JN» de 14 Jan 11

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O TRICOT

.
Por Alice Vieira

ABRIU A JANELA na manhã daquele domingo de Janeiro, suspirou fundo e murmurou:
“Desta vez é que vai ser”
A filha tinha acabado de se arranjar, pronta para o ritual dos almoços de domingo, quando ela lhe descobriu um piercing na língua e uma tatuagem a meio do pescoço.
Engoliu em seco e repetiu:
“Desta vez é que vai ser”
Desde miúda que sente sempre que os primeiros dias de Janeiro são mágicos, porque tudo pode acontecer.
A irmã ria-se dela.
A irmã ria de tudo, parecia viver noutro mundo.
Mesmo as coisas difíceis de suportar (os ralhos do pai, agora a morte da mãe, a deixá-la sozinha; os namorados que apareciam e desapareciam da sua vida) era como se não lhe tocassem: sentava-se no sofá, e tricotava o dia inteiro.
Desde muito nova que era assim.
A mãe ralhava, o pai ralhava, os namorados ralhavam — e ela corria a enfiar-se no sofá a fazer malha.
Ela fora sempre muito diferente da irmã, se gritavam ela gritava também, respondia sempre, não se ficava.
Mas ainda continuava a pensar em Janeiro como num tempo de promessas cumpridas, de novos planos postos em prática.
Por isso logo nos primeiros dias do ano limpava a casa com um vigor renovado, deitava fora baldes e baldes de lixo acumulado, respirava outro ar.
Mas havia rituais a que não podia fugir.
Quando há dois meses a mãe morrera, pensou que o ritual dos almoços de domingo morrera com ela. Os silenciosos almoços de domingo que acabavam, inevitavelmente, com o marido aos berros assim que entravam em casa, e a filha a berrar ainda mais.
Mas logo a irmã avisara que tudo ia ser como dantes, e que ninguém se lembrasse de faltar.
A irmã tinha uma maneira subtil de os fazer rebentar de remorsos, quando murmurava, entre dois sorrisos, “ a mãe não ia gostar nada…”
Então lá iam todos, cada um sonhando estar noutro lugar, com outras pessoas, falando de outras coisas.
À uma hora em ponto a terrina da sopa vinha para a mesa e o silêncio era geral.
“À mesa não se conversa”, tinha sido sempre a filosofia dos pais. Por isso os silenciosos almoços de domingo eram um suplício, que só terminava quando a irmã se levantava da mesa e começava a tricotar — e cada um podia ir à sua vida.
“Que seca…”murmurava a filha, vestida de preto dos pés à cabeça, a viver o seu período gótico.
(No primeiro domingo a seguir ao enterro, a irmã olhara para a miúda e ficara imenso tempo abraçada a ela a fazer-lhe festas no emaranhado do cabelo, pensando que o preto era a expressão do seu desgosto pela morte da avó, e ninguém teve coragem de a desiludir)
“Estou a ficar sem pachorra nenhuma para estas fantochadas”, murmurava o marido, desfazendo finalmente o nó da gravata.
“Tu nunca tiveste pachorra para nada…”, respondia ela.
Era o rastilho. E logo começava a zaragata, ela a dizer coisas que até nem queria, ele a dizer coisas que até nem pensava, a filha a ameaçar tipo bazar dali rapidamente, se aquela cena tipo não acabasse.
Hoje lá vão todos de novo, em romaria.
E ela tem a certeza de que o regresso a casa vai ser complicado, porque o marido ainda não descobriu o piercing nem a tatuagem da miúda e, quando descobrir, a discussão vai ser das valentes. Discussão em casa, evidentemente, porque a irmã não permite coisas dessas lá em casa, “a mãe não ia gostar nada”.
Suspira fundo mais uma vez, antes de fechar a janela.
“Desta vez é que vai ser…”, murmura.
Desta vez é que se vai encher de coragem e pedir à irmã que a ensine a fazer malha.
.
«Activa» de Janeiro 2011