sábado, 30 de outubro de 2010

SAUDADES DA NÈLITA

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Por Alice Vieira

Por que nos lembramos de umas pessoas e esquecemos outras? O que leva a nossa memória a ser selectiva? Seja o que for, ela terá as suas razões.

AS VELHAS DA CASA sempre lhe tinham tentado ensinar que era na primavera que se faziam as limpezas, mas ela nunca tivera essa obsessão primaveril pelo aspirador, pela esfregona ou pelo pano do pó. E se havia altura em que (vagamente) lhe apetecia dar uma arrumadela na casa, era sempre em Outubro.

Porque, para ela, era então que o ano começava. E que as coisas velhas e sem préstimo se deitavam fora. E se trocava a posição dos móveis. E se mudavam as fotografias das molduras.
Nunca se tinha conseguido libertar daquilo a que o marido chamava “a síndroma do antigamente-a-escola-era-risonha-e-franca”, ou seja, é em outubro que as aulas começam, que se abre uma vida nova, que se escolhem os cadernos, que se forram os livros, que se baixa a bainha das batas.

Tantos anos depois – quando já ninguém sabe como se forra um livro e para que é que isso serve, ou que raio de coisa é uma bata — na sua cabeça tudo continua igual.

Era em Outubro que o ano começava. Ela chegava dos três meses espalhados pela praia, pelo campo, pelas termas, a morrer de saudades das colegas e dos amigos do bairro (nessa altura nem sonhava que iria casar com um deles) apesar de, naqueles meses, terem trocado entre si muitos postais e cartas.

Por isso não pode deixar de sentir um leve aperto no estômago — “como o tempo passa!” - quando, pelo meio da papelada que rasga, lhe caem no colo uma série de postais antigos.

Todos enviados entre Agosto e Setembro de 1956, de Viana do Castelo, pela Nèlita.

Com diversas variantes de “camponesas em trajo de trabalho”, e de “motivos regionais” (o que vinha a dar no mesmo, ou seja, moçoilas vestidas à moda do Minho dos pés à cabeça, à frente de carros de bois e de rebanhos.)

Dá voltas à cabeça — e não consegue lembrar-se de nenhuma Nèlita mas, pelos postais, vê-se que devia ser amiga íntima, possivelmente lá do bairro, porque pergunta pela família inteira ,e sabe o nome de cada uma das velhas, e num deles até lhe dá os parabéns pelo exame de solfejo no Conservatório, ao mesmo tempo que a informa de que “o primo da Zulmira entrou para o Colégio Militar”, enquanto noutro se espanta, “nem acredito que o meu querido partiu duas costelas!”, e noutro ainda lhe dá conta da sua indignação:”imagina que escrevi à Elizabeth Taylor mas não recebi fotografia nenhuma.”

Fica a sorrir, tentando imaginar-se naquele ano de 1956, com 13 anos, a escrever postais à Nèlita, e tem muita pena de a ter esquecido assim, como se ela não tivesse existido.

Ao jantar fala nisso ao marido, “imagina, devemos ter sido tão amigas e nem me lembro dela!”

Ele dá uma gargalhada:

“A Nélita! Como é que tu não te lembras da Nèlita? Andava sempre atrelada à Zulmira e deviam ser as miúdas mais feias lá da nossa rua!”

E depois de uma pausa, acrescentou:

“Feia, mas muito simpática! Nunca me hei-de esquecer que foi a única das tuas amigas que se preocupou comigo naquele verão em que tive um torcicolo que não havia meio de passar! Até me escreveu um postal!”

“Só por causa de um torcicolo?”

Ele voltou a rir:

“É que eu disse-lhe que tinha partido duas costelas… Ela estava de férias no norte, nunca veio a descobrir”.

De súbito, já não tem pena nenhuma de ter riscado a Nèlita da sua memória.

E fica muito contente por a Elizabeth Taylor não lhe ter enviado nenhuma fotografia.
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«ACTIVA» - Outubro de 2010

sábado, 23 de outubro de 2010

DESCOBRI O SIMPLEX

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Por Alice Vieira

TENHO MAIS MEDO de entrar numa repartição de Finanças ou da Segurança Social do que no consultório do dentista.

Por isso, quando entrei na Segurança Social para pedir um documento a provar que não devo nada a ninguém, até tremia.

Tirei a senha e, oh alegria!, era a senha 35 e já iam na 14, não devia demorar muito.

Nem valia a pena sentar-me, fiquei encostada à parede a olhar para os que iam chegando, e tirando senhas, e suspirando.

Quando, hora e meia depois, ainda se continuava na senha 14, comecei a não achar graça.

Reparo então - tenho pouca prática destas coisas - numas senhas com a designação de “prioritárias”. Pergunto quais as prioridades que abrangem - mas ninguém me sabe responder.

De repente, num écran em que passa muita informação a correr, com toda a gente a sorrir muito, a dizerem-nos - a nós, que já ali estamos há horas — como tudo agora é fácil e rápido, descubro que basta uma pessoa ter mais de 65 anos para usufruir dessa benesse.

Tiro outra senha, desta vez a 20, quando já estavam a chamar a 10. Óptimo, agora é que era.

O pior é que se estava na hora do almoço - e, durante mais de uma hora, nenhuma senha mexeu.

Palavra que temi um levantamento popular. Uma senhora começou a fazer um comício às massas, “devíamos era ir com panelas a São Bento!”, mas como a maior parte não estava a perceber o que faziam ali as panelas, ela lá explicou que era uma coisa que tinha acontecido no Chile, mas na sua cabeça as coisas deviam andar um pouco baralhadas porque, dali a momentos, já era a Argentina e as mães da Praça de Maio, e nós que éramos todos uns bananas, que amochávamos tudo. Desiste de esperar e vai embora, ela e mais alguns, e por isso, ao fim de seis horas de ali estar, chamam-me para me informarem que o que eu quero não é com eles.

Deve ser a isto que o nosso primeiro chama o “simplex”.
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«JN» de 22 Out 10

sábado, 9 de outubro de 2010

VIVA (ENFIM!) A REPÚBLICA!!

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A MINHA CABEÇA está baralhada e nem sei por onde começar.
A confusão toda começou quando há dias o Alfredo entrou aos berros, “um louco assassinou o Dr. Miguel Bombarda!”
A minha mãe caiu desamparada na chaise-longue da sala, gritando “ai que mal que eu me sinto!”, e o meu pai, sem saber se havia de acudir à Pátria ou à mulher, disse:

- Chamem a parteira! - e desapareceu pelas escadas com o Alfredo, que não parava de perguntar “e agora quem é que distribui as armas ao pessoal?”

Foi então que percebi que a revolução vinha aí, e que desta vez é que era. Segundo ouvi dizer, havia senha para os revoltosos e tudo! “Mandou-me procurar?”, era a pergunta, - a que se devia responder “passe, cidadão!”
Não sei explicar mas, desde esse dia 3, em que o doutor foi assassinado, até ao dia 5, em que o meu pai entrou em casa de madrugada cheio de sangue nas calças - na minha cabeça não há divisões, nem manhãs nem noites, como se tivesse sido tudo um único dia.
O meu pai andava num entra e sai, preocupado com a criança a nascer em casa, e com a revolução a nascer na rua.
E de cada vez que entrava, trazia notícias diferentes.

- A revolução a rebentar, e o rei a jantar com o presidente do Brasil! Disseram-lhe que seria melhor cancelar o jantar — e ele disse que o mais que podia fazer era prescindir da sobremesa para acabar mais cedo!

Às vezes o meu pai vinha eufórico, e falava de nomes como Machado Santos, Afonso Costa, José Relvas, João Chagas, e os olhos dele brilhavam quando contava que os bravos de Infantaria 16 não tardavam a vir por aí abaixo, e que os soldados se tinham deitado vestidos e equipados para estarem prontos a sair quando fosse dado o sinal!
Mas às vezes chegava desanimado, como quando se deixou cair no sofá da sala, murmurando:

- O almirante Cândido dos Reis suicidou-se.

Até a minha mãe se esqueceu das dores.

- Ainda me parece estar a ouvi-lo ontem : ”Se me julgasse incapaz de assumir o comando das forças da marinha e de as conduzir à vitória, dava um tiro na cabeça!” Disseram-lhe que estava tudo perdido e ele não aguentou.

Mas logo o meu pai recuperou forças e voltou a sair, exclamando:

- Mas nada está ainda perdido!

Foi quando apareceu o Alfredo a gritar “Machado Santos está na Rotunda com mais 400 homens, e vão chegar muitos mais! “
Saíram os dois e nunca mais os vimos até à madrugada do dia 5, quando nos entraram pela casa, exaustos, empoeirados, colarinhos abertos, casacos rotos, manchas de sangue nas calças.

- Ganhámos!...

Exactamente no momento em que a parteira saía do quarto da minha mãe e dizia:


- Manuel Alfredo… - murmurou o meu pai. — Nasce no dia em que se anuncia um mundo novo!

O meu filho vai ter…
E a parteira:

- “Menina”, eu disse “menina”…

Resumindo (até porque este caderno está mesmo a acabar e não me apetece muito começar um novo) : já temos República, o rei, as rainhas e o Arreda foram de barco para o exílio em Gibraltar, e vamos escolher um presidente.

- Cá estaremos para ver no que dá…- murmura a minha avó.

É isso: cá estaremos
(Ah, e a minha irmã foi baptizada com o nome de Maria da Anunciação.
Sempre se podem aproveitar os monogramas da roupa).
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«JN» de 9 Out 10

sábado, 2 de outubro de 2010

“CONQUISTEI O EXÉRCITO!”

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Por Alice Vieira

FALTA POUCO para voltar à escola e, para aproveitar os dias de liberdade que me restam, pedi ao meu pai que me levasse ao Coliseu : há lá uma dupla irresistível de cómicos e o cavaleiro australiano Silant faz prodígios com o chicote!

Mas o meu pai disse que não estamos em tempo de palhaçadas.
Depois do jantar a Rosa disse que, se eu quisesse, podia ir com ela e com o Alfredo para a semana ao teatro.

- O Alfredo tem entradas para o Teatro do Príncipe Real! Deu-lhas um marçano amigo dele. Eu conheço-o, chama-se António Silva e é um tipo magrinho e com muita graça! O António entra na peça que se estreeou agora, chamada “O Rei Maldito”. Quer dizer, entra e sai, porque quase nem abre a boca, mas já é o suficiente para ter direito a borlas!

A Rosa contou que o Alfredo nem queria ir porque diz que a vida não vai para teatros, mas ela lá o convenceu. Agora, resta-me convencer a minha mãe.
Mas não são apenas o meu pai e o Alfredo que estão preocupados : toda a gente anda sobressaltada.
As greves não têm fim. Neste momento há greves dos tanoeiros, dos tipógrafos, dos conserveiros, dos garrafeiros, e sobretudo dos corticeiros, que estão a ocupar as estações de caminho de ferro, para impedir o embarque da cortiça.
Ouvem-se os boatos mais desencontrados, e as prisões continuam.
Ontem a D. Etelvina, que agora vem cá quase todas as tardes para acabar o enxoval do meu irmão, até tremia só de pensar nos dois vizinhos que de manhã tinham sido levados pela polícia.

- Imagine a Sra.D. Joaquina - dizia ela para a minha avó — eu a cruzar-me com eles todos os dias, “boa tarde, Sr. João Borges! Boa tarde, Sr. Manuel Ramos!”, e eles , “boa tarde D.Etelvina!”, sempre muito bem educados - e vai-se a ver eram bombistas! A polícia diz que eles tinham em casa centenas de bombas! Já viu se aquilo tudo explodia lá no prédio?!

E a D. Etelvina tremia tanto que até se picou com a agulha.

- Isto anda muito mal — disse a minha mãe — mas o rei continua por aí a passear como se nada fosse…Andou pelo Buçaco a brincar às batalhas…
- Era um centenário importante! — a voz ofendida da minha avó.

A minha mãe riu:

- Coitado, acho que ele não está mesmo a perceber nada do que se passa...Contaram-me que lá no Buçaco, depois das cerimónias, e dos desfiles e dos “vivas” do costume, exclamou: “Conquistei o exército!”

E a minha mãe deu uma gargalhada:

- Agora anda a fazer de cicerone ao Presidente Hermes da Fonseca, que acabou de chegar do Rio de Janeiro… Não me admiro nada de o ouvir dizer um dia destes: “conquistei o Brasil!”

A minha mãe estava mesmo bem disposta. Foi então que me lembrei de lhe perguntar por que é que o meu irmão se vai chamar Manuel Alfredo.
Ela ficou muito séria e foi a minha avó que exclamou:

- Porque o teu pai não tem vergonha na cara e vai dar ao filho o nome dos dois criminosos que mataram D. Carlos e D. Luís Filipe!

A minha mãe encolheu os ombros e ficou a abanar a cabeça, enquanto a minha avó levava a D. Etelvina até ao roupeiro para guardarem mais um lençol!

«JN» de 2 Out 10