sábado, 22 de dezembro de 2012

OS GLADÍOLOS

Por Alice Vieira
NEM SABIA bem por que ali estava.
Vingança, raiva, ou nenhuma razão em especial. Tinha dado de caras com a notícia no jornal, enquanto bebia o café e, de repente, vê-se a pagar a bica, a correr até à praça de táxis mais próxima, enfiar-se no carro, fechar os olhos, e deixar-se embalar até ouvir o homem dizer “cá estamos, minha senhora”.
Na rua em frente da igreja há uma florista. Pede gladíolos, mas dizem-lhe que já tiveram mas já não têm. Compra uma rosa.
A igreja está cheia, como já esperava que estivesse.
Tem muita pena de não trazer gladíolos. Um enorme ramo de gladíolos, como os que ele lhe entregava, sorriso manso nos lábios, quando regressava a casa, e lhe pedia desculpa pela pancada, pelos insultos, chegando mesmo a receitar-lhe pomadas infalíveis para as nódoas negras--prometendo nunca mais voltar ao mesmo.
Ela punha os gladíolos na jarra, e durante uma semana havia paz.
“Figura pública junta sempre mais gente no funeral do que em vida”, pensa, olhando para tantas pessoas que se acotovelavam à entrada da igreja, porque lá dentro já não cabia mais ninguém ou porque, simplesmente, não tinham podido resistir ao apelo do cigarro. Pessoas que, muito provavelmente, nunca lhe teriam dirigido sequer a palavra se alguma vez o tivessem encontrado na rua.
Alguns, mais velhos, olham para ela, ainda a reconhecem e acenam ligeiramente a cabeça.
Vagos conhecimentos, apenas. Os seus amigos verdadeiros, os que a tinham amparado nos tempos difíceis da separação, nunca ali estariam.
Entra na igreja, tentando a custo chegar até ao caixão.
Quer vê-lo.
Nunca mais o tinha visto, desde o dia em que se tinham encontrado no tribunal para o divórcio.
“Ainda te vais arrepender”, murmurara ele nessa altura. “O que és tu sem mim, não me dizes?”
Ela nem respondera. Fizera questão de deixar muito claro que não queria dele nem um centavo, o advogado aos berros, “mas a senhora não está a ver que ele vai ser condenado e pagar-lhe uma boa quantia?”, e ela a insistir, “nem um centavo desse homem, antes esfregar escadas a vida inteira.”
Tinha-se aguentado. Com a ajuda dos pais ao princípio, por si própria logo depois, na empresa onde esteve até se reformar.
É difícil chegar até ao caixão, há muita gente em volta e ninguém parece querer sair dali. Olha para o banco onde se senta a família. Só conhece a mulher das fotos nas revistas. E espera que ninguém a reconheça a ela, já passaram tantos anos e, de certeza, que ele não guardou fotografias desse tempo.
Olha para a mulher, franzina, sem a pintura que habitualmente ostenta nos retratos e, de repente, tem vontade de se sentar a seu lado, de lhe perguntar como correram aqueles anos todos, quantas vezes ele a atirou ao chão, e a espancou, e a insultou, e a ameaçou com facas - dando-lhe flores a seguir.
Olha para a cara dela, tentando encontrar marcas de antigas agressões, mas os cremes tudo apagam. Pena não haver cremes que também apagassem a dor e a humilhação e a revolta — que uma vida inteira não chegava para apagar.
A mulher tira um lenço da carteira e passa-o pela cara. Depois olha para ela. $$Ficam as duas a olhar uma para a outra, em silêncio.
Depois desviam os olhos.
Vai a sair quando, num impulso, volta atrás e deixa a rosa no colo da mulher. $$E voltam a olhar-se fixamente.
“Obrigada”, diz-lhe ela, numa voz quase inaudível.
Ela sai a correr, não sem antes olhar para o caixão.
O morto quase nem se vê, ao peso de tantos gladíolos.
-
«Activa» - Dezembro de 2012

sábado, 8 de dezembro de 2012

UM NÚMERO DIFERENTE

Por Alice Vieira
ESTE É O Nº 500 da “Audácia”. Este é um número muito especial e, por isso, estamos todos em festa.
A “Audácia” nasceu em Novembro de 1966 - o que significa que está quase, quase a fazer 46 anos.
O que significa que os seus leitores atuais ainda nem eram sonhados quando ela apareceu. E, se calhar, nem a maioria dos pais.
Em 1966 o mundo era outro. Nós éramos outros. A maneira de fazer revistas era outra.
Nada destas máquinas sofisticadas que agora nos poupam tanto trabalho e tantas horas de esforço.
Lembro-me muito bem desse ano de 1966.
Eu tinha 23 anos, um curso acabado há dois, a família toda a insistir para que eu fosse professora (pois não era para isso que, segundo toda a gente, eu tinha estudado?), e eu, muito a contragosto, a ensinar um alemão rudimentar a alunos que queriam seguir Direito e precisavam de fazer exame de alemão e de ter ao menos 10 para poderem aceder à Universidade.
Foi a primeira e única vez que eu ensinei o que quer que fosse a alguém.
Eu já trabalhava no jornal – mas, para a família, jornalista era profissão que nenhuma menina decente e de boas famílias poderia escolher.
Jornalista era profissão de homens.
Feios, porcos, sujos e maus.
Mas esse foi o ano em que eu decidi que era preciso arriscar e não ter medo de escolher o que queria fazer da minha vida – mesmo que os outros abanassem a cabeça ou me virassem as costas. 
Há alturas em que tem de ser assim. Porque ninguém vive a nossa vida por nós.
E é por isso que, de cada vez que pronuncio a palavra “audácia”, me lembro da audácia que tive em largar tudo, de um momento para o outro, nesse ano de 1966: profissão, família, casa, conforto, segurança, despreocupação.
Tive a audácia de arriscar.
Depois – porque estas coisas acabam sempre por ser recompensadas…-- tive a felicidade de encontrar alguém, com quem partilhei quase 40 anos da minha vida, e que também nunca teve medo de arriscar, quando sabia que estava em jogo a liberdade, a coerência, a justiça, um futuro que sonhávamos bem melhor.
Pediram-me para hoje aqui falar dele.
Porque Mário Castrim escreveu na “Audácia” nos últimos anos da sua vida e, por isso, festejar este nº 500 é também festejar todos os que nesta revista têm trabalhado.
Mas, para mim, é tarefa muito complicada. É muito difícil falar de alguém de quem estive (e continuo a estar…) tão próxima.
Basta ler os seus textos – e as crónicas publicadas aqui na “Audácia” estão, felizmente, reunidas em livro — para se perceber a pessoa que ele era.
Trabalhou — trabalhámos… - muitos anos da nossa vida sob a censura.
Aqueles que já nasceram em liberdade têm dificuldade em entender o que isso era.
O que era não se poder falar nem escrever sobre aquilo que queríamos.
O que era “o lápis azul” a cortar páginas de alto a baixo.
O que era vermos completamente deturpado tudo o que escrevíamos (bastava o “lápis azul” cortar um “não”, por exemplo…)
O que era haver gente cujo nome nem sequer se podia mencionar.
Muitos foram desistindo. Por cansaço. Pela sensação de inutilidade. Pelo risco. (Abril vinha muito longe ainda…)
Mas o Mário nunca desistiu. Nem quando o telefone tocava cá em casa de madrugada, com ameaças. (Ainda hoje me custa atender um telefone que toca noite dentro…)
Talvez que a infância difícil que teve o tivesse preparado, e de que maneira, para a luta. A infância -- boa ou má –molda sempre as nossas vidas.
O Mário entrou para o sanatório do Outão aos 9 anos de idade – e saiu de lá dez anos depois.
Dez anos de afastamento da família, que vivia longe, de amigos, da vida normal de uma criança.
Dez anos em que sonhava com livros, muitos livros que pudesse ler à vontade, que o ajudassem a suportar dias e noites difíceis.
Acho que a única coisa que pedia, nesse tempo, eram livros.
Um dia o sanatório foi visitado por um grupo de dirigentes do Benfica, que iam conversar sobretudo com os miúdos, tentar, por momentos, fazê-los participar da vida que corria lá por fora.
- O que é que tu gostavas mais que te dessem? – perguntaram-lhe.
- “A Cidade e as Serras”, do Eça de Queiroz — respondeu ele.
Imagino o ar espantado da comitiva…
O que é certo é que, dias depois, chegava ao Sanatório do Outão um caixote com as obras completas do Eça de Queiroz e do Camilo Castelo Branco.
E esta foi a razão que tornou o Mário num benfiquista ferrenho até ao fim da sua vida.
E a vontade de nunca se deixar vencer pela doença foi sempre uma constante: estudou sozinho e pediu para fazer exames no sanatório, e fez. Quando saiu do Outão, quase com 20 anos, vinha disposto a ser professor – e foi.
Ainda hoje encontro velhos alunos dele que vêm ter comigo para me contarem como eram as aulas do “professor Fonseca”.
E depois o jornalismo.
A escrita de livros.
O resto da sua vida.
E isto é o pouco, o muito pouco, que sou capaz de dizer dele.
O resto é só meu.

Revista “Audácia”, Out.12

domingo, 25 de novembro de 2012

AS SAUDADES DA CASA


Por Alice Vieira
E DE REPENTE a casa voltou a ficar silenciosa.
De um momento para o outro, os objetos regressaram todos ao seu lugar habitual, o piano fechou-se, deixou de haver sapatos largados pelo meio da casa de banho e dos quartos, acabaram-se as risadas à meia noite (“meninos! Já deviam estar a dormir há que horas!”), o frigorífico readquiriu o seu ritmo pacato e parou de ser esvaziado de cinco em cinco minutos, a despensa readquiriu o seu ar honesto e saudável, sem pacotes de batatas fritas nem garrafas de coca-cola, os livros de histórias encontraram de novo o seu lugar na estante, os “Simpsons” e a “Family Guy” desapareceram dos serões televisivos,
E a casa voltou ao que era, antes de os netos todos terem chegado para se apoderarem dela durante um mês inteiro.
Olho para os quartos, para a cozinha, para o corredor – e acho que a casa se deve ter sentido muito bem.
Durante este mês, ela deve ter pensado que tinha finalmente regressado ao antigamente da nossa vida, quando havia sempre gente a chegar e gente a partir, e a voz do meu filho, pequenino, a perguntar logo de manhã ao meu ouvido “mãe, temos hóspedes?”
A seguir ao 25 de Abril de 1974, o ritmo da casa serenou.
Quer dizer: a casa ficou, a partir dessa altura, a pertencer menos aos adultos e mais às crianças – e raro era o dia de anos em que, no fim da festa, eu não tivesse de ligar aos pais, a pedir que os deixassem cá ficar a dormir. (Aqui tenho de partilhar a responsabilidade com o meu marido, que inventava grutas de lobos na sala, fazia jogos de futebol no corredor — acabando toda a gente a desenhar ou a escrever o que lhe passasse pela cabeça numa parede mágica que havia reservada para isso mesmo. Hoje, lavada e pintada desde que o meu filho foi para universidade, é uma parede igual às outras…)
A Ana Rita ficou célebre até hoje (em que já deve ser mãe de filhos crescidos…) por cá ter dormido quase uma semana, até que foi preciso o pai vir pôr ordem naquilo e arrastá-la de cá por um braço...Quase todos os anos encontro a tia na Feira do Livro, e recordamos sempre essa odisseia…

Mas antes de 1974, os tempos eram muito difíceis, e raro era o dia em que não nos batiam à porta amigos que precisavam de cá ficar uma noite, duas noites, sabiam lá eles e nós quantas noites… Às vezes partiam de manhã cedo, e nunca mais tínhamos notícias deles.
O quarto do fundo estava sempre disponível (lembras-te, Rogério? Lembras-te, Isabel? Lembras-te, Daniel? Lembras-te, Armindo? e por aí fora…)  e, quando não estava, havia sempre uma cama vaga, ou chão livre para nele se estenderem colchões-camas.
Uma noite, o Armando bateu à nossa porta.
Eu nunca tinha visto o Armando. Conhecia-o apenas dos textos que ele mandava para o suplemento “Juvenil” do jornal “Diário de Lisboa”, onde eu trabalhava.
Quer dizer: do Armando, as únicas coisas que eu sabia era que escrevia muito bem, e que vivia nos Carvalhos, perto do Porto.
Ele à porta e eu sem saber quem era aquele que, em hora tão pouco apropriada, me batia ao ferrolho.
Ele, “sou o Armando”, e eu só a pensar “pelo amor de Deus, vai-te embora, vai-te embora!”, e ele, coitado, só a repetir o nome e a dizer “desculpa, mas preciso de cá ficar esta noite!”— e a olhar para mim, estranhando certamente o ar de poucos (de nenhuns…) amigos que via na minha cara, caramba!, nem um sorriso, nem um “entra amigo, a casa é tua!”, nada.
O Armando a olhar para mim, e eu, apoiada à ombreira da porta, só a respirar fundo, a respirar muito fundo, a respirar fundíssimo.
Afastei-me e fiz-lhe sinal que entrasse.
Ele entrou, e ali ficou, com um saco aos pés, esperando que eu dissesse alguma coisa.
Passados alguns minutos, e depois de ter novamente respirado muito fundo, apontei-lhe o armário que ficava mesmo no fim do corredor:
- Sabes fazer uma cama, não sabes?
Ele acenou que sim.
- Então olha, os lençóis estão ali, o cobertor também, faz a cama onde quiseres, fica o tempo que quiseres, sai quando quiseres — que eu tenho de ir já para a maternidade!
A minha filha nascia horas depois.
Acho que o Armando nunca chegou a conhecê-la – mas, durante anos a fio, nunca se esqueceu de lhe mandar os parabéns.
Devia ser de tudo isto que a casa tinha saudades.
Revista “Audácia”, Nov. 12

sábado, 20 de outubro de 2012

Manuel António Pina


Por Alice Vieira
AS NOVAS tecnologias têm isto de bom: quando estamos longe e temos saudades dos amigos, elas se encarregam de nos aproximar.
De cada vez que eu estava fora do país, mandava um sms ao Manuel António Pina. Porque normalmente estava em congresso, em encontro literário, em escola ou biblioteca e queria trocar impressões, género “já cá estiveste?”, “O que é isto?”, etc. Porque, normalmente, por razões daquilo que escrevíamos, eu e o Pina andávamos pelos mesmos sítios.
Um dia — vá-se lá saber porquê…- eu aterrei na cidade francesa de Périgueux, num Encontro de Literatura Gourmet!!!
Sms logo para o Pina: “o que é isto?”
Respondeu-me que também já lá tinha estado e até tinha gostado, — e faz-me um estranho pedido: “por favor, vai à Rua tal, é uma rampa e mesmo no fim, à esquina, há uma casa pequena, há de estar uma velha à porta com uma gata castanha, diz-lhe que lhe mando um abraço.
Pensei que estava a brincar comigo mas, num intervalo do congresso, lá fui.
Encontrei a rua, a rampa, a esquina, a casa, a velha, a gata.
Tudo como ele tinha dito.
Lá lhe expliquei a história (“sou portuguesa, e um escritor português meu amigo pediu-me…” etc…) — e logo a velha se abre num enorme sorriso: o Pina tinha estado em Périgueux há uns tempos e, nos seus passeios pela cidade, tinha-a visto à porta com a gata. Parou no passeio, foi ter com ela e ali tinham ficado tempos infindos, a conversarem…sobre gatos.
O Pina adorava gatos.
Espero que o céu esteja cheio deles.
NOTA (CMR): procurando uma fotografia para ilustrar as palavras da Alice, encontrei esta, [aqui]. Acho que fica bem…

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

MUSEU DE CERA


Por Alice Vieira
HÁ MUITO tempo que não subia aquela rua.
Durante muitos anos trabalhara ali perto, conhecia-lhe os cantos e recantos, tascas e cafés, mercearias onde tudo se vendia, alfarrabistas e casas de velas, tabacarias a transbordarem de revistas de croché e de culinária, num tempo em que o jet-set ainda não tinha sido descoberto.
Há muito lixo pelas esquinas e, nos degraus das portas, garrafas vazias de cerveja marcam o rasto das noites.
O velho elevador está em obras. Quem quiser trepar a colina terá de contar apenas com a força das pernas, e este continua a ser um bairro de gente velha.
Na manhã em que sobe a rua, tem quase a certeza de reconhecer toda a gente, de tal maneira todos se parecem com os que, há mais de trinta anos, se cruzavam com ela. Se lhes desse os bons dias, como se atravessasse uma rua da aldeia, todos lhe responderiam.
Há mais de trinta anos aquele lugar era quase uma aldeia.
Era ali que nasciam todos os jornais. Ou quase todos.
Era um lugar que cheirava a chumbo, porque as novas tecnologias nem sequer ainda se sonhavam, e —nunca conseguira perceber porquê — a açúcar queimado . 
Dos jornais saía sempre a mesma gente, que se encontrava à mesma hora, nas mesmas tascas e nos mesmos cafés.
Mesmo os que se arrastavam pelas esquinas ou se colavam horas infindas aos balcões dos cafés, e que não liam jornais, mesmo essas os conheciam a todos pelos nomes. Reduzidos à sua expressão mais simples: o Sôr Armando, o Sô Pedro, a D. Antónia, e por aí fora.
Continua a subir a rua, na pastelaria da esquerda há, como sempre, um velhote a comprar uma caixa pequenina de petits-fours que depois atira para dentro de um saco de plástico.
Porque aquele é o reino dos sacos de plástico.
As velhas saem de casa com sacos de plástico, entram nas lojas e nos cafés, e regressam ainda com mais sacos de plástico.
As velhas daquele lugar sempre tiveram muitos sacos de plástico e muitas doenças.
Ela entra no café onde há mais de trinta anos entrava todos os dias, pouca coisa mudou, consegue até sentar-se na que foi, durante todos esses anos, a sua mesa, há apenas umas estranhas pinturas verdes na parede, e outro sistema de pagamento: com a bica e a água entregam-lhe um cartão numerado, que apresentará na caixa registadora, à saída.
Às 10 da manhã, tem o número 065. Não sabe a que horas abre agora o café, por isso não tem ideia se a afluência foi muita ou pouca.
E as velhas também não mudaram.
Olha para elas e é capaz de jurar que se disser “Ó D. Isilda” ou “ó D.Felisbela”, ou “ó Menina Odete” – elas respondem. E que lhe hão de contar as mesmas histórias de filhos ingratos, e que lhe hão de perguntar se “a vidinha vai bem” e, com um sorrisinho cúmplice à beira dos lábios, avisá-la de quem avistam ao fundo da rua.
Ao balcão do café fazem, como sempre, o ponto da situação. O que lhes dói mais, o que lhes dói menos. Mas o pior de tudo são sempre, como sempre foram, os nervos.
Queixam-se dos médicos que não as entendem, dos remédios que não fazem nada, das noras que-para-ali-estão, e rematam sempre com a frase de fazer calar o pessoal :” eu é que me sinto.”
Levanta-se da mesa, vai pagar.
Enquanto lhe fazem o troco, ainda olha para cada uma das velhas, à espera de as ouvir dizer, olhando através da janela,” olhe que o Sô Mário já ali vem”.
Na rua, há uma loja em frente chamada “Flower Power”.
“Bem vinda ao século XXI”, disse baixinho.
-
«ACTIVA» de Outubro 2012

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A DOR DE CABEÇA


Por Alice Vieira
NEM SABIA há quanto tempo não entrava naquele jardim, perto da casa onde nascera. Ou antes: do sítio onde nascera, já que a casa há muito se transformara num stand de automóveis.
Uma vez passou por lá e ficou feita parva a olhar para a montra, pensando se o lugar da cama da mãe seria ali onde então se exibia um Aston Martin em todo o seu esplendor, ou, se calhar, lá mais para o fundo, onde se situava a secretária do vendedor .
Riu-se e o vendedor, lá de dentro, franziu os olhos, certamente nunca devia ter visto ninguém rir diante da montra, e ela desceu logo a rua, não fosse ele chegar à porta e perguntar “deseja alguma coisa?”, e ela “nasci onde o senhor está sentado.”
Mas nem mesmo nessa altura se lembra de ter entrado no jardim.
De resto o jardim estava então quase em ruínas. Os jornais traziam notícias e fotos,acabando todos a insultar a Câmara, que não fazia o que lhe competia.
Nunca mais se lembrara do assunto. O seu lugar de nascimento dizia-lhe muito pouco, até porque, segundo lhe contavam, tinha saído de lá aos quinze dias de idade.
Mas agora os netos andavam num curso de férias ali perto, e não havia outro sítio onde ela pudesse passar o tempo até serem horas de os ir buscar.
Alegrou-se com a recuperação do jardim (“ jardins abandonados só ficam bem nos poemas românticos e nas fotografias a preto e branco”, dizia muitas vezes) mas a dor de cabeça,aliada a um cansaço que ultimamente se agravava, quase a impedia de ver tudo como desejaria. O sol feria-lhe a vista, e teve de se sentar numa das cadeiras da pequena esplanada debaixo do enorme jacarandá, sem flor mas com sombra.
Em seu redor – e isso lembra-se de ser “imagem de marca” daquele bairro – muitos mendigos, por ali arrastando miséria e sujidade.
No meio do jardim, um parque infantil, onde as crianças gritavam e os adultos ainda gritavam mais do que elas, “Ruben, não caias! Ó Sónia,se atiras outra vez a bola lá para fora, a avó não ta vai buscar! Ai valha-me Deus, que são horas de ir fazer o almoço!”
Os gritos ainda lhe aumentam a enxaqueca (Odeia a palavra mas, quando está mesmo muito atacada  é só assim que se lhe refere, para tudo ser ainda pior..) Deixa cair a cabeça entre as mãos, fecha os olhos, deseja que aquelas duas horas passem depressa.
De repente ouve uma voz muito perto de si, sente um estranho bafo rente à sua cara:
“Precisa de alguma coisa?”
Abre os olhos e dá de caras com um dos mendigos.
“Quer que lhe vá buscar um copo de água ao quiosque?”
Nem consegue responder e já ele se arrasta até ao quiosque, onde há um jarro e copos no parapeito, e vê-o encher cuidadosamente o copo até acima.
E ela não quer ver a sujidade das mãos, e da barba e do cabelo, e não quer sentir o cheiro de há pouco, não quer mesmo mas não consegue, e ele traz o copo até à sua mesa, devagarinho para que não se entorne.
“Beba que lhe vai fazer bem”
E ela a olhar para as mãos dele, para sujidade das unhas, para os farrapos daquilo que um dia terá sido um casaco, e ele, estendendo-lhe o copo:
“Vá, beba”.
Agarra no copo e bebe a água toda de uma vez.
Ele sorri e ela sorri também.
Quando se lembra de lhe perguntar o nome, já ele tinha desaparecido. Vê-o, ao ,longe, a tirar qualquer coisa de um caixote do lixo.
São horas de ir buscar os netos.
Há-de contar-lhes esta história. Até para eles aprenderem a maneira mais rápida e eficaz de curar uma dor de cabeça.
-
«ACTIVA» de Setembro 2012

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

AS NAUS DAS DESCOBERTAS

Por Alice Vieira

TINHA sido um verdadeiro sufoco, ela na rua e de repente a pensar
“esqueci-me das chaves e do telemóvel em casa”
A quem pedir ajuda, e como pedi-la? Mesmo com cabines telefónicas nos passeios e moedas nos bolsos, desde que se inventaram os telemóveis que ela nunca mais soube nenhum número de cor, está tudo na memória, ela a viver pela memória de uma máquina, ao que isto chegou.
Mas foi sufoco breve, felizmente não estava longe de casa quando deu pela falta, e pôde rapidamente voltar atrás e entrar no café, que desde sempre guarda uma cópia das suas chaves para uma qualquer emergência. Como esta.
Ainda bebeu uma tranquila bica antes de voltar a casa para buscar o que esquecera, meditando, como sempre em ocasiões semelhantes, na dependência em que todos vivemos de máquinas e tralhas afins.
Vem-lhe à memória o tempo longínquo em que o primeiro telefone móvel entrara lá em casa. Uma maravilha da técnica. Tirava-se do descanso e podia-se levar pela casa toda, e falar confortavelmente estiraçado na cama, ou na sala, ou na cozinha, enquanto se mexia a sopa.
Tinha sido o filho quem mais vibrara com o objeto. Agora podia enfiar-se no quarto, sem dar cavaco a ninguém, e passar horas com as suas diversas namoradas.
Preocupava-a aquele filho, sem nunca pegar num livro, naquela casa onde eles estavam por todo o lado e onde ninguém podia passar sem eles. Ninguém, menos ele, claro, que pelos vistos passava mesmo muito bem, porque a verdade é que tinha boas notas e não chumbava.. Mas ler não era, definitivamente, o seu passatempo favorito.
Por isso ela se lembra do ar de espanto que fez no dia em que ele lhe perguntou:
- Mãe, onde estão “As Naus”?
Nem percebera.
- Onde está o quê?
- “As Naus”, mãe. Aquele livro do Lobo Antunes.
Não quis mostrar demasiado o seu espanto, o rapaz ainda era capaz de se arrepender, e tirou-o da prateleira. Tinha estado muito recentemente a pôr a sua estante em ordem, sabia onde o tinha colocado.
O filho pegou no livro, enfiou-se pelo quarto, fechou a porta e lá ficou.
Nos dias seguintes “As Naus” lá continuavam na mesa de cabeceira. Um dia achou por bem voltar a pô-lo na prateleira.
À noite, o filho, meio zangado:
- Mãe, qu’é das “Naus”?
Pelos vistos a leitura do romance entusiasmava-o.
Um dia arriscou:
- Estás a gostar das “Naus”?
Foi a vez de ele a olhar espantado.
- Das “Naus”?
- Sim, do romance do Lobo Antunes.
- Ah!!
Foi um enorme “Ah” que se devia ter ouvido pela casa toda.
Depois foi buscar o livro e abriu-o na primeira página, onde se viam uns números escritos a lápis.
- Tás a ver, mãe... É que há dias, quando tu andavas a fazer a arrumação dos livros, a Teresa ligou e eu precisava de tomar nota do número do telefone dela. E isto era a única coisa que eu tinha à mão. Como nunca sei o telefone dela, preciso sempre de ver aqui.
Ainda pensou em dar-lhe uma agenda – mas desistiu. Pegar num livro era bem melhor. Até podia ser que ele se entusiasmasse e passasse da primeira página.
Como de resto veio a acontecer, não por causa de “As Naus” mas por causa de uma namorada que lhe disse:
- Ou tu lês o que eu leio, ou nada feito.
Casaram, são muito felizes, têm 5 filhos.
( “As Naus” continuam com o número de telefone escrito a lápis, já um bocado sumido, que os anos não perdoam.)

«Activa» de Agosto de 2012

terça-feira, 17 de julho de 2012

FÉRIAS GRANDES


Por Alice Vieira

JÁ NÃO sabia as vezes que tinha feito, desfeito e refeito a mala.
- Raio de tempo… --murmurou.
O marido largou o jornal e as palavras cruzadas e sorriu:
- Ninguém te entende…Se chove é porque chove, se faz sol é porque faz sol…
Deixou-se cair no sofá. Não era nada disso e ele sabia.
- O que eu queria era o tempo certo. Fiável. Dantes, quando íamos de férias no verão, levávamos roupa leve, um guarda-chuva, vá lá, por mera precaução, mas nunca enchíamos a mala de camisolas, casacos, meias…
No verão anterior nunca conseguira largar o casaco de fazenda. Mesmo as pessoas daquela praia do norte, habituadas a pouco calor, diziam que nunca se lembravam de um tempo assim, o vento a levar tudo atrás, tempestades de areia, as pessoas dias inteiros enfiadas em casa. Lembra-se até que a Goretti, amiga de há muitos anos, lhe tinha telefonado a dizer “se quiseres lareira, arranja-se!”
Só por vergonha não aceitou.
- O que eu queria…
- O que tu querias – riu o marido -- era ser criança, confessa! Quatro meses de férias, um verão que nunca mais acabava, as ”férias grandes” dizíamos nós, sem preocupações nenhumas…Mas isso, minha querida, isso era o paraíso, e já devias saber que, quando nos tornamos adultos, os paraísos desaparecem.
Regressou às palavras cruzadas, repetindo:
- Era mesmo o paraíso.
Ela voltou a enfiar mais umas camisolas na mala.
 Sempre que o verão aparecia no calendário (e, cada vez mais , só mesmo no calendário) vinha-lhe aquela estúpida saudade da infância, ela que nunca tinha saudades de nada, muito menos da infância, ficava amarrada à recordação da quinta, do grande plátano diante da casa, da ruazinha orlada de cedros que levava ao muro que dava para a outra quinta, onde vivia a família do António.
O António vivia sempre enfiado lá em casa, lia os números atrasados da “Mecânica Popular” que os irmãos dela colecionavam e iam deixando na quinta, quando chegava a hora de voltar para Lisboa, e fazia coisas complicadíssimas com as peças do Meccano.
- Hei de ser engenheiro…-- garantia ele
Mas houve um dia em que ele largou a revista e o Meccano e lhe disse:
- Vamos dar uma volta.
Os pais tinham saído, a caseira andava distraída no galinheiro, os irmãos tinham pegado nas bicicletas e desaparecido.
Foi na ruazinha dos cedros que então o António lhe perguntou:
- Queres ser minha namorada?
E ela sem saber o que responder, porque acabara de fazer 12 anos e nunca tinha tido um namorado.
Mas durante aquele verão foram namorados.
E foi um verão muito quente, e os dias eram enormes, e as noites parecia que ardiam.
Até que um dia o pai chegou muito zangado a casa, porque tinha ouvido não sei o quê no café, mandou a mãe fazer as malas e voltaram para Lisboa mais cedo do que era habitual. Nunca o pai lhe disse o que acontecera, mas a verdade é que ela nunca mais voltou a ver o António, que nas férias seguintes já não morava naquela casa ao lado do muro da rua dos cedros.
Às vezes dá consigo a pensar no que lhe terá acontecido, se será engenheiro, se terá emigrado, se estará casado e pai de família. Como era possível as pessoas desaparecerem assim das nossas vidas.
Deve ter suspirado com muita força porque o marido perguntou:
- Disseste alguma coisa?
Não respondeu.
Pensava ainda na palavra “paraíso”.
-
«Activa» de Julho 2012

domingo, 8 de julho de 2012

A PRAIA, HÁ MUITOS ANOS

Por Alice Vieira

MUITAS vezes penso como foi que nós – ou seja, todos os que já temos para lá de 50 anos – conseguimos sobreviver.

Como foi que conseguimos ser crianças, adolescentes, andar na escola, aprender. Como foi que conseguimos ser gente sem nos terem levado ao psicólogo. Como foi que crescemos mais ou menos saudáveis, sem ficarmos traumatizados por esse tempo pré-histórico em que – segundo os padrões de hoje – nada havia.

Para vocês deve ser praticamente impossível imaginar um mundo sem telemóveis, sem computadores, sem Power-points, sem tv interativa, sem downloads, sem i-Pad ou i-Pod, ou i-Outra Coisa Qualquer. Um mundo sem discotecas, sem mochilas às costas, sem inter-rails, sem férias em Lloret del Mar, sem Erasmus.

Até a mim – juro – me custa a acreditar.

Mas existiu.

E sobrevivemos.

E fomos tão felizes como vocês. Só que de outra maneira.

Quando chegam os meses de verão, por exemplo, lembro-me das minhas idas à praia, quando eu era muito criança. Vivíamos perto de Sintra mas, não sei porquê, os adultos lá de casa não seguiam, como destino comum de quem vivia naqueles lugares, para a Praia das Maçãs.

Não.

Armavam-se como se fôssemos para uma expedição para o deserto, e marchávamos para a Praia do Guincho.

Há 60 anos, a Praia do Guincho não existia. Ou seja, existia um imenso areal deserto, um mar bravo de meter medo ao susto, dunas onde os pescadores tinham construído umas minúsculas casotas para se abrigarem em caso de tempestade maior – e mais nada. Rigorosamente mais nada.

Nem pessoas, evidentemente, a não ser os pescadores na sua faina.

Ah, por acaso havia também um barracão mal amanhado no cimo das arribas, junto à estrada, que era uma espécie de restaurante de um senhor galego chamado Muxaxo, que gostava muito de nós porque éramos os únicos a descer à praia (e se era complicado descer por aquelas rochas até chegarmos ao areal!).

Fazia sempre muito mau tempo no Guincho. Mesmo quando fazia bom tempo no resto do país. Muito vento, muito frio e — nunca percebi porquê – enxames de abelhas desvairadas a atacar os invasores…

Então os adultos lá de casa, todas as manhãs, antes de sairmos, telefonavam para a barraca do Sr. Muxaxo para saber como estava o tempo. E o Sr. Américo ou a Josefa (que eram os únicos empregados) lá nos serviam de boletim meteorológico.

Mas mesmo que as precisões não fossem das melhores – raramente eram… – a gente marchava para lá. Era preciso haver uma tempestade muito, muito, mas mesmo muito grande para desistirmos. (E não, os adultos lá de casa nunca pensaram que podíamos apanhar resfriados ou gripes. E a verdade é que nunca apanhámos.) Connosco marchavam também mantas, cadeiras de verga, casacos, repelentes de insetos, mas não me lembro de alguma vez termos levado protetor solar.

As onze da manhã eram o ponto mais dramático do dia. Nós, os miúdos da casa, até tremíamos, mas nem pensar em fugir ou dizer que não.

Era a hora em que chegava o Sr. António.

O Sr. António pescava robalos, que vendia aos adultos da casa e, depois de feito o negócio, olhava para nós, esfregava as mãos e dizia “vamos lá a isto”.

E nós todos íamos atrás dele até à beira mar. Punha-nos em linha e depois, com uma das mãos apertava-nos o nariz e com a outra rodeava-nos o corpo e atirava-nos ao mar – e a gente que se desenvencilhasse. Lá longe, ao abrigo da barraca de lona, os adultos da casa nem se dignavam olhar.

Gritávamos, esbracejávamos, engolíamos litros e litros de água salgada, faltava-nos o ar -- mas foi assim que nós todos aprendemos a nadar na perfeição. Porque quem escapa ao mar do Guincho escapa a todos os mares do mundo.

E nenhum de nós ficou traumatizado.

Vou muito pouco ao Guincho, mas tenho sempre muitas saudades desse tempo, e sobretudo do sorriso do Sr. Américo e da Josefa. Nunca me lembro deles sem estarem a sorrir para nós. Sorriam muito, sorriam sempre.

 Hoje o progresso dá-nos muitas coisas melhores – mas acho que as pessoas sorriem menos.

(In “Audácia”, revista juvenil dos Missionários Combonianos, número de Junho 2012)


sexta-feira, 15 de junho de 2012

Mário Castrim

Por Alice Vieira 
AMIGOS 
Mário Castrim morreu há dez anos. Lembrando a data, a Editora Caminho vai apresentar dois dos seus livros –a reedição de “ESTAS SÃO AS LETRAS” e “VIAGENS NA CASA” – no próximo dia 20 deste mês de Junho, às 18h30m, na Livraria Bucholz.
A apresentação será feita pelo escritor António Carlos Cortez, e haverá amigos que irão recordá-lo.
Gostaríamos que fosse um encontro festivo e que, tanto os que foram seus amigos, como os que já não o conheceram, nos acompanhassem. Esperamos por todos (e não, não há jogo de futebol nesse dia…)

sábado, 9 de junho de 2012

FICA…FICA…FICA…


Por Alice Vieira

AQUILO andava a matraquear-lhe na cabeça, dias e noites a fio, ela nem acreditava nessas coisas de sonhos e presságios, e mais não sei o quê, mas a verdade é que tinha de haver qualquer razão, não podia ser por acaso que uma pessoa, de repente, desatava a recordar um filme visto há mais de 50 anos, nem sequer um grande filme, nada de “ we’ll always have Paris” ou “you can whistle, can you?”, nem sequer “me tarzan, you jane”, filme anódino de que nem recordava o título.
Até tinha ligado ao Francisco a perguntar que filme seria, mas ele não lhe deu grande ajuda, preocupado em arranjar verbas para o novo projeto.
A bem dizer, ela não se recordava de nada. Nem dos atores, nem da história. Nada de nada, a não ser aquela cena (seria no princípio da história? Seria no fim?) e aquela palavra, continuamente repetida: “fica, fica, fica!”.
Vê a cena nitidamente, e a preto e branco. A mesa da cozinha, os pais, os três filhos, e o que estava para ser adotado. Lembra-se que era um miúdo muito complicado, muito difícil de aturar, e muito doente (que doença é que não recordava, mas andava de muletas), e aquela era a altura em que se ia decidir se ele ficaria a viver com eles ou não. Havia um jarro para onde cada um tinha deitado um papelinho com o seu ”voto” : “stay” (fica) ou “go” (vai). Depois, um deles (já não recorda qual),entregou a jarra ao miúdo, para que ele desdobrasse os papelinhos e lesse a sentença.
O miúdo olha para os papelinhos mas não reage.
“Só sei ler termómetros”, murmura.
Então, sem qualquer troca de palavras, sem sequer uma troca de olhares, uma das outras crianças faz o trabalho. Pega nos papelinhos e vai lendo em voz alta, à medida que os desdobra, “stay…stay…stay…” – enquanto a câmara foca o que realmente está escrito em todos: “go…go… go..”
Lembra-se de ter chorado que nem uma madalena a ver aquilo. Quase tanto como com a morte da mãe do Bambi.
Mas agora já não é criança, e não entende por que, de repente, aquilo não lhe sai da cabeça.
Foi então que ele ligou.
Ela teve dificuldade em conhecer-lhe a voz, mas de repente lembrou-se de que o Sporting tinha ganho, e ele devia estar em casa de amigos a festejar, e já devia ter bebido um pouco mais, como sempre fazia, no tempo em que ainda viviam juntos.
“Se eu tivesse vergonha na cara nem lhe respondia”, pensou, mas a verdade é que lhe respondeu, como se nada se tivesse passado naqueles anos todos em que ele não dera sinal de vida.
E ele, com a voz doce que o álcool sempre lhe dava, a dizer coisas parvas, a perguntar por amigos de há anos, e ela só a ver a cena do filme, e a repetir “vai…vai…vai…”,mas lá bem dentro dela a vontade de dizer “ fica…fica…fica…” , e ele nem merecia nem nada, não era doentinho nem andava de muletas nem ia ser adotado.
Mas pela janela vinha o cheiro das laranjeiras do quintal, e era verão, e o mundo estava todo lá fora.
Acabaram por combinar um jantar lá em casa ( “fica…fica…fica…”) para dali a dias.
Deu consigo a rir que nem uma doida e, depois dos beijinhos da praxe e do “ligo amanhã”, tinha tantas saudades tuas”, desliga, abre o computador e manda um mail ao Francisco:
“ainda está de pé o convite para escrever a tal telenovela?”
- 
In “Activa”, Junho 2012

sábado, 2 de junho de 2012

O CHEIRO DO JASMIM


Por Alice Vieira
 
ERA SEMPRE a mesma coisa, estava pior que os cãezinhos de Pavlov, e já tinha tido mais que tempo de se esquecer de tudo isso.
Toda a gente morta há já um ror de anos, e ela sempre a lembrar-se do mesmo.
A rapariga a deitar-lhe o chá na chávena e ela, mesmo sem querer, a recusar, “não, jasmim não!”
É por isso que lá em casa as pessoas dizem que ela é alérgica ao jasmim, coisa que a nora, vegetariana de nascença, não entende e, nos primeiros anos de pertencer à família, ainda protestava “ nunca vi ninguém alérgico ao jasmim!”.Como ninguém nunca lhe respondeu, acabou por desistir. Mas, ao fim destes anos todos, ainda a olha com desconfiança, e abana a cabeça de cada vez que entram num restaurante chinês e ela recusa o chá.
Alergia. Claro. Que outra explicação poderia dar que os outros aceitassem sem lhe chamarem doida?
Mas sabe que nunca poderá esquecer aqueles enormes dias de verão, a voz cantada de Joaquina (Quininha, era assim que elas todas chamavam àquela tia mais nova, naquele tempo em que as meninas usavam diminutivos e laços na cabeça), eles todos na esplanada diante da praia, à espera de se irem vestir para o jantar.
Era também no tempo em que as meninas acompanhavam a família nos hotéis de verão e tinham de se vestir a preceito para o jantar.
E pôr novas fitas no cabelo.
Dia e noite o ar tinha sempre o mesmo cheiro.
Cheiro a jasmim, explicava Quininha.
Um cheiro que rebentava de todos os jardins, que entrava nas pessoas, que se entranhava na roupa, que se misturava com as gargalhadas de quem acreditava que era impossível envelhecer um dia.
Quininha dizia então:
“O jasmim é que é o culpado das desgraças que por aí acontecem.”
Ela era muito pequena e não percebia por que é que a tia dizia aquilo, e por que é que as irmãs mais velhas desatavam a rir. Desgraças eram desgraças, e na catequese estavam sempre a repetir que Deus castiga quem se ri das desgraças dos outros.
Quininha sorria e continuava na dela:
“Este cheiro a jasmim é o diabo…Quando entra em nós, já não podemos fazer nada...”
Uma vez ela olhou para a tia tão fixamente que esta achou-se na obrigação de explicar melhor, tia é tia.
“ Nunca te chegues perto, Joaninha! Nunca! O cheiro do jasmim é veneno!”
“Veneno dos que fazem muito mal?”
“Veneno dos que matam”.
E as irmãs riam, riam, e caíam as fitas do cabelo, e a mãe fingia que não ouvia, e a avó, tentando disfarçar um sorriso, olhava para Quininha e murmurava:
“ Ai, rapariga, não tens mesmo juízo nenhum…”
Depois passaram muitos anos, as pessoas foram descobrindo que afinal se envelhecia, que o mundo não era já aquele imenso jardim de verão diante do mar, com o cheio a jasmim a prolongar a felicidade.
As pessoas foram morrendo, outras nascendo. E ela, instintivamente, recuando sempre, quando se falava em jasmim.
Como os cãezinhos de Pavlov.
 Um dia, no verão, disse para a filha:
“O jasmim é que é o culpado de muitas desgraças que acontecem!”
Mas os tempos (e as filhas) eram diferentes. E Elsa respondera que a comunicação social, essa sim, essa é que era a culpada de toda as desgraças.
Nunca mais falou em jasmim.
A não ser para dizer que é alérgica, quando tentam encher-lhe a chávena de chá.
 -
 In “Activa”, Maio 2012

terça-feira, 15 de maio de 2012

O BAR DO RICK

.
Por Alice Vieira

QUANDO eu era nova lembro-me de ter lido um romance do Augusto Abelaira em que uma das personagens, homem sem tempo para lides caseiras e com muitas outras coisas em que pensar, jantava sempre dois ovos estrelados, comidos diretamente da frigideira.
De cada vez que estrelo ovos, lembro-me sempre disso, como se fosse uma cena transcendente e extraordinária, e fico com uma vontade doida de reler o livro. (Mas nunca tenho tempo, porque há sempre montes de livros que temos de ler, e as releituras vão ficando para tempos cada vez mais distantes).
Mas a verdade é que há coisas assim, meio tontas às vezes, que estão sempre a vir à nossa cabeça, sem qualquer razão aparente.
Lugares imaginados de que lemos tão rigorosas descrições em livros que acreditamos que existem mesmo a sério, e prometemos visitar assim que pudermos.
Frases perfeitamente banais que recordamos de alguns filmes.
Cantos de ruas sem nada que as distinga de outras, mas que ficam na nossa memória.(Havia uma rua no Bairro Alto, perto do antigo jornal “Diário de Lisboa”, que cheirava a açúcar queimado. É sempre esse cheiro que me entra pelo nariz quando lá passo ainda hoje – e ela não cheira a nada, segundo juram as outras pessoas.)
Ou ainda aqueles sítios onde nunca estivemos, mas reconhecemos assim que lá chegamos. ( Isto tem um nome científico, é a sensação de “déjà vu”, ou seja, de já termos visto aquilo)
Há muitos anos ia eu numa excursão a Marrocos. Fazia um calor insuportável, era Agosto. Ninguém, no seu juízo perfeito, vai a Marrocos em Agosto. Mas eu fui, e aguentei aquele forno com a ideia de, no fim da viagem – assim estava no programa – acabarmos em Casablanca.
Vocês são todos muito novos, mas os velhotes como eu nunca poderão esquecer um filme dos anos 40 chamado “Casablanca”. Para muitos, foi e continua a ser o filme da nossa vida.
Porque se estava em guerra e aquele era um filme contra a guerra, e ganhavam os bons.
Porque Lisboa aparecia como um destino ansiado por todos : o lugar onde se podia apanhar um avião para a liberdade.
Porque o Humphrey Bogart , que se chamava Rick e tinha um bar, acendia cigarros a olhar para a Ingrid Bergman, que se chamava Ilse, e não se queimava, e murmurava em voz rouca “here’s looking at you, kid”, qualquer coisa como “ estou a olhar para ti, miúda”, e recordava Paris como lugar único de amores eternos .
E porque Sam tocava ao piano “As Time Goes By”, no bar do Rick, e quando entravam os alemães cantava-se a “Marselhesa” e nós nunca tínhamos visto nada assim, e ficávamos com vontade de fazer muitas coisas heroicas e de nunca deixar que os maus vencessem.
Durante anos e anos tinha sonhado ir a Casablanca ver o bar do Rick. Sabia exatamente onde ficava, tinha na memória as suas paredes brancas, o portão de ferro forjado, os velhos sentados cá fora.
Assim que a excursão chegou à cidade, não pensei noutra coisa.
O guia era espetacular . Sabe-se lá porquê, tinha simpatizado comigo e com mais um casal inglês muito jovem, e, no fim do seu horário de serviço, despia a djellaba , vestia-se à europeu, e ia connosco ver coisas que não vinham nos programas turísticos.
“Leva-me ao Bar do Rick!” – pedi-lhe, logo na primeira noite em Casablanca.
Nunca esquecerei a gargalhada que lhe ouvi.
“Outra!...” – repetia ele, sem parar de rir.
Quando finalmente se recompôs, informou-me que todos os estrangeiros – sobretudo as estrangeiras…- assim que chegavam a Casablanca, vinham doidas para se enfiar no bar do Rick, possivelmente à espera do fantasma do Humphrey Bogart a acender cigarros sem olhar para eles, a sonhar com um avião para Lisboa, e para sempre preso à eternidade de um amor em Paris.
“O pior…”, explicou ele, “o pior… o pior é que não há nenhum bar do Rick em Casablanca! Nem nunca houve!”
“Como não há! Claro que há! “, insistia eu. “Sei perfeitamente onde é, acho mesmo que até passámos por ele no autocarro, quando chegámos esta tarde!”
Mas a verdade, a dura verdade, é que não havia mesmo.
Tudo tinha sido uma reconstituição. Tudo tinha sido filmado nos estúdios americanos, onde o filme era realizado.
Acho que nunca me recompus da desilusão. Pior: acho mesmo, à distância de mais de trinta anos, que o guia me enganou escandalosamente, e que, lá bem pelo meio das sinuosas ruas de Casablanca, o bar do Rick continua ainda agora à minha espera, com os acordes da Marselhesa a darem-nos ânimo para fazermos muitas coisas heróicas e para que os maus não vençam.

Revista juvenil “Audácia”, Maio 2012