sábado, 27 de fevereiro de 2010

QUANDO O MEU PAI VIU O JÚLIO VERNE

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

HOJE fui ter com o meu pai à livraria.
Quando eu era muito pequeno, pensava que o meu pai já tinha lido aqueles livros todos. E que por isso mesmo é que era o dono.
Gosto de passar a mão pelas encadernações dos livros, e folheá-los, e imaginar que histórias contarão.
Gosto sobretudo de folhear os livros do Júlio Verne, e já perdi a conta às vezes que li “A Viagem ao Centro da Terra e “Da Terra à Lua”. (Se o “D. Jayme” fosse como algum destes livros, ao tempo que eu já o sabia de cor…)
E, quando gosto de um livro, tenho sempre vontade de conhecer o seu autor. O que é quase sempre impossível, ou porque já morreu há muito, ou porque vive num estrangeiro que eu nem sei onde fica.
Adorava ter conhecido o Júlio Verne. (Nunca me passou pela cabeça querer conhecer o Tomaz Ribeiro…)
Mas o meu pai conheceu o Júlio Verne!
Quando ele esteve em Portugal, o meu avô tinha acabado de morrer. Ninguém esperava que ele morresse tão cedo e o meu pai, aos 20 anos, viu-se sozinho à frente da livraria.
Como ele está sempre a dizer, “se eu consegui ter pulso para dirigir sozinho o negócio, por que é que este beato meio raquítico, que sabe tanta língua, e tem tanto professor e tanta gente à volta dele não consegue dirigir o país?” (Se a minha avó está presente, o meu pai, para evitar zangas, muda o “beato meio raquítico” para “esta amostra de rei”)
Mas dizia eu que, da última vez que Júlio Verne cá veio, o meu pai tinha 20 anos e já dirigia a livraria. Como era amigo de muita gente dos jornais (amizades herdadas do meu avô), conseguiu ir com eles ao encontro do escritor, no Hotel Bragança.
Estava-se em Maio de 1884
(“nunca esqueças as datas, José Joaquim!”…)
e era a segunda vez que Júlio Verne vinha a Lisboa.
Mas, diz o meu pai, vinha sempre a correr : chegava no seu iate, vinha a terra para comer e encontrar-se com alguns jornalistas e escritores, voltava para o iate, e na manhã seguinte já estava de volta a França.
De tal maneira eram breves as visitas que o meu pai está sempre a contar (e todas as vezes ri à gargalhada, ele que é sempre tão sisudo…) que nesse ano um jornalista de quem o meu avô era muito amigo, chamado Rafael Bordalo Pinheiro, publicou o relato do encontro no seu jornal e, admirado com a rapidez da visita, rematou:
“ só andando com esta pressa toda é que o Sr.Júlio Verne pôde fazer viagens à lua no tempo que qualquer pessoa gasta em ir á Porcalhota comer coelho guisado!”
Mas mesmo só por breves minutos, eu havia de ter gostado de o ver. Olho para a fotografia que o meu pai tem na estante onde estão todos os livros dele, mas não é a mesma coisa.
Acho que era capaz de viver numa livraria!
Garanto: se a livraria do meu pai vendesse o “Texas Jack”, era melhor livraria do mundo! Quem sabe até se o Júlio Verne não teria cá vindo?

«JN» de 27 Fev 10

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O Dia dos Mortos

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Por Catarina Fonseca

DIA 2 DE NOVEMBRO comemoramos os nossos Fiéis Defuntos. Não é lindo, o nome? Mas quem é que é fiel? Eles a nós ou nós a eles?

Adoro aviões. Quando morrer quero encarnar num Spitfire Qualquer Coisa (o meu amor pelos aviões não implica que seja capaz lhes decorar os nomes técnicos, deve ser uma deficiência genética feminina). Nunca fui tão feliz como na Base Aérea de Sintra. Não sei se já lá foram: inclui um museu do ar com aviões de todos os feitios e épocas.
Enquanto a Merche posava, eu pulava entre os aviões afagando-lhes o focinho como quem faz a ronda aos estábulos. Os oficiais respondiam-me às perguntas mais surrealistas com paciência de santo: isto trabalha a quê? Os aviões também têm cavalos? Entra-se por que porta? Se me apetecer fazer xixi, é onde? Se me ejectar, isto ejecta-me em bloco ou por partes? Quais partes é que se me ejectariam primeiro?
Problema: os aviões despertam as minhas fobias mais profundas. Amo-os, sim: mas em terra. Haviam de ver as figuras que faço lá em cima. Assim que entro num pisco da Portugália, transformo-me numa torneira humana. Lamento nunca ter aprendido a rezar. Prometo aprender a rezar imediatamente assim que tocar no solo. Peço retroactivos divinos. Até agora deve ter funcionado, embora eu nunca tenha cumprido a promessa.
Fico a pensar que, no nosso mundo, os aviões são aquilo que mais nos faz pensar na morte.Temos uma péssima relação com a morte. Não pensamos nela. Não levamos as crianças aos cemitérios. Enterramos os mortos dentro de nós e não falamos deles. Não falamos com eles, tal como também não falamos com as plantas, nem com as casas. Nem com as crianças. Nem connosco próprios… Nunca lhes dizemos como nos fazem falta. Nunca lhes dizemos que os amamos, tal como não dizemos aos vivos.
Sempre ouvi a minha avó dizer que com os mortos não se brinca. Curiosamente, era com o que eu brincava, na casa dela. Quase não havia brinquedos. Havia o Joãozinho, um boneco que já tinha sido da minha mãe, também ele quase morto. E havia fotografias. De mortos. Imensas fotografias, de imensa gente, imensamente bem vestida, imensamente morta. Eu adorava, ainda mais que aviões. Tirava-as da caixa, espalhava-as na enorme mesa. Geralmente, eram de casamentos ou baptizados, o que explicava que estivessem todos tão bem vestidos. Eu conhecia-os a todos, aos mortos. A Gracinha, que fugiu com o noivo e deixou o ferro ligado. A D. Edite, a do chapéu que parecia um dinossauro aterrado no Empire State a tentar comer o chapéu da morta do lado, a prima Joaninha, que parecia um ninho de plantas carnívoras em fúria, no casamento da Luisinha que casou porque a mãe mandou (eu não me importava de casar com quem quer que fosse, só para usar o vestido que ela usava) e onde também estava o Dr. Sousa, que dava pelo umbigo da mulher que parece que lhe batia e tinha bigode e luvas.
Eu brincava com os mortos como em casa brincava com os cromos das ‘Maravilhas da Natureza’. Mas preferia os mortos. Tinham fatos mais giros e costumes mais exóticos.
Hoje não sei que é feito dessas fotografias. Há muito tempo que não brinco com os mortos, e tenho saudades deles. Às vezes vejo a minha sobrinha mais nova embrenhada nos álbuns da minha mãe, mas a ela só lhe interessam os vivos com menos de 4 anos. Mas já percebi que, se achamos que não cumprimos o nosso dever com os mortos, o melhor remédio é compensar com os vivos. Coitada da minha mãe, que vai ter de comer o jantar que lhe fizer…

sábado, 20 de fevereiro de 2010

O SR.MATEUS FOI PRESO

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

AINDA nem estou em mim. Eu e a rua toda.
O Sr. Mateus foi preso ontem.
O Sr. Mateus morava no prédio ao lado do nosso, era de poucas falas, mas dava sempre os bons dias e boas tardes quando nos encontrávamos.
Vivia sozinho, mas há dias a Rosa disse:
- Os galegos acartaram ontem com quatro caixotes para casa do Sr. Mateus. Os desgraçados suavam que nem porcos, com perdão da palavra…
- E então? — murmurou a minha mãe – os galegos não fazem outra coisa, que é que isso tem de estranho?
- O que é que tem? Tanto caixote para casa de um homem que vive sozinho?
- Se calhar mandou vir a família para viver com ele e está a arranjar a casa - disse a minha mãe.
- As mulheres é que arranjam as casas, não são os homens! Um homem sabe lá do que uma casa precisa! A senhora pergunte um dia ao Sr.Fernando que coisas é que há numa cozinha e vai ver como ele fica caladinho que nem um rato. A casa é das mulheres, e...
- E se você fechasse essa matraca? — ralhou a minha avó.
A Rosa não gosta que a mandem calar.
E enfiou-se na cozinha a cantar.
É sempre a vingança da Rosa: cantar aquilo que se ouve pelos teatros e pelos cegos das romarias, e que sabe que põe a minha avó fora de si:
- “Já mataram o rei gordo
E o magrinho também
Acabem com o que ficou
Depois liquidem a mãe!”
- Ou você se cala imediatamente ou vai já para o olho da rua! —gritou a minha avó.
A Rosa lá se calou — e também nunca mais se lembrou dos caixotes do Sr. Mateus.
Até ontem.
- Eu é que tinha razão! Tanto caixote para casa de um homem sozinho… Estava-se mesmo a ver que aquilo trazia água no bico…
Água no bico não trazia — mas trazia pólvora, cardas de sapateiro, brochas, rolhas, ferros, barbante, tudo o que era preciso para fazer bombas e granadas.
Ao que parece, não tinha sido só a Rosa a desconfiar: alguém denunciou o caso, e logo de manhã a Secreta entrou pela casa do Sr. Mateus, que nem teve tempo para esconder fosse o que fosse, e foi dali levado para os calabouços da esquadra do Caminho Novo.
- Quem havia de dizer…- murmurou a minha mãe — Numa rua tão pacata como a nossa…Ainda se fosse na Rua do Corrião…
Há muito tempo que se diz que é nessa rua que mais bombas se fabricam em Lisboa. E nestes últimos tempos quase todos os dias rebenta uma bomba na cidade. Mas tem sido sempre longe da minha casa, por isso, para falar verdade, nunca me incomodaram muito.
Mas agora foi ao meu lado.
A minha avó diz que são os republicanos.
O meu pai diz que são os anarquistas.
A minha mãe diz que se as mulheres mandassem, isto era muito diferente.
E eu fico a ouvi-los sem entender o que se passa.
Só sei que às vezes há mortos e feridos, e que as cadeias estão cheias.
Estou quase a concordar com a minha avó: se não é o fim do mundo, anda lá perto.

«JN» de 20 Fev 10

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A avó do Hitler

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Por Catarina Fonseca

ACHAM QUE a História da Humanidade seria diferente se mais avós tivessem feito o que lhes competia?

No Dia dos Avós, tenho por hábito reunir os meus quatro sobrinhos e, pronto, obrigá-los (é triste mas a palavra é essa) a fazer uns cartõezinhos para oferecer às duas avós. Cada um pode fazer o que bem lhe apetecer: desenho, poema, rabisco, texto. Felizmente ainda nenhum deles se lembrou de imitar um amigo meu, mandar um envelope vazio com uma nota a avisar: “Mando-lhe ar de Paris…”
Claro que nem sempre a coisa corre como previsto. Há dois anos, foi particularmente complicado. O Pedro estava na fase do xixi-cocó. Olhei para o desenho dele, rezando para que não lhe desse para explicar à avó Cila o que eram aquelas bolinhas a sair do (“Quem é este?” “É o Afonso Henriques.” “O Afonso Henriques? Mas porquê?”, “Porque ele quis.” “Ah. De facto, é uma boa resposta.” “E olha, ele está a fazer…” “Já sei, já percebi o que é que ele está a fazer, obrigada”, “Pela muralha abaixo!”, “Que giro”). O Diogo, então com 8, trabalhava compenetradamente. De língua de fora, escrevia escrevia. Terminou com um desenho. Uma matrona numa… mota?
“É uma avó, a senhora da mota?”
Ele levantou a cabeça e franziu o sobrolho, com ar ofendido. Suspirou levemente (aquele suspiro com que brindamos os menos inteligentes que nós) e lá explicou: “É a avó do Hitler.”
Engoli em seco. Estava-me a ver a apresentar o cartão a alguma das avós: de um lado, o Afonso Henriques a desfazer-se em diarreia pela muralha abaixo, do outro a avó… do Hitler.
Ele defendeu-se: “Então, até ele havia de ter avó, ou não?”
Meditei por um momento. Os meus conhecimentos de História mundial não se alargavam à avó do Hitler. “E como é que lhe chamaste?”
Ele franziu o sobrolho novamente mas lá respondeu: “Helga.”
Bem, pelo menos não era Conceição. Helga. E tinha uma Harley Davidson, pelos vistos. E duas pistolas. E pelo que pude ler na legenda, estava a mandar o neto para o seu próprio campo de concentração.
Ele estava contente com a obra. “Tá fixe, não tá?”
“Não achas melhor” tentei eu, “fazer agora outro cartão para a outra avó?”
Ele encolheu os ombros. Rezei para que não saísse dali a avó do Mussolini. Do General Franco. Do Estaline ( Estava mesmo a ver. A avó Olga, a mandar o neto para os gulags da Sibéria). E o Salazar, teria avó?
Toda eu me preparava para o AVC quando peguei no segundo cartão. Um pacato cavaleiro de espadinha mais uma pacata dama com saia de balão.
“São os avós de quem?” inda arrisquei (Pedro o Grande? Ivan o Terrível?).
Ele olhou-me como se estivesse a gozar com ele.
“Não são avós de ninguém! São príncipes! Não querias uma coisa mais à avó? Fiz-te uma coisa mais à avó! As avós gostam de princesas!”
Bem, resta acrescentar que a avó Alice acabou a rir até às lágrimas quando se apanhou frente a frente com a avó do Hitler (inda lá está em lugar de honra na prateleira da sala) e a avó Cila adorou os príncipes. Eu fiquei a pensar. De facto, toda a gente teve uma avó. Ou não? Será que o Hitler foi o Hitler porque não teve uma avó? Se tivesse uma avó Helga, teria sido pacatamente Herr Schicklgruber toda a vida? E onde estavam as avós de Mussolini, Franco e Estaline, quando se precisou delas?
Não pensei mais. Para quê? Há coisas que são tão verdade que não servem para nada.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

JÁ VOLTEI AO COLÉGIO

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

JÁ VOLTEI ao colégio.
A minha mãe obrigou-me a vestir todos os casacos que encontrou no roupeiro, e não descansou enquanto não me enfiou pela cabeça abaixo um boné de fazenda aos quadrados castanhos e pretos.
Fico horrível de boné.

Mas a minha mãe diz que aquele é a última moda em bonés, que o meu pai tem um igualzinho, comprado no Old England.
A minha mãe vai à abertura da estação do Old England, na Rua Augusta, como outras pessoas vão à abertura da temporada no São Carlos: enfia um vestido verde que só usa em ocasiões especiais, mitenes, e um chapelinho em cima dos bandós.

A Rosa arranja a mesa da casa de jantar, com pratinhos de bolachas Marselhesa e um bule de chá de tília, para ela se sentir mais reconfortada no regresso — não esquecendo a garrafinha de Anisette, porque não há nada como um cálice de licor para uma pessoa ter alma nova.
Então, quando regressa das compras, senta-se à mesa, com ar de imensa felicidade, e murmura, como se recitasse:

- “Toda a elegância se curva diante do rei da elegância”.

(Acho que é assim que vem nos anúncios dos jornais)
E depois de uns minutos de silêncio, acrescenta:

- A loja merece bem o reclame.

E ataca as bolachinhas. E o licor.
Mas isto não quer dizer que o meu boné não seja horrível.
Então lá fui até ao colégio, subi a Rua das Pedras Negras, sempre com esta chuva miudinha que não há meio de parar.
Lá se passou o tempo, pelo meio das regras-de-3, juros e quebrados, e as declinações do latim, e o “D. Jayme” que é preciso saber de cor e nunca mais me entra na cabeça.
Com o meu antigo professor, tudo era diferente.
Lembro-me que um dia saímos da escola com ele, subimos até à Travessa do Almada e depois ele apontou para uma parede e disse:

- Quem é capaz de ler o que aqui está?

Ficámos a olhar para ele, sem entender, era uma parede como outra qualquer, com umas placas muito velhas lá pelo meio.
Ele fez-nos olhar muito bem para elas e disse que eram lápides, e o que de mais antigo restava em Lisboa do tempo dos romanos.
Depois leu o que lá estava escrito em latim.
Já não me lembro de tudo, claro. Mas lembro-me de o ouvir dizer “Felicitas Júlia”, e de ele nos explicar que era aquele o nome da cidade de Lisboa no tempo de Júlio César.

De cada vez que passo por ali, lembro-me sempre do meu professor.
Chamava-se Manuel Buíça.
Há dois anos, naquele dia em que eu vinha da rua Augusta com a minha avó, ele pegou numa carabina e matou o rei. E logo de seguida alguém o matou a ele.

Mas hoje não quero pensar nisso.
Hoje recordo apenas a sua voz a dizer “Felicitas Júlia”
E volto a correr para casa.
Pode ser que a Rosa me dê bolachas Marselhesa e um copo de água chalada.
Acho que só mesmo com muita água chalada é que consigo engolir o “D. Jayme”.

«JN» de 13 Fev 10

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

OVELHA NEGRA

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Por Catarina Fonseca

DIGAM-ME LÁ: em que é que Marte desalinhado com Vénus pode influenciar a minha vida, a não ser que venha vertiginosamente na direcção da terra, caso em que também já não haveria muito a fazer?

Sabem a que distância está Marte? Pode atingir 378 milhões de quilómetros! Em 2004 atingiu a distância mínima de 56 milhões. Estivemos, em resumo, quase lá. Bastava um dedinho esticado e tocávamos em Marte.

Aconteceu alguma coisa aos Carneiros como eu? Nada. Népia.
Outra coisa que me chateia é que, quando tento desconverter alguém, olham-me com ar pesaroso de quem viu a Luz e rematam sempre:

“É típico dos Carneiros. Não acreditam em nada.”

Chateia-me ser descrente, porque a vida para um descrente é dura. E o que mais me dói é que, sendo descrente, nunca consigo passar um horóscopo sem meter o nariz.
Aliás, mais do que meter o nariz, leio tudo de fio a pavio. Leio os Carneiros, leio outra vez os Carneiros (o meu ascendente também é carneiro, uma desgraça nunca vem só), depois leio os Balanças, porque um bruxo me disse uma vez que fui Balança numa outra vida (também fui lavadeira de caravelas, mas isso agora não interessa nada) , e depois leio Virgens e Escorpiões e Capricórnios a eito, porque mais vale estar preparada para qualquer eventualidade.
Saio sempre desconsolada.
Nunca encontrei um horóscopo que me dissesse preto no branco “Minha Filha! É agora! Levanta esses cornos com orgulho porque vais encontrar o Homem da Tua Vida!”
Ou: “Carneiros de todo o mundo, uni-vos: o Euromilhões vai ser vosso, em vez de ir parar ao velhinho de Odivelas do costume que vai herdar 20 milhões sem dar dois euros à AMI!”
Não.
Dizem-me coisas incompreensíveis, tipo “A sua energia vai estar em alta”, ou “a sua capacidade para entender os outros estará mais apurada”, ou “a sua intuição estará mais desenvolvida”.
Quero lá saber!
Não quero energia em alta, que me pode dar um AVC!
Não quero entender os outros quando eles querem ser inentendíveis!
E que raio quer dizer que a minha intuição vai estar desenvolvida? Algo me diz que não significa “vais encontrar o George Clooney — esperem lá, que tenho a redacção a uivar-me para, por amor de Deus, dar outro exemplo que o Clooney já enjoa, o, sei lá, o Jude Law não, que tem pestanas de menina, o Brad é quase avô, o Daniel Craig está na moda, mas parece que lhe deu uma cólica renal, pronto, o, como é que ele se chama, o “Dr. House”. Nada me diz “vais encontrar o Hugh Laurie no Oeiras Parque e ele vai-te injectar epinefrina até pedires misericórdia de joelhos!”

Não. Tenho de me contentar com a intuição.
Em resumo: não acredito, mas ainda não perdi a esperança de um dia acreditar. De um dia acordar e ver Marte pela janela e de ele me dizer “alevanta-te e anda!”.
Ou coisa do género.

(Activa, Janeiro 2009)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

QUANDO MATARAM O REI

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A GRIPE NÃO HÁ MEIO de passar, já não suporto a canja, já não suporto estar deitado — mesmo que o meu pai me deixe ler o Texas Jack, coisa que ele só admite quando me vê doente.
Confesso que me dá um certo ânimo seguir aquelas aventuras no terrível Desfiladeiro dos Mochos, onde Texas Jack está sempre em risco de ser vítima dos sinistros bandidos que atacavam as mala-postas — mas não chega para baixar a febre.

Cá em casa o ambiente não é dos melhores: a minha avó foi à Sé assistir às exéquias por alma de D. Carlos e D. Luís Filipe, e o meu pai ainda não se recompôs do choque.
No ano passado ela tinha feito a mesma coisa mas, depois de uma conversa no escritório, tinha-lhe prometido não voltar a fazê-lo.
Por isso o meu pai nem queria acreditar quando a viu chegar a casa, partilhando a tipóia da vizinha de baixo — que, tal como eu previa, ainda não tirou as tarjetas negras das molduras dos dois mortos. Só não me importei de ter perdido a aposta com a minha mãe porque, mesmo que a tivesse ganho, não teria podido assistir ao salto mortal no Coliseu por causa da gripe.
Mas o meu pai diz que saltos mortais é o que não vai faltar nos próximos tempos. Às vezes o meu pai tem uma maneira estranha de falar. Deve ser de ler muito.

A verdade é que, mesmo não sendo talassa como a vizinha de baixo, acho que ainda não me recompus daquele dia de Fevereiro em que mataram o rei, fez esta semana dois anos.
A minha avó tinha decidido ir comprar-me um fato na Casa Africana, para a festa de casamento da filha de uma amiga.

Lembro-me de ter barafustado, detestava ir com a minha avó à Baixa, mas não tive outro remédio. Quando eu às vezes digo “eu não quero”, logo toda gente grita:”o menino não tem quereres”.

O meu pai ainda hoje está convencido de que a minha avó só quis ir à Baixa naquele dia porque sabia que os reis iam chegar ao Terreiro do Paço, vindos de Vila Viçosa, e aproveitava para assistir à chegada e ao desfile das carruagens até às Necessidades.
Ela nega, e diz que tudo não passou de um acaso do destino.

Fosse como fosse, tínhamos já descido a Rua Augusta quando rebentou a confusão.
Só me lembro de ouvir tiros, fuzilaria, de ver gente a correr de um lado para o outro, e gritos, muitos gritos, “mataram o rei!”, e ninguém se entendia, e depois alguém disse que o príncipe herdeiro também tinha sido morto, e que o outro ficara ferido, e havia sangue por toda a parte, e lembro-me de ver ao longe um ramo de flores nas mãos da rainha, com que ela batia aos que atacavam a carruagem, e a minha avó puxava-me pelo braço, empurrava-me —e ainda estou para saber como chegámos a casa, com ela sempre a gritar “é o fim do mundo, é o fim do mundo!”
No meio da confusão, perdeu-se o meu fato.
Mas também não houve casamento, que o tempo não vai para festas.

«JN» de 6 Fev 10

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A MINHA INFÂNCIA NA REVOLUÇÃO

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Por Catarina Fonseca

HÁ DIAS ENCONTREI um caderno do tempo em que era artista.
Até aos 4 anos a coisa corria normalmente: havia uma família de aranhiços que era suposto ser a minha, evoluindo depois para umas borboletas, umas casas, umas noivas, uns príncipes e princesas em variadas fazes da sua existência.

Aos 4 anos, tudo acaba: há páginas e páginas de monstros com couves-flores espetadas e uns gajos às manchas com chapéus esquisitos e penas nos bonés.
Segundo me explicaram depois, eram chaimites, cravos e soldados.

O mais estranho é que eu nunca tinha visto uma chaimite, nem um soldado, e cravos só na praça, porque no dia da revolução tinha ficado em casa da minha avó, dentro do armário, a mascarar-me com estolas, diamantes falsos e luvas até ao cotovelo, tudo do tempo em que a família era burguesa e ainda não estava desperta para os amanhãs que cantam.
Uma infância na revolução podia ser divertida, mas na altura eu não sabia. Só sabia que a minha amiga Teresa tinha uma Barbie com fatinhos de noiva, de hospedeira e de dona de casa, e sapatinhos que passávamos a vida a perder e encontrar nos lugares mais estranhos.

Eu tinha a Olga, que não era noiva, nem hospedeira, e muito menos dona de casa, valha-nos São Lenine : era do meu tamanho e loira-nazi, embora tivesse vindo da URSS trancada no porão a deitar hálitos de tundra pelas narinas, e não se podia vesti-la e despi-la porque ela calçava para aí o 43, e quando eu acordava de noite conseguia ouvi-la a dar ordens à KGB no escuro.
Noite sim noite sim havia comício.

Era o equivalente a uma overdose de Festa do Avante arraçada de feira popular, mas não tinha carrosséis de gonzos mal oleados nem teias de aranha sobre esqueletos de plástico verde incandescente nem o Manolito a arriscar a vida no poço da morte na mota a fazer tracatracatraca cada vez mais depressa à volta do poço e à volta da morte, mas tinha uns gajos a gritar coisas incompreensíveis e a esticar o punho.
Um tipo barbudo apareceu-me certa vez e rosnou, visivelmente preocupado:

“Então, camarada, ainda de chucha?!”

De vez em quando também havia catecismo para nós, os pequeninos. Lembro-me de uma peça de teatro com uns pintainhos amorosos, em que vinha um pintainho amoroso e dizia para outro pintaínho amoroso:

“Olá, vens da clandestinidade?”

Para grande desgosto da família, nem eu nem o meu irmão parecíamos devidamente revolucionários. Ainda se falou em irmos para os Pioneiros. Perguntei de que cor era o lenço. Olharam para mim como se eu tivesse perguntado de que cor era o cavalo branco de D. José, e algo me disse que a resposta não ia ser: “cor de rosa”.
O meu pai suspirou, e pôs-me no ballet.
Foi o fim da minha carreira na revolução.
Mas não se perdeu tudo: pelo menos, havia fotos do Bolshoi no meu quarto. Não era o busto do Lenine, mas sempre era um bocado da mãe-Rússia.

(Activa, Abril de 2009)