segunda-feira, 25 de março de 2013

O SENHOR QUE CONTAVA HISTÓRIAS

Por Alice Vieira
HÁ MUITOS, muitos anos, eu tive a vossa idade.

“Ainda havia dinossauros?”, perguntou-me há dias o meu neto mais novo.

Não, realmente JÁ não havia dinossauros.

Mas AINDA não havia televisão, nem computador, nem telemóvel, nem iPOD, nem MP3, nem Playstation, nem uma série de outras maravilhas, indispensáveis na nossa vida actual.

Mas o facto de elas não existirem não impediu que – no meio de uma infância difícil, solitária e pouco afectuosa - eu fosse uma criança feliz.

E essa felicidade devo-a aos livros que li — e, muito especialmente, aos livros de um senhor chamado Adolfo Simões Muller.

Adolfo Simões Muller sabia muitas histórias, e levou toda a sua vida a contar histórias.

Os seus livros estavam cheios de heróis, de artistas, de exploradores, de aventureiros, e ele contava as suas histórias como se eles vivessem mesmo ali ao nosso lado, como se, de repente, entrassem pela nossa casa dentro, como se fossem nossos amigos, com quem pudéssemos passar a tarde inteira a conversar.

As personagens dos seus livros foram os amigos verdadeiros que tive na minha infância.

Atacada sempre por muitas doenças, eu sonhava com a noite em que Florence Nightingale (enfermeira inglesa, famosa pela sua actuação na Guerra da Crimeia, no séc. 19, e personagem de “A Lâmpada Que Não Se Apaga”) chegasse à beira da minha cama, pusesse a mão na minha testa e espantasse a febre para muito longe.

E quando vinha o frio, eu recordava sempre a cena em que Madame Curie (cientista, que descobriu o rádio, Prémio Nobel por duas vezes, e personagem de “A Pedra Mágica e a Princesinha Doente”) estudante quase na miséria, quando se deitava punha a cadeira do quarto em cima da cama, para ter a ilusão de mais calor.

Com os livros de Adolfo Simões Muller, eu aprendi que a nossa vida era aquilo que nós conseguíssemos fazer dela.

Com o “Príncipe do Mar” (que têm agora em vossas mãos), eu aprendi a ter orgulho do povo a que pertenço — que se meteu à aventura sobre águas desconhecidas, rumo a terras desconhecidas, ouvindo as vozes de então garantir que a linha do horizonte era o fim do mundo, e que para lá do fim do mundo havia só dragões.

Mas o Infante D. Henrique sabia que nada disso era verdade, que havia muitas terras para lá daquela linha que a nossa vista alcançava, e descobri-las foi o sonho e o trabalho de toda a sua vida.

E a realização desse sonho foi tão importante que, com tantos infantes que a nossa história teve, ainda hoje quando dizemos “O Infante” — é sempre a ele que nos referimos.

Os livros do Adolfo Simões Muller têm atravessado gerações. Os meus filhos leram-nos, e deram-nos aos filhos que depois tiveram.

É bem possível que os teus pais e os teus avós os tenham também lido.

Agora é a vossa vez.

E só lhes peço que, depois de lerem (e relerem…) este “Príncipe do Rio”, o guardem com muito cuidado na vossa estante.

Para um dia chegar em bom estado às mãos dos vossos filhos, e deles às mãos dos vossos netos.

Que, muito possivelmente irão olhar para vocês e perguntar:

- No vosso tempo ainda havia dinossauros?...

sábado, 16 de março de 2013

UM BREVE RECADO PARA AS EDUCADORAS DE INFÂNCIA

 Por Alice Vieira
ELAS CHEGARAM agora junto de ti.
Elas pensavam que o mundo cabia inteiro nas paredes da sua casa, e que quem lá vivia eram os seus únicos habitantes. Terás de mostrar-lhes que não é verdade.
Elas têm poucas palavras para nomear o que as rodeia. Terás de as ajudar a encontrar as que faltam.
Elas vão ver o mundo com as cores que tu puseres em cada som e em cada gesto.
Elas vão olhar para ti, aprender o teu nome, chamar-te por tudo e por nada, geralmente por nada. Que é sempre tudo.
Vais mostrar-lhes como se vive com os outros, como se aceita quem não é igual a nós, tal como se aceita um desenho pintado com todas as cores do arco-íris.
Vais aprender a ter de lhes dizer muitas vezes “ não”, sem te deixares levar pelo seu beicinho irresistível.
Mas vais também dizer-lhes muitas vezes “sim” e sentir que é para ti que elas sorriem e estendem as mãos.
Vais levá-las ao jardim quando há sol, vais empurrar baloiços que chegam ao céu, vais assoar narizes cem vezes ao dia, vais fazê-las aprender a gostar de sopa, vais ler-lhes histórias e ensinar-lhes que todas as meninas têm direito a ser princesas, e todos os meninos têm direito a ser piratas das Caraíbas.
Elas vão ser, naquele pequeno universo diário, os filhos que tens em casa, ou na escola, ou não tens, ou esperas vir a ter mais tarde.
E por vezes podes sentir uns ligeiros remorsos por teres para elas o tempo que não tens para os teus.
Elas levam-te nos olhos quando à tarde as vêm buscar. E esperas que te levem também no coração.
Elas vão acreditar em ti como acreditam nas fadas e no Pai Natal.
Elas vão pôr-te os nervos à flor da pele e fazer-te esquecer, por vezes, o que aprendeste, e perder a paciência que sempre julgaste inesgotável.
Elas vão fazer-te suspirar pela hora do regresso a casa, vão fazer-te levar muitas vezes as mãos à cabeça e proferir intimamente palavras impronunciáveis. Porque elas são crianças. E porque tu és humana.
Resumindo: elas vão-te fazer feliz para o resto da tua vida.
 -
Para um prefácio de uma agenda das Educadoras de Infância

quinta-feira, 7 de março de 2013

CHÁ DAS CINCO


Por Alice Vieira

DIZEM que foi um imperador chinês que o descobriu.
Preocupado com longas epidemias que assolavam o império, ordenou que toda a gente bebesse água sempre fervida.
Um dia, estava ele à sombra de uma árvore e pediu água. Lá lhe trouxeram a água a ferver, e ele teve de esperar alguns minutos, pois até mesmo quem é imperador não aguenta água a escaldar pela goela abaixo.
Enquanto esperava, não reparou que umas folhas da árvore tinham caído para dentro do copo (chávena? caneca? malga?) e a água tinha ficado um bocado para o castanho.
O natural seria – sobretudo rodeado de epidemias por todos os lados… - que deitasse fora aquela mistela e voltasse a pedir mais água fervida, e nós nunca viríamos a saber de nada.
Mas não.
Ou porque a vista já não estivesse lá muito apurada, ou porque a sede fosse insuportável, ou porque – e eu aposto nesta... — pensou que a um imperador nada de mal podia acontecer, o certo é que bebeu tudo. E até gostou!
E como não morreu nem lhe aconteceu nada de grave nos dias seguintes, deve ter chegado à conclusão de que a planta não era venenosa e vá de se aproveitar dela.
Não sabemos que árvore seria exatamente aquela (Lapsang Su Chong, seria??) mas aquele foi o primeiro chá que se bebeu no mundo inteiro.
Também há quem tire o imperador dessa história e diga, muito simplesmente, que desde tempos muito antigos os monges budistas cultivavam chá nos Himalaias.
Seja como for, depois entra muita gente ao barulho, até que aparecemos nós, portugueses, que, ao chegarmos ao oriente, pegámos no chá e trouxemo-lo para o porto de Lisboa – donde partiu para outros mundos.
Como sempre, tivemos tudo nas mãos, e perdemos para outros, sobretudo para os holandeses.
 Adiante.
O mais importante é que os pais do british “five o’ clock tea” – somos nós.
É por nossa causa que os ingleses andam sempre de caneca na mão, e que não há personagem de livro, filme ou série britânica que, a dado momento, não diga "let’s have a cup of tea".
Já pensaram no inspetor Maigret ou em qualquer polícia americano a pedir chazinho???
Tudo porque no século XVII, a nossa princesa D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV, quando foi para a corte inglesa casar com Carlos II, instituiu esse hábito. Às cinco da tarde, chazinho para a rainha e suas damas.
As minhas velhas tias eram burguesas e republicanas, mas isso não as impediu, séculos mais tarde, de seguirem o exemplo de D. Catarina: tocavam a campainha (vocês ainda são do tempo em que havia campainhas colocadas em todas as salas das nossas casas?), a criada aparecia e elas diziam “ Emília, traga o chá.”
Nunca lhes passou pela cabeça irem à cozinha pedi-lo, e muito menos fazê-lo…
E depois seguia-se todo um ritual, de folhas de chá, de bules escaldados, de chávenas de Vista Alegre.
Aprendi com elas que todas as doenças se podiam curar com chá — de cavalinha, de tília, de macela, de camomila, de carqueja, do hipericão do Gerês, de perpétuas roxas, de cascas de cebola, de pés de cereja, de raiz de valeriana, de erva-do-diabo, de hortelã, de hibisco, de calêndula… digam-me a maleita e eu receito o chá.
Nessa altura não me lembro de ouvir falar em chá verde, branco ou vermelho. Ou bem que era chá – preto, forte, a escaldar e sempre sem açúcar – ou bem que era “chá de” : a primeira vez que tomei contacto com a palavra ”tisana” foi nos livros do Poirot (que era belga!) e tive de ir ao dicionário ver o que era.
Para lá de ter herdado das tias a sabedoria do chá, herdei-lhes também os bules, para os quais de vez em quando olho. Mas confesso que hoje em dia já os uso pouco: a água a ferver é deitada na caneca e dispenso os rituais.
As tias devem dar voltas no túmulo.
D. Catarina também.
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In Revista “Epicuro”, Out. 12

segunda-feira, 4 de março de 2013

Ruy Belo

Por Alice Vieira

CONHECI o Ruy Belo quando ambos entrámos para a Faculdade de Letras de Lisboa, em 1961.

Eu era uma jovem ainda a cheirar à infância do liceu; ele, dez anos mais velho, já tinha uma série de cursos no currículo, um doutoramento feito em Roma, um livro de poemas publicado.

 A princípio fazia-me confusão que uma pessoa como ele ainda insistisse em estudar mais, e se tivesse de novo matriculado numa faculdade, e andasse ali junto dos caloiros ( e todos juntos estaríamos quando, pouco tempo depois, rebentou a greve académica, que nos uniu ainda mais.)

Mas a nossa faculdade fazia-se muito mais no bar de Letras, onde a Menina Manuela tirava bicas, e onde as mesas se enchiam de gente que falava, discutia, acreditava que era possível fazer do país um lugar onde – como ele dizia pelo meio desse primeiro livro – “ um dia haverá barcos e seremos livres”

Às vezes, de repente, o Ruy exclamava:

“Tenho de ir para casa”.

E levantava-se da mesa e saía.

E eu sabia que era um poema que estava a chegar. Nunca conheci nenhum poeta a quem a inspiração chegasse assim.

Mas o Ruy era também a pessoa mais desorientada que alguma vez conheci na vida…

Nunca me hei-de esquecer do dia em que ele insistiu em ir buscar-me a casa para irmos…? À distância destes anos todos não me lembro exatamente onde iríamos, mas possivelmente a uma exposição de pintura na Galeria 111, que era o poiso de todos nós. Mas lembro-me de ter dito “eu levo o meu carro” (o meu carro era, na altura, o carro onde se amontoava toda a gente, “que saudades do tempo em que, para nós, “mini” era o teu carro e não uma cerveja”, dizia há dias o Jorge Silva Melo, nosso comum amigo…), e de ele ter respondido “desta vez vamos no meu”.

Eu vivia então na Av. António Augusto de Aguiar – e até hoje me lembro do pânico que senti quando o Ruy, metendo a primeira para arrancar, começa a subir a Av. Fontes Pereira de Melo — em sentido contrário.

“Ó Ruy, não é por este lado!”, gritava eu, e os carros que vinham contra nós a buzinarem feitos doidos, e ele “deixa estar que isto é rápido!”

Era nos anos 60, claro. Se fosse hoje, com o trânsito de hoje, aquele teria sido o nosso último dia de vida.

Depois o curso acabou, as nossas vidas levaram rumos diferentes, mas nunca deixei de estar em contacto com ele, e às vezes aparecia cá por casa, ou vinha jantar (quase sempre em dia diferente daquele que tinha sido combinado…).

Lembro-me de como me indignei quando não o deixaram entrar como professor na faculdade, e ele teve de ir dar aulas num curso noturno de uma escola do então Ensino Técnico, no Cacém.

Lembro-me de ouvir a sua voz magoada: “à noite, quando chego a casa, custa-me tanto subir as escadas…”

Hoje, enquanto recordo tudo isto, tenho na minha frente um postal da Fonte de Neptuno, em Madrid, que ele me escreveu, na sua letra tremida quando, nos anos 70, lá era leitor.

“O meu quarto na Casa do Brasil é o nº 15-A. Escreve-me, por favor”

E agora, para onde lhe poderei escrever?