sábado, 28 de abril de 2012

O fim do mundo (e dos feriados, que é pior)


Por Catarina Fonseca

ÀS VEZES, uma pessoa está sem inspiração. Acordei assim. Raio de país mais cinzento. Raio de mês mais vazio. Há dias que mais vale voltar para a cama. Tristemente, este não foi um deles.

Corri o Facebook à procura de iluminação. Nada. Tirando fado, crise e futebol, nada. Então lembrei-me da secção que o Miguel Esteves Cardoso tinha no ‘Independente’. Chamava-se ‘Encomendação das almas’, onde os leitores lhe davam o mote.
A má notícia foi quando descobri que ninguém se lembrava da ‘Encomendação das Almas’. Os cotas têm memória curta. O Google ainda não era nascido. E os mais novos nem sabem o que foi o ‘Independente’. A boa notícia, é que pelo menos assim podia plagiar à vontade. Pedi então a amigos e conhecidos que me ‘encomendassem’ qualquer coisinha.
Prestimosamente, assim fizeram. Passei a tarde a rir. Houve temas a sério: por que é que as mulheres riem mais do que os homens; pessoas que foram morar para o campo; porque é que se constroem tantas igrejas que parecem hospitais psiquiátricos finlandeses. Houve temas a gozar com a minha cara e o meu drama: Como passar uma tarde de Inverno a colecionar selos; A plantação de cebolas e os fundos comunitários do QREN; A literatura búlgara na segunda metade do século XVIII; como fazer mergulho na costa da Jordânia; A importância do sudoku nas salas de embarque dos aeroportos; porque é que as mulheres não sabem mudar o pneu de um carro (hmmm. E quantos homens saberão?); A vida e obra de Ângela Merkel em quatro volumes; Uma ode ao António Zambujo; Uma ode ao Jerónimo de Sousa; As amantes do ministro húngaro dos negócios estrangeiros; O impacto da Bimby nos homens que vivem sozinhos.
Quando a malta começou a votar em massa nas cebolas e nas amantes do ministro húngaro, achei que era tempo de falar daquilo que mais oprime os portugueses: o roubo dos feriados.
Não sei que raio de contas eles fizeram, mas não me parece que quatro dias façam um rombo assim tão grande na economia do país. É tão ridículo como a meia hora de trabalho extra.
Quem é que queremos enganar? Toda a gente sabe que ninguém passa o 5 de Outubro a meditar na República ou o 1 de Dezembro a dizer ‘ai que bom que não somos espanhóis’, e contam-se pelos dedos os fiéis que celebram o Corpo de Deus. Mas a malta precisa de balões de oxigénio para ir mantendo a sanidade num país onde ela não é muito acarinhada.
O que interessa é que isto é o princípio do fim: qualquer dia tiram-nos os 25 de Abril (nada de instigar o povo à revolução), o 1º de Maio (o dia do trabalhador deve ser passado, precisamente, a trabalhar), o Carnaval (já chega de palhaçadas), o Dia de Portugal (qual Portugal?) e todos os feriados religiosos (afinal, isto é um Estado laico) exceto o Natal, que é bom para o comércio.
De qualquer maneira, nada disto interessa. A minha colega Bárbara que fez o artigo do fim do mundo acaba de me dizer que não adianta nada o saquinho dos terramotos porque isto vai mesmo tudo a eito, e nada vai voltar a ser o mesmo. Ó céus. E achava eu que janeiro era um mês sem graça.
«Passiva» de Janeiro de 2012

terça-feira, 24 de abril de 2012

A GUARDIÃ DA CASA

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Por Alice Vieira

DE VEZ em quando tenho mesmo de arrumar livros.
É trabalho difícil e moroso porque, mesmo que à partida eu pense “vou só arrumar as estantes da entrada”, pego num livro, olho para ele e digo cá para mim, “os deste autor estão todos na estante da sala”- e lá vou eu com ele para a estante da sala mas, para o conseguir encaixar, tenho de desalojar para aí uns dez, e onde é que há lugar para eles? Se calhar só na estante do corredor – e, de repente, dou comigo com os livros das estantes da entrada e da estante da sala e da estante do corredor todos no chão, e eu no meio sem saber para onde me virar.
Daí que o mais habitual é os meus livros amontoarem-se ao Deus dará mas – coisa estranha! – sei sempre onde está aquele de que preciso.
Mas dizia eu que de vez em quando há que fazer arrumações.
Fica bem, os filhos aplaudem (“ó mãe, até que enfim, isto era uma caos!”), a neta mais nova torce o nariz (“ó Vó, e agora onde é que está o “Cuquedo”?! “O “Cuquedo” é um livro que ela sabe de cor e ama de paixão e devia ser leitura obrigatória para todos os menores de 6 anos…)
E, como sempre acontece,nestas arrumações encontramos sempre qualquer coisa que julgávamos perdida, ou de que já não nos lembrávamos.
Foi o caso.
No alto da última prateleira da estante da entrada, aonde raramente vou( o meu metro e 50 não chega, e nem sempre dá jeito ir buscar o escadote à arrecadação) dou com uma jarra minúscula de Vista Alegre, fundo branco e flores cor de rosa pálido, donde se ergue uma espiga de trigo.
Há quantos anos esta espiga ali está! Ressequida, parece quase daquelas espigas falsas que agora é moda meter pelo meio dos ramos de fores, juntamente com joaninhas de plástico e ananases anões.
Mas esta é verdadeira.
Veio comigo de S. Paulo há 24 anos – e ainda ali está.
Era Agosto, e eu estava, com muitos outros escritores portugueses, num Salão do Livro. De repente as notícias da rádio, e depois as das televisões, sobrepuseram-se a tudo o mais: Lisboa estava em chamas.
Com todo aquele mar a separar-nos, as notícias eram desencontradas, não se falava do Chiado, falava-se de Lisboa.
Lisboa inteira ardia – era assim que a notícia chegava aos nossos ouvidos.
Era num tempo em que ainda não se sonhava com telemóveis, e as ligações telefónicas eram complicadas.
Lembro-me de que estava numa cantina a jantar.
Lembro-me de que eram quase duas da manhã.
Lembro-me de que todos estávamos de cabeça perdida, a querer ir embora dali o mais depressa possível.
Lembro-me de me levantar da mesa e dizer “vou já ao hotel e de lá para o aeroporto”, e todos a berrarem que era uma loucura, sozinha àquela hora nas ruas de São Paulo, que esperasse, mas eu não queria esperar nem mais um minuto e saí.
Andei algum tempo à procura de táxi – quando de repente vejo um negro, enorme, meio esfarrapado, a caminhar, de braços abertos, na minha direção.
Pensei “é agora, já nem vou chegar a Lisboa!”, e o negro cada vez se aproximava mais, e dizia qualquer coisa que eu não percebia, cambaleava, perdido de bêbado.
Chega junto de mim, a chorar e a tresandar a cachaça e a miséria. Põe uma mão no meu ombro (“é agora!...”) e estende-me uma espiga, que traz na outra mão.
- É para você, moça! É para você, porque Lisboa está a arder e eu estou muito triste! Leve! É para você…
Ainda hoje não sei como a espiga não se perdeu na barafunda da partida e na emoção da chegada.
Mas, se não se perdeu nessas terríveis horas de confusão, não é qualquer situação caótica de livros que a vai derrubar.
E coloco-a de novo onde sempre esteve.
A vigiar a casa.

Revista juvenil “Audácia”, Abril 2012

domingo, 15 de abril de 2012

QUE FAZEMOS DOS NOSSOS VELHOS?

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Por Alice Vieira

HÁ MUITO tempo que a minha mala não guarda cartas. Postais ilustrados, muitos – desde que aderi a uma coisa salvadora, chamada “postcrossing”, que me traz notícias de gente do mundo inteiro! (Quem estiver interessado, é só ver na net do que se trata)
Mas cartas? Desapareceram.
Ninguém tem tempo para as escrever.
Ninguém sabe já como elas se escrevem.
E — pior ainda — ninguém sabe para o que servem.
Mas eu ainda sou do tempo em que as cartas eram o modo como as pessoas comunicavam quando o que se queria dizer não cabia nos períodos (caros…) do telefone.
Jornalista de profissão há muitos anos, também ainda sou do tempo em que as pessoas escreviam muito para os jornais.
A protestar – muito.
A aplaudir – pouco.
A agradecer – quase nunca.
A pedir – quase sempre.
(E também havia um maluquinho que todos os dias ia ao “Diário de Notícias” para me dar flores murchas, retiradas de algum caixote do lixo, mas entregues sempre com um grande sorriso.)
E nós tínhamos tempo para isso. Para ler as cartas que nos mandavam (e para receber os maluquinhos que nos batiam à porta…)
Uma vez, em finais dos anos 60, poisava eu então num jornal, que já não existe, chamado “Diário Popular”, quando um velho leitor me telefona, dando conta de que uma (em tempos) grande actriz de teatro estava na miséria, sozinha numa cama de hospital.
Chamava-se Lina Demoel – e, embora eu já não a tivesse visto representar, conhecia o nome, sabia de toda uma vida de glória nos palcos, e daquelas extravagâncias que as estrelas faziam, o monograma gravado a ouro na porta do carro que guiava, fotografias ao lado de grandes nomes do music-hall francês, etc …
Escrevi então meia dúzia de linhas no jornal e – confesso -- nunca mais me lembrei do assunto.
E se hoje aqui o recordo é porque, de repente, me cai no colo – no meio destas arrumações de papelada que nos deixam a casa cheia de pó e a pele das mãos encarquilhada – uma carta enviada em meu nome para o “Diário Popular”, datada de 6 de Dezembro de 1969.
Escrita naquele papel com linhas que dantes se comprava nas papelarias propositadamente para cartas, numa letra trémula de pessoa de muita idade.
Assinava-a Lina Demoel.
Pedia desculpa por não poder ir pessoalmente agradecer-me a notícia e por isso me mandava aquela carta, onde me dizia : “ o seu apelo foi ouvido por tantos, tantos amigos, admiradores anónimos, colegas, tenho 169 cartas de todo o Portugal, América e Brasil, e estou-lhe imensamente grata por me ter proporcionado verter lágrimas de alegria no meio de toda a minha solidão e da dor da doença”.
Sorri, com a leitura daquela carta com mais de 40 anos (e de que, evidentemente, já nem me lembrava), achei graça àquele pormenor rigoroso das “169 cartas”, nem mais uma nem menos uma, e pensei que, se fosse agora, o mais certo era haver um chefe para me dizer “o jornal está cheio, não há cá tempo nem espaço para essas palermices, os leitores querem lá saber dessas coisas, ainda se fosse alguém da “Casa dos Segredos”…
Guardei a carta, pensei em como hoje em dia as relações entre as pessoas estão tão diferentes e, vá-se lá saber por que estranhas coincidências, um dos telejornais dessa noite deu uma notícia absurdamente chocante: desde o princípio do ano ( e este telejornal era de fins de Janeiro), dez pessoas tinham sido encontradas mortas em suas casas.
Em pouco mais de 20 dias, dez pessoas tinham morrido absolutamente sozinhas e sem ninguém dar por isso.
Dez pessoas que, pelos vistos, não faziam falta a ninguém.
Alguns vizinhos diziam que sim, que realmente há muito tempo não sabiam delas, outros nem isso – até que finalmente alguém se lembrou de avisar a polícia.
Que mundo é este em que nós vivemos, onde temos sempre tempo para as máquinas, e nunca para as pessoas que vivem ao nosso lado?
Como se as pessoas fossem objectos descartáveis, que se abandonam quando já não nos servem.
Há quanto tempo não visitamos velhos tios ou primos ou amigos?
Há quanto tempo não lhes telefonamos?
Com tanta campanha que se faz (e muito bem!) pedindo “ não abandonem os animais!”, penso que talvez não fosse má ideia fazer também algumas pedindo “não abandonem os velhos!”
Às vezes um simples telefonema, uma visita rápida, um toque de vizinho na porta (ou meia dúzia de linhas num jornal… ) podem fazer toda a diferença.

Revista juvenil “Audácia”, Março 2012

sábado, 7 de abril de 2012

OLHANDO O RIO

Por Alice Vieira

ELISA ENTROU no café porque era o único lugar onde lhe poderiam dizer onde ficava a rua. Teresa explicara-lhe tão à pressa a morada da casa nova que nem dera para entender.
Elisa pede uma bica, para não dizer que não faz despesa, mas o empregado também não sabe muito bem, é novo no café e não mora ali.
É então que o cliente de uma mesa ao fundo lhe dá as informações que ela pretende.
O homem levanta-se com dificuldade, deixa escapar um gemido, os ossos devem massacrá-lo, estica o braço para explicar melhor, vem até à porta arrastando muito os pés, e aponta-lhe a transversal que ela deve apanhar. É muito alto, ela tem de esticar o pescoço para o olhar de frente e agradecer.
Até deixou cair a carteira, quando o reconheceu.
Ele ainda esboçou um gesto para a apanhar, mas ela foi mais rápida, ”não se incomode!”
Só parou na esquina.
Como era possível.
Tinham-se conhecido há mais de 20 anos, e iam casar em Abril.
Ou melhor: tinham-se conhecido na festa de anos da Teresa e, depois de terem dançado umas seis vezes seguidas, ele tinha-lhe dito:
“Daqui a um ano, exactamente neste dia, e às 3 da tarde, vamos encontrar-nos no Alto de Santo Amaro, olhamos o rio, e depois casamos.”
Ela riu:
”Como no filme?”
“Como no filme, mas sem aquela parte da entrevadinha, claro! E com melhor vista!”
Tornaram a rir, e prometeram que não faltariam.
Embora tivesse a certeza de que ele nunca mais se iria lembrar, um ano depois, naquele dia e à hora marcada, ela subiu até ao Alto de Santo Amaro - onde evidentemente, ele não pôs os pés. Lembra-se de ter olhado o rio, de ter dado não sei quantas voltas à ermida, e esperado uma hora, apenas por descargo de consciência, porque sempre soubera que essas coisas só acontecem nos filmes.
E agora, vinte anos depois, vai dar com ele naquele café, a arrastar os pés, a gemer das artroses, com a voz entaramelada dos velhos, a falar para ela sem a reconhecer.
“Nem fazes ideia quem é que eu encontrei!” - exclama, assim que Teresa lhe abre a porta.
Teresa fica tão admirada como ela, também nunca mais o tinha visto, parecia que se tinha evaporado nesse dia há 20 anos e, nunca se lembra de o ter encontrado naquele café desde que se mudara para a casa nova.
“Se calhar encontraste e não o reconheceste! Está um velho caquético, que aflição!”
Riram ambas, “olha o que te esperava agora!”,e concordaram em que tinha sido uma felicidade ele não ter aparecido às três da tarde no Alto de Santo Amaro : Elisa tinha acabado por casar com o Carlos, que ainda era um bonito homem.
Ficam ambas naquela gostosa conversa de amigas em fim de tarde, enquanto no café o homem das artroses conta ao empregado que há uma data de anos tinha conhecido aquela fulana que entrara a pedir informações, até pensara em casar com ela.
“Então e agora não lhe disse nada?”, espantou-se o rapaz.
“Mas você está maluco? Combinámos um encontro para dali a um ano, coisa romântica, está a ver?, tínhamos visto um filme assim, e as mulheres gostam todas dessas coisas…”
“E ela?”
“Não apareceu. Eu ali feito parvo, no alto de Santa Catarina, mais de uma hora a olhar para o rio, e ela nada!”
Pagou a despesa, resmungou “as mulheres nunca são de fiar”, e saiu, arrastando os pés e gemendo das artroses.
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«ACTIVA» de Abril 2012