quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A MEMÓRIA APAGADA


Por Alice Vieira
HOJE, pela primeira vez na minha vida, sinto-me velha.
Tenho o telemóvel na mão e estou há horas a olhar para ele sem saber o que fazer. Acabo por largá-lo, aqueles para quem eu queria ligar já não me vão atender – e, para além deles, já não há mais ninguém capaz de entender a minha não sei se fúria, não sei se raiva, não sei se impotência. A minha — isso sei — grande tristeza.
Dói-me esta perda de memória que vai atacando a nossa sociedade a um ritmo cada vez mais vertiginoso.
Acabo de chegar da Escola Francisco Arruda, onde acho que já não entrava há mais de 40 anos. Ótimas instalações, tudo a cheirar a novo.
A escola Francisco Arruda foi o “sonho” de um homem chamado Calvet de Magalhães, um dos maiores pedagogos deste país que, nesses anos 50 da sua fundação, a transformou num oásis de educação e de cultura. Pioneiro de muitas causas (a integração de alunos deficientes foi uma das suas grandes lutas), foi sobretudo um animador cultural num tempo onde o desânimo imperava. A escola estava então rodeada de bairros de lata e, todos os sábados, ele abria as portas a toda a comunidade. E havia exibição de filmes, palestras, ateliers de olaria, histórias contadas aos miúdos, etc. Era uma maravilha ver aquela escola cheia de gente, que a considerava sua.
Hoje isso pode parecer habitual, naquele tempo não era.
O Prof.Calvet foi ainda fundador da Associação Portuguesa para a Educação pela Arte, que durante anos manteve uma atividade regular, destacando-se a publicação de uma coleção de histórias infantis, sempre ilustradas pelos meninos da Francisco Arruda. E aí se integrava a organização de um concurso, a nível nacional, chamado “O Natal Visto pelas Crianças”, a que o Diário de Lisboa se associava.
É aí que eu entro — a fazer a ligação entre as reuniões do júri, e a publicação dos textos nas páginas do jornal.
É difícil entender hoje a importância desse concurso. Para já, o júri era de peso: para além do Prof. Calvet, como organizador, José Gomes Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Maria Lúcia Namorado, Alice Gomes, Rocha de Sousa, António Domingues. E eu, na verdura dos meus 18 anos, a ouvi-los, a aprender com eles, a rir muito com eles. Vinham caixotes de textos do país inteiro, as reuniões eram prolongadíssimas e duravam muitos dias — mas eram sempre uma festa. Lia-se cada texto como se fosse candidato ao Prémio Nobel — e quando se chegava àquela altura dramática dos 11 anos, em que os meninos já estão formatados pela escola e dizem todos os mesmos lugares- comuns e era difícil encontrar um melhor que outro, a voz do Zé Gomes:”ó Matilde, leia lá em voz alta que, na sua voz, tudo é uma maraviha!”
Depois um dia, de repente, o prof. Calvet de Magalhães diz-me:”no sábado vais ler histórias aos miúdos lá na minha escola.” Pensei que estava a brincar comigo, eu nunca tinha escrito uma história na minha vida, nem me lembrava de alguma vez ter contado histórias fosse a quem fosse. Ri-me, fiz-me desentendida, mas ele: ”sábado de manhã, não faltes!”
E lá fui. Sei que escrevi uma história mas não me lembro de mais nada, a não ser de me ver diante de um ginásio a transbordar de gente, e eu num palco, em frente de um microfone a tentar ler o que levava escrito numas folhas de papel.
Lembro-me que levava um vestido cor de laranja. Lembro-me de ter ouvido muitas palmas. E lembro-me do Prof. Calvet a dizer: ”para a semana cá te espero”.
Foram as primeiras histórias que escrevi, para muitos daqueles sábados de festa, que se prolongaram por muitos anos.
O Prof. Calvet foi diretor da Francisco Arruda até à sua morte: na turbulência da revolução, quando começou de repente a ver a “sua” escola transformada, e no ar a ameaça de deixar de ser seu diretor, não aguentou e suicidou-se.
O Pror. Calvet de Magalhães faria em Março cem anos.
E eu sempre pensei que, no seu centenário, o país lhe fizesse a homenagem que ele merece. Mas Março passou — e nada aconteceu.
Então pensei que possivelmente a Escola se teria encarregado disso.
Mas a Escola nem sequer tem uma placa com o seu nome em lado algum. Nem o seu nome foi dado, como seria de toda a justiça, à biblioteca. Entra-se ali e é como se ele nunca tivesse existido.
E eu chego a casa a pensar nesta falta de memória coletiva — e pego no telemóvel para dizer à Matilde, ao Zé Gomes, à Maria Lúcia, à Natércia Rocha, ao Mário, à Maria do Sameiro, “vocês já viram que ninguém se lembrou do centenário do Prof. Calvet?”, mas não digo, porque já todos morreram, e eu fico, entre as paredes da minha sala, sem saber com quem partilhar raivas e mágoas. E sem saber o que fazer no meio deste silêncio vergonhoso.
 «Senior» de 18 Jul 13

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A LISTA

Por Alice Vieira
RECEBI ontem um postal de um amigo muito querido, que anda agora por terras de Espanha. Três linhas, não mais – mas o suficiente para me iluminar o dia que, diga-se, andava assim um bocado para o fusco.
Penso muitas vezes no que seria de mim sem esta presença constante dos amigos .
Amigos que escrevem cartas e postais: o Manel ensina-me o nome de todas as plantas que cultiva lá em A-dos-Negros, acho que ainda não perdeu a esperança de me ver ingressar no clube dos jovens agricultores; a Cristina manda-me desenhos e a luz da ria vem com eles; a Marina descobre verdadeiras preciosidades do tempo em que que éramos crianças; o António manda postais de todos os lugares onde faz exposições; o Eduardo fala-me do seu Porto que ele tão bem fotografou; etc…
Amigos que telefonam às horas mais improváveis — sem terem nada de transcendente para me dizer…
Amigos que me trazem pedras ou conchas ou folhas dos lugares por onde andaram, porque sabem que essas são as verdadeiras prendas, as que não têm preço, as que possuem real significado, as que guardo para sempre.
Claro que lhes pago na mesma moeda — porque tem de haver sempre tempo para um amigo, se não nos quisermos arriscar a um dia acordarmos e verificarmos que estamos sozinhos.
Pocuramos então os amigos… e qu’é deles?
Então depois começam as lamúrias, ai que ingratos, ai que insensíveis, ai que isto, ai que aquilo — sem nos perguntarmos se a culpa também não terá sido nossa.
Porque uma boa rede de amigos prepara-se com antecedência (naquele tempo em que pensamos que vamos ser jovens para sempre…), cultiva-se, aumenta-se, se possível . Não tem explicação a quantidade de amigos que fiz nestes últimos anos. Amigos de verdade, disponíveis, com quem é muito bom estar à mesa (na minha casa ou na deles) pela noite fora, naquela conversa mole que anima as nossas almas.
Ora diga-me lá: há quanto tempo não escreve a um amigo?
A sério, escrever mesmo. Com “papel e tinta, caneta e mata-borrão” , como cantava a Tonicha no “Resineiro” de boa memória.
Não são precisos grandes discursos, às vezes duas ou três linhas são o suficiente – exactamente como no postal que recebi ontem.
Um postal a dizer estou aqui, pensei em ti, não estamos sozinhos.
Não sei se conhecem as canções de um brasileiro chamado Oswaldo Montenegro. Basta ir ao Youtube e procurar. Mas, para aqueles que ainda não estão muito familiarizados com essas modernices, vou aqui deixar algumas estrofes de “A Lista, uma das canções dele de que mais gosto — e em que devíamos reflectir um pouco.
Aí vai:
“Faça uma lista dos grandes amigos/que você mais via há dez anos atrás/quantos você ainda vê todo o dia/quantos você já não encontra mais/faça uma lista dos sonhos que tinha/quantos você desistiu de sonhar/(…)onde você ainda se reconhece/ na foto passada ou no espelho de agora?/ hoje é do jeito que achou que seria?/ quantos amigos você jogou fora?/quantas mentiras você condenava/quantas você teve de cometer/quantos defeitos sanados com o tempo/ eram o melhor que havia em você/ quantas canções que você não cantava/ hoje assobia para sobreviver/quantas pessoas que você amava/hoje acredita que amam você?”
Se não nos precavemos, com o andar dos tempos isto é o que acontece a quase toda a gente.
Por isso vamos lá fazer a lista, e chamar os amigos que esquecemos (enquanto os podemos chamar…), e inventar motivos para estarmos juntos (um concerto, uma peça de teatro, um café na Baixa ) e para celebrar.
Para celebrar o quê?
Tudo.
Seja o que for.
O nosso dia de anos. O dia da santa do nosso nome.
Comprei há um ano uma mesa nova para a minha casa de jantar—e ainda não parei de fazer jantaritos com amigos para festejar o acontecimento!
E não esquecer a carta ou o postal. Mesmo que não tenham grandes novidades para dar.
Um dia, teria ele para aí uns sete anos, o meu filho foi de viagem com amigos. “Escreve um postal!”, recomendei-lhe imediatamente.
Escreveu.
Assim: “mãe, não tenho nada para dizer, beijinhos”.
É o postal que anda sempre na minha carteira, já lá vão quase 40 anos.
É o que eu digo: às vezes bastam meia dúzia de palavras para iluminar os nossos dias.
«Sénior» de 20 Jun 13

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

CÁ POR MIM

Por Alice Vieira
PELA PRIMEIRA vez na minha vida faço parte de uma equipa que está a fazer nascer um novo jornal. Todos aqueles por onde passei tinham já dezenas e dezenas de anos de trabalho, tradição e público.
Desta vez é uma aventura.
E também, ao que se diz, este é um jornal destinado àqueles a quem já cantaram os “parabéns a você” muitas e muitas vezes.
Ótimo. Sinal de que estão vivos – coisa de que nem todos os vivos se podem gabar.
Mas esta coisa da idade é sempre muito relativa…”Coitado, já tinha uma certa idade”, diz-se normalmente quando morre alguém não muito novo.
Mas eu nunca percebi o que é ter “uma certa idade”.
Tenho sempre diante dos meus olhos – colado na parede onde também estão coladas as fotografias dos homens da minha vida, entre os quais os netos… - um postal que em tempos um amigo me enviou de Berkeley e que, numa tradução tão aproximada quanto possível, diz: “Que idade terias se não soubesses a idade que tens?”
E posso garantir-lhes que a resposta varia todos os dias.
Neste momento, por exemplo, a tentar sair de uma gripe que parece ter-se apaixonado inabalavelmente por mim, se eu não soubesse a idade que tenho era bem capaz de jurar que andava aí pelos 200, mais Manuel de Oliveira, menos Manuel de Oliveira.
Mas antes de a gripe me ter atacado, eu diria que andava aí pelos 30 ou 40.
“Esse é que é o teu mal! Pensas que tens 20 anos, e não tens! ”, refilava ontem a minha filha, quando entrou no meu quarto para me deixar os remédios na mesa-de-cabeceira. (Não liguem. No fundo, no fundo, mas lá mesmo bem no fundo o que ela queria dizer era “coitadinha, estás doentinha e a morrer” e  fazer-me tap tap na cabeça.)
Isto tudo só para dizer que velhice é coisa muito discutível. E que, por mais que se refile e se entre em depressão, ainda não se inventou outro meio de se viver muito tempo.
Mas para os que, às vezes, estão quase a sucumbir a esse peso da idade, nada melhor do que ligarem para o Canal Parlamento, e olharem para aquelas bancadas: há deputados (não, não vou dizer o nome de nenhum embora às vezes bem me apeteça), aí na casa dos 30/40, que eu juro que já nasceram com 100 anos em cada ombro: falam com 100 anos em cada palavra; exibem ar de mau com 100 anos em cada sobrancelha.
Se calhar a maioria de nós, que entramos agora nesta extraordinária aventura de fazer um jornal como este, não estará nos seus, digamos, verdes anos de adolescência e juventude. Pois não. Mas, sem nenhuma espécie de saudosismo, assiste-nos a todos a enorme vantagem de termos conhecido o antes e o agora.
A maioria de nós foi do tempo da caneta, das máquinas de escrever com aquelas fitas metade vermelhas metade azuis, que era preciso fazer render ao máximo porque eram caras e o chefe fazia sempre cara feia quando era preciso requisitar alguma — mas também é do tempo dos computadores.
A maioria de nós foi do tempo do chumbo, das velhas rotativas, das linotypes, da maquetagem a régua e esquadro nas enorme folhas de papel — mas também é do tempo das páginas formatadas no écran.
A maioria de nós foi do tempo em que o jornalismo se aprendia com os mais velhos, ali na tarimba, com os nossos erros, com as dezenas de vezes que tínhamos de rescrever a notícia e nem pensávamos que algum dia viria a ser de outra maneira — mas também é do tempo das escolas de jornalismo.
Isto para não falar da maior diferença de todas: a maioria de nós foi do tempo da censura, das páginas retalhadas pelo lápis azul, da angústia de perder as ligações se os jornais se atrasassem - mas também é do tempo da liberdade.
Mas, ó gente, o que eu queria mesmo dizer – e juro que ninguém me encomendou o discurso nem sequer falei com os chefes – era que, e parafraseando o título de um filme dos Irmãos Coen, “Este jornal não é para velhos”!
Pois, se calhar não vamos ter aqui todos os dias notícias e reportagens do Justin Bieber (tadinho, acho que lhe foi apreendida droga no carro, vejam lá!, só tenho coisas que me ralem…),nem me estou a ver de plantão à casa da Venda do Pinheiro — mas não falharemos certamente o que acharmos de interesse, seja qual for a nossa idade, e seja qual for a idade que tem quem nos vai ler.
Cá por mim, irei escrever com o mesmo espírito com que escrevi em todos os jornais por onde andei.
E, já agora, bem podemos aproveitar um slogan que ainda aí estampado na parte de trás dos assentos de muitos táxis -“Entre no dia com um sorriso!” — e entrar também neste jornal com um enorme sorriso.
Pelo menos de quinze em quinze dias, a vida vai sorrir-lhes um bocadinho mais.
Cá por mim, farei tudo por isso.
In «Sénior» de 23 Mai 13

segunda-feira, 25 de março de 2013

O SENHOR QUE CONTAVA HISTÓRIAS

Por Alice Vieira
HÁ MUITOS, muitos anos, eu tive a vossa idade.

“Ainda havia dinossauros?”, perguntou-me há dias o meu neto mais novo.

Não, realmente JÁ não havia dinossauros.

Mas AINDA não havia televisão, nem computador, nem telemóvel, nem iPOD, nem MP3, nem Playstation, nem uma série de outras maravilhas, indispensáveis na nossa vida actual.

Mas o facto de elas não existirem não impediu que – no meio de uma infância difícil, solitária e pouco afectuosa - eu fosse uma criança feliz.

E essa felicidade devo-a aos livros que li — e, muito especialmente, aos livros de um senhor chamado Adolfo Simões Muller.

Adolfo Simões Muller sabia muitas histórias, e levou toda a sua vida a contar histórias.

Os seus livros estavam cheios de heróis, de artistas, de exploradores, de aventureiros, e ele contava as suas histórias como se eles vivessem mesmo ali ao nosso lado, como se, de repente, entrassem pela nossa casa dentro, como se fossem nossos amigos, com quem pudéssemos passar a tarde inteira a conversar.

As personagens dos seus livros foram os amigos verdadeiros que tive na minha infância.

Atacada sempre por muitas doenças, eu sonhava com a noite em que Florence Nightingale (enfermeira inglesa, famosa pela sua actuação na Guerra da Crimeia, no séc. 19, e personagem de “A Lâmpada Que Não Se Apaga”) chegasse à beira da minha cama, pusesse a mão na minha testa e espantasse a febre para muito longe.

E quando vinha o frio, eu recordava sempre a cena em que Madame Curie (cientista, que descobriu o rádio, Prémio Nobel por duas vezes, e personagem de “A Pedra Mágica e a Princesinha Doente”) estudante quase na miséria, quando se deitava punha a cadeira do quarto em cima da cama, para ter a ilusão de mais calor.

Com os livros de Adolfo Simões Muller, eu aprendi que a nossa vida era aquilo que nós conseguíssemos fazer dela.

Com o “Príncipe do Mar” (que têm agora em vossas mãos), eu aprendi a ter orgulho do povo a que pertenço — que se meteu à aventura sobre águas desconhecidas, rumo a terras desconhecidas, ouvindo as vozes de então garantir que a linha do horizonte era o fim do mundo, e que para lá do fim do mundo havia só dragões.

Mas o Infante D. Henrique sabia que nada disso era verdade, que havia muitas terras para lá daquela linha que a nossa vista alcançava, e descobri-las foi o sonho e o trabalho de toda a sua vida.

E a realização desse sonho foi tão importante que, com tantos infantes que a nossa história teve, ainda hoje quando dizemos “O Infante” — é sempre a ele que nos referimos.

Os livros do Adolfo Simões Muller têm atravessado gerações. Os meus filhos leram-nos, e deram-nos aos filhos que depois tiveram.

É bem possível que os teus pais e os teus avós os tenham também lido.

Agora é a vossa vez.

E só lhes peço que, depois de lerem (e relerem…) este “Príncipe do Rio”, o guardem com muito cuidado na vossa estante.

Para um dia chegar em bom estado às mãos dos vossos filhos, e deles às mãos dos vossos netos.

Que, muito possivelmente irão olhar para vocês e perguntar:

- No vosso tempo ainda havia dinossauros?...

sábado, 16 de março de 2013

UM BREVE RECADO PARA AS EDUCADORAS DE INFÂNCIA

 Por Alice Vieira
ELAS CHEGARAM agora junto de ti.
Elas pensavam que o mundo cabia inteiro nas paredes da sua casa, e que quem lá vivia eram os seus únicos habitantes. Terás de mostrar-lhes que não é verdade.
Elas têm poucas palavras para nomear o que as rodeia. Terás de as ajudar a encontrar as que faltam.
Elas vão ver o mundo com as cores que tu puseres em cada som e em cada gesto.
Elas vão olhar para ti, aprender o teu nome, chamar-te por tudo e por nada, geralmente por nada. Que é sempre tudo.
Vais mostrar-lhes como se vive com os outros, como se aceita quem não é igual a nós, tal como se aceita um desenho pintado com todas as cores do arco-íris.
Vais aprender a ter de lhes dizer muitas vezes “ não”, sem te deixares levar pelo seu beicinho irresistível.
Mas vais também dizer-lhes muitas vezes “sim” e sentir que é para ti que elas sorriem e estendem as mãos.
Vais levá-las ao jardim quando há sol, vais empurrar baloiços que chegam ao céu, vais assoar narizes cem vezes ao dia, vais fazê-las aprender a gostar de sopa, vais ler-lhes histórias e ensinar-lhes que todas as meninas têm direito a ser princesas, e todos os meninos têm direito a ser piratas das Caraíbas.
Elas vão ser, naquele pequeno universo diário, os filhos que tens em casa, ou na escola, ou não tens, ou esperas vir a ter mais tarde.
E por vezes podes sentir uns ligeiros remorsos por teres para elas o tempo que não tens para os teus.
Elas levam-te nos olhos quando à tarde as vêm buscar. E esperas que te levem também no coração.
Elas vão acreditar em ti como acreditam nas fadas e no Pai Natal.
Elas vão pôr-te os nervos à flor da pele e fazer-te esquecer, por vezes, o que aprendeste, e perder a paciência que sempre julgaste inesgotável.
Elas vão fazer-te suspirar pela hora do regresso a casa, vão fazer-te levar muitas vezes as mãos à cabeça e proferir intimamente palavras impronunciáveis. Porque elas são crianças. E porque tu és humana.
Resumindo: elas vão-te fazer feliz para o resto da tua vida.
 -
Para um prefácio de uma agenda das Educadoras de Infância

quinta-feira, 7 de março de 2013

CHÁ DAS CINCO


Por Alice Vieira

DIZEM que foi um imperador chinês que o descobriu.
Preocupado com longas epidemias que assolavam o império, ordenou que toda a gente bebesse água sempre fervida.
Um dia, estava ele à sombra de uma árvore e pediu água. Lá lhe trouxeram a água a ferver, e ele teve de esperar alguns minutos, pois até mesmo quem é imperador não aguenta água a escaldar pela goela abaixo.
Enquanto esperava, não reparou que umas folhas da árvore tinham caído para dentro do copo (chávena? caneca? malga?) e a água tinha ficado um bocado para o castanho.
O natural seria – sobretudo rodeado de epidemias por todos os lados… - que deitasse fora aquela mistela e voltasse a pedir mais água fervida, e nós nunca viríamos a saber de nada.
Mas não.
Ou porque a vista já não estivesse lá muito apurada, ou porque a sede fosse insuportável, ou porque – e eu aposto nesta... — pensou que a um imperador nada de mal podia acontecer, o certo é que bebeu tudo. E até gostou!
E como não morreu nem lhe aconteceu nada de grave nos dias seguintes, deve ter chegado à conclusão de que a planta não era venenosa e vá de se aproveitar dela.
Não sabemos que árvore seria exatamente aquela (Lapsang Su Chong, seria??) mas aquele foi o primeiro chá que se bebeu no mundo inteiro.
Também há quem tire o imperador dessa história e diga, muito simplesmente, que desde tempos muito antigos os monges budistas cultivavam chá nos Himalaias.
Seja como for, depois entra muita gente ao barulho, até que aparecemos nós, portugueses, que, ao chegarmos ao oriente, pegámos no chá e trouxemo-lo para o porto de Lisboa – donde partiu para outros mundos.
Como sempre, tivemos tudo nas mãos, e perdemos para outros, sobretudo para os holandeses.
 Adiante.
O mais importante é que os pais do british “five o’ clock tea” – somos nós.
É por nossa causa que os ingleses andam sempre de caneca na mão, e que não há personagem de livro, filme ou série britânica que, a dado momento, não diga "let’s have a cup of tea".
Já pensaram no inspetor Maigret ou em qualquer polícia americano a pedir chazinho???
Tudo porque no século XVII, a nossa princesa D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV, quando foi para a corte inglesa casar com Carlos II, instituiu esse hábito. Às cinco da tarde, chazinho para a rainha e suas damas.
As minhas velhas tias eram burguesas e republicanas, mas isso não as impediu, séculos mais tarde, de seguirem o exemplo de D. Catarina: tocavam a campainha (vocês ainda são do tempo em que havia campainhas colocadas em todas as salas das nossas casas?), a criada aparecia e elas diziam “ Emília, traga o chá.”
Nunca lhes passou pela cabeça irem à cozinha pedi-lo, e muito menos fazê-lo…
E depois seguia-se todo um ritual, de folhas de chá, de bules escaldados, de chávenas de Vista Alegre.
Aprendi com elas que todas as doenças se podiam curar com chá — de cavalinha, de tília, de macela, de camomila, de carqueja, do hipericão do Gerês, de perpétuas roxas, de cascas de cebola, de pés de cereja, de raiz de valeriana, de erva-do-diabo, de hortelã, de hibisco, de calêndula… digam-me a maleita e eu receito o chá.
Nessa altura não me lembro de ouvir falar em chá verde, branco ou vermelho. Ou bem que era chá – preto, forte, a escaldar e sempre sem açúcar – ou bem que era “chá de” : a primeira vez que tomei contacto com a palavra ”tisana” foi nos livros do Poirot (que era belga!) e tive de ir ao dicionário ver o que era.
Para lá de ter herdado das tias a sabedoria do chá, herdei-lhes também os bules, para os quais de vez em quando olho. Mas confesso que hoje em dia já os uso pouco: a água a ferver é deitada na caneca e dispenso os rituais.
As tias devem dar voltas no túmulo.
D. Catarina também.
 -
In Revista “Epicuro”, Out. 12

segunda-feira, 4 de março de 2013

Ruy Belo

Por Alice Vieira

CONHECI o Ruy Belo quando ambos entrámos para a Faculdade de Letras de Lisboa, em 1961.

Eu era uma jovem ainda a cheirar à infância do liceu; ele, dez anos mais velho, já tinha uma série de cursos no currículo, um doutoramento feito em Roma, um livro de poemas publicado.

 A princípio fazia-me confusão que uma pessoa como ele ainda insistisse em estudar mais, e se tivesse de novo matriculado numa faculdade, e andasse ali junto dos caloiros ( e todos juntos estaríamos quando, pouco tempo depois, rebentou a greve académica, que nos uniu ainda mais.)

Mas a nossa faculdade fazia-se muito mais no bar de Letras, onde a Menina Manuela tirava bicas, e onde as mesas se enchiam de gente que falava, discutia, acreditava que era possível fazer do país um lugar onde – como ele dizia pelo meio desse primeiro livro – “ um dia haverá barcos e seremos livres”

Às vezes, de repente, o Ruy exclamava:

“Tenho de ir para casa”.

E levantava-se da mesa e saía.

E eu sabia que era um poema que estava a chegar. Nunca conheci nenhum poeta a quem a inspiração chegasse assim.

Mas o Ruy era também a pessoa mais desorientada que alguma vez conheci na vida…

Nunca me hei-de esquecer do dia em que ele insistiu em ir buscar-me a casa para irmos…? À distância destes anos todos não me lembro exatamente onde iríamos, mas possivelmente a uma exposição de pintura na Galeria 111, que era o poiso de todos nós. Mas lembro-me de ter dito “eu levo o meu carro” (o meu carro era, na altura, o carro onde se amontoava toda a gente, “que saudades do tempo em que, para nós, “mini” era o teu carro e não uma cerveja”, dizia há dias o Jorge Silva Melo, nosso comum amigo…), e de ele ter respondido “desta vez vamos no meu”.

Eu vivia então na Av. António Augusto de Aguiar – e até hoje me lembro do pânico que senti quando o Ruy, metendo a primeira para arrancar, começa a subir a Av. Fontes Pereira de Melo — em sentido contrário.

“Ó Ruy, não é por este lado!”, gritava eu, e os carros que vinham contra nós a buzinarem feitos doidos, e ele “deixa estar que isto é rápido!”

Era nos anos 60, claro. Se fosse hoje, com o trânsito de hoje, aquele teria sido o nosso último dia de vida.

Depois o curso acabou, as nossas vidas levaram rumos diferentes, mas nunca deixei de estar em contacto com ele, e às vezes aparecia cá por casa, ou vinha jantar (quase sempre em dia diferente daquele que tinha sido combinado…).

Lembro-me de como me indignei quando não o deixaram entrar como professor na faculdade, e ele teve de ir dar aulas num curso noturno de uma escola do então Ensino Técnico, no Cacém.

Lembro-me de ouvir a sua voz magoada: “à noite, quando chego a casa, custa-me tanto subir as escadas…”

Hoje, enquanto recordo tudo isto, tenho na minha frente um postal da Fonte de Neptuno, em Madrid, que ele me escreveu, na sua letra tremida quando, nos anos 70, lá era leitor.

“O meu quarto na Casa do Brasil é o nº 15-A. Escreve-me, por favor”

E agora, para onde lhe poderei escrever?