sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

UMA QUESTÃO DE COIMAS

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Por Alice Vieira

O MUNDO está louco. (Isto por acaso soava melhor se fosse “tá”, mas o acordo ortográfico, que transformou todos os “espectadores” em “espetadores”, ainda não chegou a tanto).

Claro que há as grandes, as enormes, as desvairadas loucuras, que implicam sangue e mortos e massacres, com as pessoas a tentarem sobreviver, sabe-se lá como, e a tentarem fugir, sabe-se lá para onde.

Mas depois há aquelas loucuras pequeninas, quase nem se dá por elas, começam devagarinho, uma pequena notícia num dia e no outro já se esqueceu, que o pessoal tem mais que fazer.

Então parece que pelos Açores há quem proponha castigar os pais que não acompanhem os filhos nos estudos.

Mas castigar mesmo.

Com multas e perdas de direitos sociais.

“Coimas”, para parecer ainda pior. (Quando uma multa passa a coima, estamos feitos.)

Imaginem lá no Pico, nas Flores, na Graciosa, seja onde for, um desgraçado a chegar a casa derreado do trabalho, e ainda ter de dizer «ó Zé, vai lá buscar Os Lusíadas para a gente dividir as orações, senão o professor queixa-se, o governo sabe, e lá se vai o abono!»

No nosso país nada se constrói sem ameaças ou mão pesada.

Alguma coisa não corre bem? Coima para cima dela!

Não há sequer a preocupação de, como me disse um dia um extraordinário polícia que me desculpou uma infracção (levezinha…), “fazer pedagogia”.

Não seria preferível, nos Açores (ou em qualquer outro sítio…) ,explicar aos pais que têm de saber se os seus filhos vão ou não vão à escola, têm ou não têm aproveitamento, essas coisas?

Fazer pedagogia?

Não.

À partida, é logo a ameaça, é logo o chicote.

A gente manda com a coima (hoje estou apaixonada por esta palavra…) e depois logo se vê.

Se, quando os meus filhos andavam na escola, esta lei estivesse em vigor, as finanças tinham-se endireitado num instante: nunca me lembro de os ter ajudado nos trabalhos de casa, nem de alguma vez lhes vistoriar os cadernos.

(O que me vale é viver em Lisboa, senão ainda esta tardia confissão me levava a ser condenada, e a pagar retroactivos…)
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«JN» de 25 Fev 11

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

AS VELHINHAS INGLESAS

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Por Alice Vieira

DEPOIS da família real e dos polícias, as velhinhas são uma instituição inglesa.
Nenhum país tem velhinhas como as inglesas.
As francesas são terríveis, espiando-nos debaixo dos seus chapelinhos cinzentos.
As nossas enchem autocarros e urgências de hospitais só a falar de doenças, ou deixam-se enganar por qualquer caramelo que lhes bata à porta a prometer fortunas se elas lhes passarem para as mãos as economias guardadas no colchão.
As inglesas, não.
Agatha Christie olhou-se ao espelho e depois olhou à sua volta, e percebeu logo que o poder estava nelas.
Miss Marple, entre duas carreiras de meia e liga, ou entre duas chávenas de Earl Gray, sorri para nós, “oh dear, oh dear!”, e diz-nos, na sua voz mansa, quem matou o diplomata, ou o vizinho de cima, ou a estrela de cinema. E descobrimos que estava tudo diante dos nossos olhos, ela nem sequer faz caixinha, como o antipático do Poirot, que descobre tudo só porque tem elementos que nós não temos…Homens… (E belgas…)
Desde então, as velhinhas inglesas têm sido tema de livros, filmes, séries, etc. Quem não se lembra da extraordinária Mrs. Wilberforce, de “O Quinteto era de Cordas”, que, entre velhas amigas, scones, e Mozart, deita por terra o projecto de cinco assassinos encartados.
Um encanto, as velhinhas.
Só que, até mesmo em Inglaterra, a tradição já não vai sendo exactamente o que era...
E quando aqueles seis gatunos de meia tigela, em Northampton, se lembraram de assaltar uma joalharia — uma velhinha apareceu.
Vestida de vermelho – mas velhinha.
Só que, de repente, sem a doçura de Miss Marple ou o sorriso de Mrs. Wilberforce, vá de se meter ao estalo, ao soco e ao murro a todos eles, com uma das mais mortíferas armas que uma velhinha pode usar: a mala de mão.
Os ladrões foram apanhados — e ainda agora devem estar a tentar perceber como é que, de um momento para o outro, as velhinhas inglesas ficaram tão diferentes.
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«JN» de 11 Fev 11

sábado, 5 de fevereiro de 2011

PRINCESAS FELIZES

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Por Alice Vieira

DETESTAVA festas de escola.

As mães a gabarem as gracinhas dos filhos, e os pais com as câmaras de vídeo apontadas ao palco para imortalizarem aquele segundo em que a Martinha, no seu fato de borboleta, se enganou no passo mas disse adeus à tia Henriqueta , ou em que o João Maria se estatelou entre as meninas e desatou num berreiro que parecia não ter fim, mas que engraçadinho que ele ficava quando fazia birras!

Por isso quando Miguel há tempos telefonara a dizer que este ano ia ele com a filha à festa de carnaval da escola, ela até tinha suspirado de alívio.

Claro que devia ter logo desconfiado.

O Miguel nunca na sua vida tomara nota de nada (“não sei como consegues viver sem agenda…”, repetia-lhe ela muitas vezes, nos cinco anos que aguentara casada com ele), não era agora que ia começar.

Ela devia ter-se lembrado de lhe telefonar todos os dias, ou de o bombardear com SMS, ou e-mails — mas a verdade é que descansara, e só o recordou mesmo na véspera.

- Ó diabo! Passou-me completamente! Tenho uma reunião e a esta hora já não dá para desmarcar… Mas para o ano não falto!

Mas ela está-se nas tintas para o ano, o que ela queria era que ele viesse hoje, agora, dentro de uma hora no máximo.

Porque ela também tem uma série de compromissos a que não pode faltar, e agora está ali no café, telemóvel colado à orelha, a filha vestida de Fiona sentada na sua frente, enquanto ela tenta arranjar solução.

São quase horas, a miúda não entende por que ainda ali estão, e murmura

- Quem é que me leva à festa, mãe?

E ela nem lhe responde, marca novamente um número, desliga, volta a marcar,

- Mãe, quem é que me leva…

- Está calada! Não me enerves mais do que eu já estou!

E passa o telemóvel para a outra orelha, mas ninguém atende, parece que toda a gente se esqueceu dos telemóveis em casa, ou estão longe deles, ou simplesmente têm-nos fechados.
Olha para o relógio, tira um cigarro da mala mas logo o volta a enfiar no maço, ali não se pode fumar, e os minutos voam.

- Mãe...

Faz que não a ouve, e volta a clicar nas teclas, e então, de repente, alguém atende, e ela respira fundo, e dá logo a ordem, rápida e seca, nem “olá,” nem “estás onde”, nem “então é assim”, nada.

- Tens de ir com a miúda à festa da escola, vem já ter ao café, depois explico.

Telemóvel desligado, sem dar possibilidade de resposta.

- Era o pai, mãe? — pergunta a miúda, tentando sorrir.

- Mas qual pai… Alguma vez o teu pai tem tempo para nós? Esqueceu-se outra vez de ti, está claro…

- Então quem é que me leva à festa, mãe?

Um fiozinho de voz, quase a tremer.

Ela bebe finalmente a bica, decerto gelada de tanto esperar, e enfia o telemóvel para dentro da mala.

- O Fernando. Está aqui está a chegar.

A filha baixa os olhos.

- O Fernando?...

- Sim, o Fernando. Que é que isso tem?

- Queria o pai…

- Ora…O teu pai ou o Fernando, que diferença faz? O que é preciso é chegares a horas.

A miúda leva as mãos aos olhos.

- Não me faças cenas , que farta de cenas ando eu…

Não faz.

Deixa apenas cair algumas lágrimas no vestido, mas logo as tenta enxugar com a mão.

Ela é uma princesa.

E as princesas, como dizem as histórias que ela ouve na escola, vivem felizes para sempre.
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«ACTIVA» de Fev 2011