quinta-feira, 25 de agosto de 2011

COM A BÊNÇAO DE S. FIRMINO

Por Alice Vieira

Quando as filhas se querem armar em casamenteiras das mães, regra geral não se saem bem da empreitada... Nem com a ajuda dos santos.

JÁ NÃO estava com paciência para aquelas coisas.
Mas a filha tanto insistira (“ó mãe, até um cego consegue ver que o Firmino está mesmo caidinho por ti!”) que ela acabara por ceder.
A princípio concordou em convidá-lo para um café, coisa normal entre vizinhos, mais do que isso estava fora de causa.
A filha franziu o sobrolho.
“Um café? Que graça é que isso tem? Não, senhora, vais convidá-lo para um jantar aqui em tua casa. Não és tu que, por tudo e por nada, fazes jantarinhos cá em casa? Ou e porque o Benfica ganha, ou e porque o Benfica perde…Não me digas que não consegues encontrar agora um motivo para o convidares… Dizes que é para festejar, sei lá, a lua cheia, o equinócio, uma coisa qualquer que te passe pela cabeça… “
Ela ainda tentou reagir, mas no dia seguinte a filha entrou-lhe em casa a rir e com um jornal na mão:
“Olha, motivo já aí tens: depois de amanhã é dia de S. Firmino! Diz aqui! Não é tarde nem é cedo: bate-lhe a porta ou pega no telefone e liga-lhe para o convidares a festejar o dia do seu santo.
“E que fez o S. Firmino para merecer ser santo?”
A filha leu:
“Dia 25 de Setembro, dia de S. Firmino, 1.º bispo de Amiens, e martirizado nessa cidade.”
Fez uma pausa.
“Não dará para grandes conversas, mas serve como motivo do convite.”
Ainda protestou. Que era um disparate, o Firmino era apenas um vizinho do prédio, simpático mas nada mais do que isso.
A filha nem a deixou continuar:
“Às vezes, quando eu vou contigo no elevador e ele entra, até faz pena ver aqueles olhinhos de carneiro mal morto…Aquilo não é amor, mãe, aquilo é paixão!”
E o convite foi feito (“S. Firmino? Olhe que nem sabia…”) e aceite.
E a carne foi assada lentamente no forno, com todos os temperos que a receita exigia (“carrega no açafrão, mãe, que e afrodisíaco!”).
E os morangos foram misturados com framboesas e temperados com folhas de hortelã, cortadas directamente da planta, que crescia no vaso junto da janela.

Chegou a hora marcada.
De casaco e gravata, apesar do calor, e a rosa da praxe embrulhada em celofane.
“Parece que me vem pedir em casamento”, pensou, e por pouco não desatou a rir na frente dele.
Pôs um CD do Andre Rieu, cheio de violinos, para dar ambiente.
Mas a conversa tardava.
Não era fácil, para quem nunca tinha passado do bom-dia-boa-tarde-que-calor-que-faz-hoje, iniciar, de um momento para o outro, uma complexa discussão sobre os assuntos candentes da humanidade.
Ou até mesmo uma simples discussão.
Ou até mesmo sobre os assuntos do país.
Ou do prédio.

Foi no momento em que ela ia perguntar “bebe café?”, que ele, depois de aclarar a garganta (“ai não me digam que vai cantar!”), perguntou por Beatriz.
Se estava bem, como ia o trabalho, se já tinha namorado.
Ela vai respondendo a tudo com poucas palavras, decerto não estão ali para falar da filha, que sim, que estava bem e o trabalho também, e que não, que ainda não tinha namorado.
O sorriso dele iluminou a sala. Gaguejou ligeiramente e arrancou:
“Sabe, posso parecer-lhe um pouco, como é que se diz, antiquado, e se calhar sou, mas queria primeiro falar consigo antes de, enfim, antes de me atrever a falar com… a falar com ela…”
Beberam o café e não disseram nem mais uma palavra.
Ele saiu, agradecendo o jantar.
Ela agradeceu a flor.
Quando a filha ligou, já perto da meia-noite para saber o resultado, respondeu apenas que, tal como previa, o pobre do Firmino não estava nem aí, ela que deixasse de se armar em casamenteira.
E, já agora, que não lhe desse muita conversa se, por acaso, o encontrasse no elevador.

«ACTIVA» de Agosto de 2011

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A COSTA NOVA

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Por Alice Vieira

RUY BELO chamava às esplanadas “as nossas pequenas pátrias provisórias”.
Completamente dependente de esplanadas, vou estabelecendo muitas pátrias dentro da minha.
Mas há aquelas que se guardam apenas na memória, aquelas que só de longe em longe visitamos - e aquelas a que voltamos sempre.
A Costa Nova (com o prolongamento da Barra acoplado) é a pátria a que todos os anos regresso no verão.
Mas também às vezes no outono. E também às vezes no inverno. Pátria é onde um homem (e quando um homem) quiser.

Tenho de adormecer a olhar para o farol, tenho de acordar a olhar para o farol.

Tenho de me embrulhar em casacos e camisolas de lã no pino do verão, porque senão nem é verão nem é nada, e a gente até pode pensar que está, sei lá!, (bater três vezes na madeira) no Algarve.
Dantes a Costa (cá em casa a Costa foi sempre só uma, a Nova e mais nenhuma), tinha a ria a entrar quase até às casas da avenida. Apanhava-se o barco num pequeno ancoradouro que agora é posto de turismo, e os novatos olham e não percebem por que é que aquilo tem o feitio da proa de um moliceiro…Dantes apanhava-se aí o barco e ia-se à ”bruxa”, do outro lado da ria. Passávamos a tarde a beber ginjinha e a jogar matraquilhos. Houve campeonatos famosos…
Depois a terra entrou pela ria dentro, e as coisas nunca mais foram o que eram.

Dantes na Costa vendia-se o refugo da loiça da Vista Alegre – com aqueles minúsculos defeitos que o nosso olhar de simples mortal não descobria mas que fazia com que fosse vendida ao preço da chuva. Agora há loiça turística, com a cara do Papa e de Nossa Senhora.

A Costa/Barra tem o mais belo pôr do sol do mundo.
A Costa/Barra tem a praia mais limpa do mundo : seja a que horas, seja a que dia (fins de semana incluídos) não se vê um papel na areia.
A Costa/Barra tem o melhor rodovalho do mundo. E as melhores enguias do mundo.
E sobretudo é a pátria incontestada…da tripa.

Há quiosques do Zé da Tripa em todas as esquinas. (E, por favor, não confundir com bolacha americana, que um velhote anda a vender pelas praias!)

Há filas para comprar tripa até depois da meia noite. Há quem vá para marcar lugar para amigos, há quem vá com uma lista de encomendas (“duas simples”, “três com doce de ovos”, “ meia dúzia com chocolate”) e o maralhal a aguentar até chegar a sua vez.

E nada de refilar : estamos todos unidos na veneração por uma maravilha gastronómica que só ali existe.

Sei que há infelizes que nunca a provaram, e ignorantes que nem sabem o que isso é. Dizer que leva farinha, ovos, açúcar, manteiga, que é uma espécie de massa de crepe enrolada, mas muito mal passada-- não quer dizer absolutamente nada, porque não é isso.

O “Zé da Tripa” é um verdadeiro empório, que já deve ir para aí na terceira ou quarta geração. Lembro-me de estar um ano no Salão do Livro de Genève, com aquele ar com que todos nós ficamos quando estamos há mais de uma semana na Suiça – e de repente, oh visão criadora!, avisto um quiosque do Zé da Tripa no meio dos restaurantes internacionais daquele internacionalíssimo Salão! Foi o delírio…

Mas a Costa/Barra é também o lugar onde as pessoas se podem vestir da maneira que entenderem porque ninguém liga nenhuma ; onde o posto de correios nem sempre tem selos mas tem sempre CD´s da Filarmónica Gafanhense; onde há lojas de chineses, claro, mas também lojas que vendem tudo e (ainda) não são de chineses – e uma até tem um bicho empalhado à entrada , que diz uma asneirola quando se passa pela frente e é, como se compreende, grande atracção turística.

A Costa é a avenida com os palheiros às riscas, e nós a sonharmos passar a nossa velhice lá dentro, debruçados das janelas viradas todas para a luminosidade única da ria, e o sabor distante da ginjinha, e o som dos bonecos de madeira a meterem golos na baliza do adversário.