sábado, 22 de dezembro de 2012

OS GLADÍOLOS

Por Alice Vieira
NEM SABIA bem por que ali estava.
Vingança, raiva, ou nenhuma razão em especial. Tinha dado de caras com a notícia no jornal, enquanto bebia o café e, de repente, vê-se a pagar a bica, a correr até à praça de táxis mais próxima, enfiar-se no carro, fechar os olhos, e deixar-se embalar até ouvir o homem dizer “cá estamos, minha senhora”.
Na rua em frente da igreja há uma florista. Pede gladíolos, mas dizem-lhe que já tiveram mas já não têm. Compra uma rosa.
A igreja está cheia, como já esperava que estivesse.
Tem muita pena de não trazer gladíolos. Um enorme ramo de gladíolos, como os que ele lhe entregava, sorriso manso nos lábios, quando regressava a casa, e lhe pedia desculpa pela pancada, pelos insultos, chegando mesmo a receitar-lhe pomadas infalíveis para as nódoas negras--prometendo nunca mais voltar ao mesmo.
Ela punha os gladíolos na jarra, e durante uma semana havia paz.
“Figura pública junta sempre mais gente no funeral do que em vida”, pensa, olhando para tantas pessoas que se acotovelavam à entrada da igreja, porque lá dentro já não cabia mais ninguém ou porque, simplesmente, não tinham podido resistir ao apelo do cigarro. Pessoas que, muito provavelmente, nunca lhe teriam dirigido sequer a palavra se alguma vez o tivessem encontrado na rua.
Alguns, mais velhos, olham para ela, ainda a reconhecem e acenam ligeiramente a cabeça.
Vagos conhecimentos, apenas. Os seus amigos verdadeiros, os que a tinham amparado nos tempos difíceis da separação, nunca ali estariam.
Entra na igreja, tentando a custo chegar até ao caixão.
Quer vê-lo.
Nunca mais o tinha visto, desde o dia em que se tinham encontrado no tribunal para o divórcio.
“Ainda te vais arrepender”, murmurara ele nessa altura. “O que és tu sem mim, não me dizes?”
Ela nem respondera. Fizera questão de deixar muito claro que não queria dele nem um centavo, o advogado aos berros, “mas a senhora não está a ver que ele vai ser condenado e pagar-lhe uma boa quantia?”, e ela a insistir, “nem um centavo desse homem, antes esfregar escadas a vida inteira.”
Tinha-se aguentado. Com a ajuda dos pais ao princípio, por si própria logo depois, na empresa onde esteve até se reformar.
É difícil chegar até ao caixão, há muita gente em volta e ninguém parece querer sair dali. Olha para o banco onde se senta a família. Só conhece a mulher das fotos nas revistas. E espera que ninguém a reconheça a ela, já passaram tantos anos e, de certeza, que ele não guardou fotografias desse tempo.
Olha para a mulher, franzina, sem a pintura que habitualmente ostenta nos retratos e, de repente, tem vontade de se sentar a seu lado, de lhe perguntar como correram aqueles anos todos, quantas vezes ele a atirou ao chão, e a espancou, e a insultou, e a ameaçou com facas - dando-lhe flores a seguir.
Olha para a cara dela, tentando encontrar marcas de antigas agressões, mas os cremes tudo apagam. Pena não haver cremes que também apagassem a dor e a humilhação e a revolta — que uma vida inteira não chegava para apagar.
A mulher tira um lenço da carteira e passa-o pela cara. Depois olha para ela. $$Ficam as duas a olhar uma para a outra, em silêncio.
Depois desviam os olhos.
Vai a sair quando, num impulso, volta atrás e deixa a rosa no colo da mulher. $$E voltam a olhar-se fixamente.
“Obrigada”, diz-lhe ela, numa voz quase inaudível.
Ela sai a correr, não sem antes olhar para o caixão.
O morto quase nem se vê, ao peso de tantos gladíolos.
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«Activa» - Dezembro de 2012

sábado, 8 de dezembro de 2012

UM NÚMERO DIFERENTE

Por Alice Vieira
ESTE É O Nº 500 da “Audácia”. Este é um número muito especial e, por isso, estamos todos em festa.
A “Audácia” nasceu em Novembro de 1966 - o que significa que está quase, quase a fazer 46 anos.
O que significa que os seus leitores atuais ainda nem eram sonhados quando ela apareceu. E, se calhar, nem a maioria dos pais.
Em 1966 o mundo era outro. Nós éramos outros. A maneira de fazer revistas era outra.
Nada destas máquinas sofisticadas que agora nos poupam tanto trabalho e tantas horas de esforço.
Lembro-me muito bem desse ano de 1966.
Eu tinha 23 anos, um curso acabado há dois, a família toda a insistir para que eu fosse professora (pois não era para isso que, segundo toda a gente, eu tinha estudado?), e eu, muito a contragosto, a ensinar um alemão rudimentar a alunos que queriam seguir Direito e precisavam de fazer exame de alemão e de ter ao menos 10 para poderem aceder à Universidade.
Foi a primeira e única vez que eu ensinei o que quer que fosse a alguém.
Eu já trabalhava no jornal – mas, para a família, jornalista era profissão que nenhuma menina decente e de boas famílias poderia escolher.
Jornalista era profissão de homens.
Feios, porcos, sujos e maus.
Mas esse foi o ano em que eu decidi que era preciso arriscar e não ter medo de escolher o que queria fazer da minha vida – mesmo que os outros abanassem a cabeça ou me virassem as costas. 
Há alturas em que tem de ser assim. Porque ninguém vive a nossa vida por nós.
E é por isso que, de cada vez que pronuncio a palavra “audácia”, me lembro da audácia que tive em largar tudo, de um momento para o outro, nesse ano de 1966: profissão, família, casa, conforto, segurança, despreocupação.
Tive a audácia de arriscar.
Depois – porque estas coisas acabam sempre por ser recompensadas…-- tive a felicidade de encontrar alguém, com quem partilhei quase 40 anos da minha vida, e que também nunca teve medo de arriscar, quando sabia que estava em jogo a liberdade, a coerência, a justiça, um futuro que sonhávamos bem melhor.
Pediram-me para hoje aqui falar dele.
Porque Mário Castrim escreveu na “Audácia” nos últimos anos da sua vida e, por isso, festejar este nº 500 é também festejar todos os que nesta revista têm trabalhado.
Mas, para mim, é tarefa muito complicada. É muito difícil falar de alguém de quem estive (e continuo a estar…) tão próxima.
Basta ler os seus textos – e as crónicas publicadas aqui na “Audácia” estão, felizmente, reunidas em livro — para se perceber a pessoa que ele era.
Trabalhou — trabalhámos… - muitos anos da nossa vida sob a censura.
Aqueles que já nasceram em liberdade têm dificuldade em entender o que isso era.
O que era não se poder falar nem escrever sobre aquilo que queríamos.
O que era “o lápis azul” a cortar páginas de alto a baixo.
O que era vermos completamente deturpado tudo o que escrevíamos (bastava o “lápis azul” cortar um “não”, por exemplo…)
O que era haver gente cujo nome nem sequer se podia mencionar.
Muitos foram desistindo. Por cansaço. Pela sensação de inutilidade. Pelo risco. (Abril vinha muito longe ainda…)
Mas o Mário nunca desistiu. Nem quando o telefone tocava cá em casa de madrugada, com ameaças. (Ainda hoje me custa atender um telefone que toca noite dentro…)
Talvez que a infância difícil que teve o tivesse preparado, e de que maneira, para a luta. A infância -- boa ou má –molda sempre as nossas vidas.
O Mário entrou para o sanatório do Outão aos 9 anos de idade – e saiu de lá dez anos depois.
Dez anos de afastamento da família, que vivia longe, de amigos, da vida normal de uma criança.
Dez anos em que sonhava com livros, muitos livros que pudesse ler à vontade, que o ajudassem a suportar dias e noites difíceis.
Acho que a única coisa que pedia, nesse tempo, eram livros.
Um dia o sanatório foi visitado por um grupo de dirigentes do Benfica, que iam conversar sobretudo com os miúdos, tentar, por momentos, fazê-los participar da vida que corria lá por fora.
- O que é que tu gostavas mais que te dessem? – perguntaram-lhe.
- “A Cidade e as Serras”, do Eça de Queiroz — respondeu ele.
Imagino o ar espantado da comitiva…
O que é certo é que, dias depois, chegava ao Sanatório do Outão um caixote com as obras completas do Eça de Queiroz e do Camilo Castelo Branco.
E esta foi a razão que tornou o Mário num benfiquista ferrenho até ao fim da sua vida.
E a vontade de nunca se deixar vencer pela doença foi sempre uma constante: estudou sozinho e pediu para fazer exames no sanatório, e fez. Quando saiu do Outão, quase com 20 anos, vinha disposto a ser professor – e foi.
Ainda hoje encontro velhos alunos dele que vêm ter comigo para me contarem como eram as aulas do “professor Fonseca”.
E depois o jornalismo.
A escrita de livros.
O resto da sua vida.
E isto é o pouco, o muito pouco, que sou capaz de dizer dele.
O resto é só meu.

Revista “Audácia”, Out.12