sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

LIVROS PARA DEITAR FORA

Por Alice Vieira
Confesso: não sou capaz de deitar livros fora. 
De resto, eu pertenço a uma geração que tem muita dificuldade em deitar fora seja o que for. Por isso os objectos se vão acumulando e eu perguntando-me “o que é que faço a isto?”. Já pensei em fazer uma trouxa e ir vendê-los para a Feira da Ladra, mas os meus horários não me permitem ficar lá uma data de horas à espera de ver aparecer multidões interessadas em galhardetes, quadros com o brasão de juntas de freguesia de terras que nem sei onde ficam, frascos de perfume há muito vazios, amostras de tecidos, restos de lãs que nem para quadrados de mantas de patchwork já servem, etc.
Mesmo assim, de vez em quando tapo a vista com a mão, encho-me de coragem, e reúno sacos a abarrotar de lixarada, e venho colocá-los à noite ao lado dos contentores, não vá passar alguém que ainda lhes descubra serventia. 
Mas livros é que não.
Livros não sou mesmo capaz.
O pior é que, para lá de receber muitos livros (os meus amigos pertencem quase todos ao ramo…), eu ainda sou uma compradora compulsiva! Compro livros porque são de autores de que eu gosto, ou porque li uma crítica que me entusiasmou, ou até — assumo…— porque têm capas que são um espanto… Mas às vezes, prometem muito e dão pouco.
Então, periodicamente, encho caixotes de livros que vou enviando para bibliotecas ou escolas: livros que sei que nunca mais vou reler, livros que tenho em várias reedições, ou até livros de que eu, pessoalmente, até posso não gostar mas entendo que outros amem de paixão. 
Mas não é desses que estou a falar: refiro-me àqueles que não mereceriam (se eu fosse capaz…) outro destino a não ser o lixo. Tão maus, ou tão inúteis, ou tão fora de prazo que não me passa pela cabeça dá-los nem ao meu pior inimigo. 
Nos primeiros tempos da revolução, quando, de repente, descobrimos que podíamos viajar para os países até então proibidos da Europa de Leste, era fatal: regressávamos todos de lá vergados ao peso de toneladas de volumes encadernados com todas as intervenções dos camaradas nos diversos órgãos de soberania dos seus países. E — requinte dos requintes! — muitos deles na língua original. 
Lembro-me de ter tido de comprar um saco só para nele enfiar os discursos do camarada Jivkov, que me ofereceram na minha primeira ida à Bulgária.
Digam-me: o que é que eu lhes faço?
Contava o meu querido Alçada Baptista que uma das suas tias, ao ver-se confrontada com a pergunta de uma das criadas (“o que é que eu faço às listas velhas do telefone?”) terá respondido: “dê a um pobrezinho.”

Se calhar, vou seguir-lhe o exemplo. Tal como eu, ela também era de um tempo em que não se deitava nada fora.

sábado, 20 de janeiro de 2018

O Carro Azul

Por Alice Vieira
Às vezes penso no meu velho carro azul e sinto assim uma saudade estúpida como se de alguma pessoa amiga se tratasse e não de um simples automóvel, velho de muitos anos, completamente a cair de podre quando, há muito tempo, não tive outro remédio senão largá-lo numa oficina de sucata. O meu carro azul participou activamente nos momentos mais importantes da minha juventude: carregou toneladas de propaganda nas crises académicas, foi cúmplice de paixões proibidas, transportou este mundo e o outro, ouviu discursos de cinema e de literatura, lamentos de jornalistas em começo de carreira, quando a censura cortava o sangue que tentavam fazer escorrer pelas veias dos seus textos — ou muito simplesmente angústias banais do dia a dia lisboeta no princípio dos anos sessenta.
O carro azul, no fundo, pertencia um pouco a todos que lá entravam, uma sala comum onde tudo se discutia.
No entanto, embora pertencendo a todos, o carro azul pertencia sobretudo ao Luís Feist, meu colega de Faculdade.
O Luís era meu amigo.
Muito meu amigo.
Tão amigo que era o único — mas absolutamente o único--a quem eu passava o carro azul para as mãos.
Bastava que, no meio do anfiteatro da faculdade de Letras, ele se sentasse ao meu lado e murmurasse “precisava que tu...” — para logo eu enfiar a mão pela carteira e lhe entregar as chaves. Nunca me disse para onde ia, nunca lho perguntei. À hora marcada o carro azul estava sempre diante da porta da faculdade, com um ar completamente inocente, como se nunca dali tivesse saído.
Por isso o meu carro azul também teve uma outra vida que eu não conheci, e terá sido cúmplice de outros sonhos, ouvido outras conversas, assistido a outros encontros e desencontros.
Durante todos os anos que se seguiram, muito depois de ambos termos largado a faculdade, sempre que eu encontrava o Luís o carro saltava para o meio das nossas conversas, como se falássemos de um parente comum, que agora raramente dava notícias. Acho mesmo que foi o velho carro azul que nos manteve amigos estes anos todos, sem necessidade de nos vermos ou de nos falarmos muitas vezes, separados pelas correrias da vida e do trabalho.
Mas quando nos encontrávamos, era como se ele tivesse acabado de me entregar as chaves do carro, e se preparasse para as pedir de novo na manhã seguinte. Por isso quando li no jornal a notícia da morte do Luís, não acreditei. Deviam ter-se enganado de certeza.
A esta hora deve ele andar no meu velho carro azul por esse mundo a matar saudades.+++  Se nunca me disse para onde ia, também não ia dizer agora.
Do livro de crónicas Só Duas Coisas Que Entre Tantas Me Afligiram

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Falando de Felicidade

Por Alice Vieira 
LI JÁ NÃO SEI ONDE que a Assembleia Geral das Nações Unidas decretou que o dia 20 de Março vai ser o Dia Internacional da Felicidade. A ideia partiu, ao que parece, do minúsculo reino do Butão que, em vez do PIB (Produto Interno Bruto), adota como estatística oficial a “Felicidade Nacional Bruta”. Isto em português soa um bocado mal, espero que em butanês (ou na língua que lá se fala) soe bastante melhor…
Que bom, num mundo com tanta tragédia, haver um dia consagrado à Felicidade. (E, já agora, um pequeno parêntesis perfeitamente pessoal: deixem-me felicitar quem teve a ideia de o colocar no dia 20 de março, dia em que eu faço anos, o que me vai dar, a partir de agora, ainda muito mais razões para o festejar... Adiante). No dia 20 de Março, como todos sabemos, acaba o inverno. O que significa também que a Felicidade vai ficar ligada à primavera.
E, em tempos de crise e de depressão, como a que vivemos, nunca é demais lembrá-lo.
Mas, deixem-me confessar, que também não me agradava lá muito uma felicidade como a que se vive no Butão.
Há dias, zapando pelos canais do cabo, vi um documentário sobre o Butão. O Butão é um reino minúsculo, completamente isolado e fechado ao mundo (o que as montanhas onde está instalado propiciam), onde as pessoas vivem da agricultura como na Idade Média, dividindo o seu tempo entre o trabalho na terra e as idas aos templos. Preservam esse isolamento para que, segundo afirmam, nada possa alterar a tradição e os rituais. Estrangeiro é bicho muito raro por lá.
Tem, realmente, uma paisagem deslumbrante, mosteiros magníficos - e uma única estrada a atravessar o país. Se calhar, a felicidade também tem a ver com um trânsito sem complicações, e o completo desconhecimento do que é hora de ponta. Praticamente não se usa dinheiro, não há consumo.
No Butão é-se feliz porque - convenhamos - também não se pode ser outra coisa. E é isso que me apavora.
Que mérito poderá ter a minha luta pela felicidade se não tenho de combater a infelicidade?
Que mérito terá a minha realização pessoal e profissional se não tenho muita coisa que me realize?
Como posso discutir ideias se não há nada para discutir?
E de que falam as pessoas quando se juntam — se não há dívidas do Passos Coelho, prisão do Sócrates, a Troika, a família Salgado a amar-se apaixonadamente, o Belmiro a ir para a reforma, o Porto a ver se chega aos calcanhares do Benfica, a canção que mandámos para a Eurovisão e que nem para ir ao Festival da Bandalhoeira servia (com todo o meu respeito pela Bandalhoeira, claro) - essas coisas que fazem a felicidade das pessoas à mesa do café.
Como se pode ser herói se não há obstáculos para vencer?
Como poderíamos desejar tanto a primavera, se não houvesse inverno?
É claro que é muito bom que se encontre um dia no ano para se questionar a nossa Felicidade (ou a falta dela). Mas aflige-me muita a felicidade por decreto.
Por isso, em vez de pensar no Butão (apesar da nossa crise brava e das aparentes maravilhas deles, a meio do documentário eu já estava completamente deprimida…), e no sorriso permanente colado à boca dos habitantes, prefiro, apesar de tudo, voltar à terra, a esta nossa terrível, desesperante, complicada terra onde vivemos, a braços com esta terrível, desesperante, complicada crise que ninguém sabe onde nos leva – e pensar antes na minha amiga Helena Marujo que acredita, contra ventos, troikas , BES e marés, que todos fomos feitos para a Felicidade.
A Helena Marujo é uma cientista conceituada, não escreve livros de auto-ajuda – e, com o marido, Luis Miguel Neto, fundou há uns dois anos, o Instituto da Felicidade. E uma das suas ações mais importantes foi a elaboração de um estudo sobre a felicidade dos portugueses – ideia que lhe veio quando andava a estudar as causas da depressão entre crianças e adolescentes.
 Eu sei que há dois anos ainda não estávamos tão mal como agora, mas a verdade — como de resto ela salienta logo no início — é que nunca estivemos bem… Fomos sempre o povo da desgraça, do fado, o “país cabisbaixo”, como lhe chamou o poeta Alexandre O’Neil. E o que é preciso — seja em que tempo for – é procurarmos novas perspetivas de realização, novas maneiras de viver o dia a dia, novos interesses, novas disponibilidades, um novo olhar para quem vive ao nosso lado.
Carlos Drummond de Andrade escreveu uma vez que “há duas épocas na vida, - a infância e a velhice - em que a felicidade está numa caixa de bombons”…
Pois é preciso saber encontrar, também para outras idades, a respetiva caixa de bombons…
Custa, eu sei - mas antes isso que ser feliz por obrigação legal.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A MEMÓRIA APAGADA


Por Alice Vieira
HOJE, pela primeira vez na minha vida, sinto-me velha.
Tenho o telemóvel na mão e estou há horas a olhar para ele sem saber o que fazer. Acabo por largá-lo, aqueles para quem eu queria ligar já não me vão atender – e, para além deles, já não há mais ninguém capaz de entender a minha não sei se fúria, não sei se raiva, não sei se impotência. A minha — isso sei — grande tristeza.
Dói-me esta perda de memória que vai atacando a nossa sociedade a um ritmo cada vez mais vertiginoso.
Acabo de chegar da Escola Francisco Arruda, onde acho que já não entrava há mais de 40 anos. Ótimas instalações, tudo a cheirar a novo.
A escola Francisco Arruda foi o “sonho” de um homem chamado Calvet de Magalhães, um dos maiores pedagogos deste país que, nesses anos 50 da sua fundação, a transformou num oásis de educação e de cultura. Pioneiro de muitas causas (a integração de alunos deficientes foi uma das suas grandes lutas), foi sobretudo um animador cultural num tempo onde o desânimo imperava. A escola estava então rodeada de bairros de lata e, todos os sábados, ele abria as portas a toda a comunidade. E havia exibição de filmes, palestras, ateliers de olaria, histórias contadas aos miúdos, etc. Era uma maravilha ver aquela escola cheia de gente, que a considerava sua.
Hoje isso pode parecer habitual, naquele tempo não era.
O Prof.Calvet foi ainda fundador da Associação Portuguesa para a Educação pela Arte, que durante anos manteve uma atividade regular, destacando-se a publicação de uma coleção de histórias infantis, sempre ilustradas pelos meninos da Francisco Arruda. E aí se integrava a organização de um concurso, a nível nacional, chamado “O Natal Visto pelas Crianças”, a que o Diário de Lisboa se associava.
É aí que eu entro — a fazer a ligação entre as reuniões do júri, e a publicação dos textos nas páginas do jornal.
É difícil entender hoje a importância desse concurso. Para já, o júri era de peso: para além do Prof. Calvet, como organizador, José Gomes Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Maria Lúcia Namorado, Alice Gomes, Rocha de Sousa, António Domingues. E eu, na verdura dos meus 18 anos, a ouvi-los, a aprender com eles, a rir muito com eles. Vinham caixotes de textos do país inteiro, as reuniões eram prolongadíssimas e duravam muitos dias — mas eram sempre uma festa. Lia-se cada texto como se fosse candidato ao Prémio Nobel — e quando se chegava àquela altura dramática dos 11 anos, em que os meninos já estão formatados pela escola e dizem todos os mesmos lugares- comuns e era difícil encontrar um melhor que outro, a voz do Zé Gomes:”ó Matilde, leia lá em voz alta que, na sua voz, tudo é uma maraviha!”
Depois um dia, de repente, o prof. Calvet de Magalhães diz-me:”no sábado vais ler histórias aos miúdos lá na minha escola.” Pensei que estava a brincar comigo, eu nunca tinha escrito uma história na minha vida, nem me lembrava de alguma vez ter contado histórias fosse a quem fosse. Ri-me, fiz-me desentendida, mas ele: ”sábado de manhã, não faltes!”
E lá fui. Sei que escrevi uma história mas não me lembro de mais nada, a não ser de me ver diante de um ginásio a transbordar de gente, e eu num palco, em frente de um microfone a tentar ler o que levava escrito numas folhas de papel.
Lembro-me que levava um vestido cor de laranja. Lembro-me de ter ouvido muitas palmas. E lembro-me do Prof. Calvet a dizer: ”para a semana cá te espero”.
Foram as primeiras histórias que escrevi, para muitos daqueles sábados de festa, que se prolongaram por muitos anos.
O Prof. Calvet foi diretor da Francisco Arruda até à sua morte: na turbulência da revolução, quando começou de repente a ver a “sua” escola transformada, e no ar a ameaça de deixar de ser seu diretor, não aguentou e suicidou-se.
O Pror. Calvet de Magalhães faria em Março cem anos.
E eu sempre pensei que, no seu centenário, o país lhe fizesse a homenagem que ele merece. Mas Março passou — e nada aconteceu.
Então pensei que possivelmente a Escola se teria encarregado disso.
Mas a Escola nem sequer tem uma placa com o seu nome em lado algum. Nem o seu nome foi dado, como seria de toda a justiça, à biblioteca. Entra-se ali e é como se ele nunca tivesse existido.
E eu chego a casa a pensar nesta falta de memória coletiva — e pego no telemóvel para dizer à Matilde, ao Zé Gomes, à Maria Lúcia, à Natércia Rocha, ao Mário, à Maria do Sameiro, “vocês já viram que ninguém se lembrou do centenário do Prof. Calvet?”, mas não digo, porque já todos morreram, e eu fico, entre as paredes da minha sala, sem saber com quem partilhar raivas e mágoas. E sem saber o que fazer no meio deste silêncio vergonhoso.
 «Senior» de 18 Jul 13

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A LISTA

Por Alice Vieira
RECEBI ontem um postal de um amigo muito querido, que anda agora por terras de Espanha. Três linhas, não mais – mas o suficiente para me iluminar o dia que, diga-se, andava assim um bocado para o fusco.
Penso muitas vezes no que seria de mim sem esta presença constante dos amigos .
Amigos que escrevem cartas e postais: o Manel ensina-me o nome de todas as plantas que cultiva lá em A-dos-Negros, acho que ainda não perdeu a esperança de me ver ingressar no clube dos jovens agricultores; a Cristina manda-me desenhos e a luz da ria vem com eles; a Marina descobre verdadeiras preciosidades do tempo em que que éramos crianças; o António manda postais de todos os lugares onde faz exposições; o Eduardo fala-me do seu Porto que ele tão bem fotografou; etc…
Amigos que telefonam às horas mais improváveis — sem terem nada de transcendente para me dizer…
Amigos que me trazem pedras ou conchas ou folhas dos lugares por onde andaram, porque sabem que essas são as verdadeiras prendas, as que não têm preço, as que possuem real significado, as que guardo para sempre.
Claro que lhes pago na mesma moeda — porque tem de haver sempre tempo para um amigo, se não nos quisermos arriscar a um dia acordarmos e verificarmos que estamos sozinhos.
Pocuramos então os amigos… e qu’é deles?
Então depois começam as lamúrias, ai que ingratos, ai que insensíveis, ai que isto, ai que aquilo — sem nos perguntarmos se a culpa também não terá sido nossa.
Porque uma boa rede de amigos prepara-se com antecedência (naquele tempo em que pensamos que vamos ser jovens para sempre…), cultiva-se, aumenta-se, se possível . Não tem explicação a quantidade de amigos que fiz nestes últimos anos. Amigos de verdade, disponíveis, com quem é muito bom estar à mesa (na minha casa ou na deles) pela noite fora, naquela conversa mole que anima as nossas almas.
Ora diga-me lá: há quanto tempo não escreve a um amigo?
A sério, escrever mesmo. Com “papel e tinta, caneta e mata-borrão” , como cantava a Tonicha no “Resineiro” de boa memória.
Não são precisos grandes discursos, às vezes duas ou três linhas são o suficiente – exactamente como no postal que recebi ontem.
Um postal a dizer estou aqui, pensei em ti, não estamos sozinhos.
Não sei se conhecem as canções de um brasileiro chamado Oswaldo Montenegro. Basta ir ao Youtube e procurar. Mas, para aqueles que ainda não estão muito familiarizados com essas modernices, vou aqui deixar algumas estrofes de “A Lista, uma das canções dele de que mais gosto — e em que devíamos reflectir um pouco.
Aí vai:
“Faça uma lista dos grandes amigos/que você mais via há dez anos atrás/quantos você ainda vê todo o dia/quantos você já não encontra mais/faça uma lista dos sonhos que tinha/quantos você desistiu de sonhar/(…)onde você ainda se reconhece/ na foto passada ou no espelho de agora?/ hoje é do jeito que achou que seria?/ quantos amigos você jogou fora?/quantas mentiras você condenava/quantas você teve de cometer/quantos defeitos sanados com o tempo/ eram o melhor que havia em você/ quantas canções que você não cantava/ hoje assobia para sobreviver/quantas pessoas que você amava/hoje acredita que amam você?”
Se não nos precavemos, com o andar dos tempos isto é o que acontece a quase toda a gente.
Por isso vamos lá fazer a lista, e chamar os amigos que esquecemos (enquanto os podemos chamar…), e inventar motivos para estarmos juntos (um concerto, uma peça de teatro, um café na Baixa ) e para celebrar.
Para celebrar o quê?
Tudo.
Seja o que for.
O nosso dia de anos. O dia da santa do nosso nome.
Comprei há um ano uma mesa nova para a minha casa de jantar—e ainda não parei de fazer jantaritos com amigos para festejar o acontecimento!
E não esquecer a carta ou o postal. Mesmo que não tenham grandes novidades para dar.
Um dia, teria ele para aí uns sete anos, o meu filho foi de viagem com amigos. “Escreve um postal!”, recomendei-lhe imediatamente.
Escreveu.
Assim: “mãe, não tenho nada para dizer, beijinhos”.
É o postal que anda sempre na minha carteira, já lá vão quase 40 anos.
É o que eu digo: às vezes bastam meia dúzia de palavras para iluminar os nossos dias.
«Sénior» de 20 Jun 13

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

CÁ POR MIM

Por Alice Vieira
PELA PRIMEIRA vez na minha vida faço parte de uma equipa que está a fazer nascer um novo jornal. Todos aqueles por onde passei tinham já dezenas e dezenas de anos de trabalho, tradição e público.
Desta vez é uma aventura.
E também, ao que se diz, este é um jornal destinado àqueles a quem já cantaram os “parabéns a você” muitas e muitas vezes.
Ótimo. Sinal de que estão vivos – coisa de que nem todos os vivos se podem gabar.
Mas esta coisa da idade é sempre muito relativa…”Coitado, já tinha uma certa idade”, diz-se normalmente quando morre alguém não muito novo.
Mas eu nunca percebi o que é ter “uma certa idade”.
Tenho sempre diante dos meus olhos – colado na parede onde também estão coladas as fotografias dos homens da minha vida, entre os quais os netos… - um postal que em tempos um amigo me enviou de Berkeley e que, numa tradução tão aproximada quanto possível, diz: “Que idade terias se não soubesses a idade que tens?”
E posso garantir-lhes que a resposta varia todos os dias.
Neste momento, por exemplo, a tentar sair de uma gripe que parece ter-se apaixonado inabalavelmente por mim, se eu não soubesse a idade que tenho era bem capaz de jurar que andava aí pelos 200, mais Manuel de Oliveira, menos Manuel de Oliveira.
Mas antes de a gripe me ter atacado, eu diria que andava aí pelos 30 ou 40.
“Esse é que é o teu mal! Pensas que tens 20 anos, e não tens! ”, refilava ontem a minha filha, quando entrou no meu quarto para me deixar os remédios na mesa-de-cabeceira. (Não liguem. No fundo, no fundo, mas lá mesmo bem no fundo o que ela queria dizer era “coitadinha, estás doentinha e a morrer” e  fazer-me tap tap na cabeça.)
Isto tudo só para dizer que velhice é coisa muito discutível. E que, por mais que se refile e se entre em depressão, ainda não se inventou outro meio de se viver muito tempo.
Mas para os que, às vezes, estão quase a sucumbir a esse peso da idade, nada melhor do que ligarem para o Canal Parlamento, e olharem para aquelas bancadas: há deputados (não, não vou dizer o nome de nenhum embora às vezes bem me apeteça), aí na casa dos 30/40, que eu juro que já nasceram com 100 anos em cada ombro: falam com 100 anos em cada palavra; exibem ar de mau com 100 anos em cada sobrancelha.
Se calhar a maioria de nós, que entramos agora nesta extraordinária aventura de fazer um jornal como este, não estará nos seus, digamos, verdes anos de adolescência e juventude. Pois não. Mas, sem nenhuma espécie de saudosismo, assiste-nos a todos a enorme vantagem de termos conhecido o antes e o agora.
A maioria de nós foi do tempo da caneta, das máquinas de escrever com aquelas fitas metade vermelhas metade azuis, que era preciso fazer render ao máximo porque eram caras e o chefe fazia sempre cara feia quando era preciso requisitar alguma — mas também é do tempo dos computadores.
A maioria de nós foi do tempo do chumbo, das velhas rotativas, das linotypes, da maquetagem a régua e esquadro nas enorme folhas de papel — mas também é do tempo das páginas formatadas no écran.
A maioria de nós foi do tempo em que o jornalismo se aprendia com os mais velhos, ali na tarimba, com os nossos erros, com as dezenas de vezes que tínhamos de rescrever a notícia e nem pensávamos que algum dia viria a ser de outra maneira — mas também é do tempo das escolas de jornalismo.
Isto para não falar da maior diferença de todas: a maioria de nós foi do tempo da censura, das páginas retalhadas pelo lápis azul, da angústia de perder as ligações se os jornais se atrasassem - mas também é do tempo da liberdade.
Mas, ó gente, o que eu queria mesmo dizer – e juro que ninguém me encomendou o discurso nem sequer falei com os chefes – era que, e parafraseando o título de um filme dos Irmãos Coen, “Este jornal não é para velhos”!
Pois, se calhar não vamos ter aqui todos os dias notícias e reportagens do Justin Bieber (tadinho, acho que lhe foi apreendida droga no carro, vejam lá!, só tenho coisas que me ralem…),nem me estou a ver de plantão à casa da Venda do Pinheiro — mas não falharemos certamente o que acharmos de interesse, seja qual for a nossa idade, e seja qual for a idade que tem quem nos vai ler.
Cá por mim, irei escrever com o mesmo espírito com que escrevi em todos os jornais por onde andei.
E, já agora, bem podemos aproveitar um slogan que ainda aí estampado na parte de trás dos assentos de muitos táxis -“Entre no dia com um sorriso!” — e entrar também neste jornal com um enorme sorriso.
Pelo menos de quinze em quinze dias, a vida vai sorrir-lhes um bocadinho mais.
Cá por mim, farei tudo por isso.
In «Sénior» de 23 Mai 13

segunda-feira, 25 de março de 2013

O SENHOR QUE CONTAVA HISTÓRIAS

Por Alice Vieira
HÁ MUITOS, muitos anos, eu tive a vossa idade.

“Ainda havia dinossauros?”, perguntou-me há dias o meu neto mais novo.

Não, realmente JÁ não havia dinossauros.

Mas AINDA não havia televisão, nem computador, nem telemóvel, nem iPOD, nem MP3, nem Playstation, nem uma série de outras maravilhas, indispensáveis na nossa vida actual.

Mas o facto de elas não existirem não impediu que – no meio de uma infância difícil, solitária e pouco afectuosa - eu fosse uma criança feliz.

E essa felicidade devo-a aos livros que li — e, muito especialmente, aos livros de um senhor chamado Adolfo Simões Muller.

Adolfo Simões Muller sabia muitas histórias, e levou toda a sua vida a contar histórias.

Os seus livros estavam cheios de heróis, de artistas, de exploradores, de aventureiros, e ele contava as suas histórias como se eles vivessem mesmo ali ao nosso lado, como se, de repente, entrassem pela nossa casa dentro, como se fossem nossos amigos, com quem pudéssemos passar a tarde inteira a conversar.

As personagens dos seus livros foram os amigos verdadeiros que tive na minha infância.

Atacada sempre por muitas doenças, eu sonhava com a noite em que Florence Nightingale (enfermeira inglesa, famosa pela sua actuação na Guerra da Crimeia, no séc. 19, e personagem de “A Lâmpada Que Não Se Apaga”) chegasse à beira da minha cama, pusesse a mão na minha testa e espantasse a febre para muito longe.

E quando vinha o frio, eu recordava sempre a cena em que Madame Curie (cientista, que descobriu o rádio, Prémio Nobel por duas vezes, e personagem de “A Pedra Mágica e a Princesinha Doente”) estudante quase na miséria, quando se deitava punha a cadeira do quarto em cima da cama, para ter a ilusão de mais calor.

Com os livros de Adolfo Simões Muller, eu aprendi que a nossa vida era aquilo que nós conseguíssemos fazer dela.

Com o “Príncipe do Mar” (que têm agora em vossas mãos), eu aprendi a ter orgulho do povo a que pertenço — que se meteu à aventura sobre águas desconhecidas, rumo a terras desconhecidas, ouvindo as vozes de então garantir que a linha do horizonte era o fim do mundo, e que para lá do fim do mundo havia só dragões.

Mas o Infante D. Henrique sabia que nada disso era verdade, que havia muitas terras para lá daquela linha que a nossa vista alcançava, e descobri-las foi o sonho e o trabalho de toda a sua vida.

E a realização desse sonho foi tão importante que, com tantos infantes que a nossa história teve, ainda hoje quando dizemos “O Infante” — é sempre a ele que nos referimos.

Os livros do Adolfo Simões Muller têm atravessado gerações. Os meus filhos leram-nos, e deram-nos aos filhos que depois tiveram.

É bem possível que os teus pais e os teus avós os tenham também lido.

Agora é a vossa vez.

E só lhes peço que, depois de lerem (e relerem…) este “Príncipe do Rio”, o guardem com muito cuidado na vossa estante.

Para um dia chegar em bom estado às mãos dos vossos filhos, e deles às mãos dos vossos netos.

Que, muito possivelmente irão olhar para vocês e perguntar:

- No vosso tempo ainda havia dinossauros?...

sábado, 16 de março de 2013

UM BREVE RECADO PARA AS EDUCADORAS DE INFÂNCIA

 Por Alice Vieira
ELAS CHEGARAM agora junto de ti.
Elas pensavam que o mundo cabia inteiro nas paredes da sua casa, e que quem lá vivia eram os seus únicos habitantes. Terás de mostrar-lhes que não é verdade.
Elas têm poucas palavras para nomear o que as rodeia. Terás de as ajudar a encontrar as que faltam.
Elas vão ver o mundo com as cores que tu puseres em cada som e em cada gesto.
Elas vão olhar para ti, aprender o teu nome, chamar-te por tudo e por nada, geralmente por nada. Que é sempre tudo.
Vais mostrar-lhes como se vive com os outros, como se aceita quem não é igual a nós, tal como se aceita um desenho pintado com todas as cores do arco-íris.
Vais aprender a ter de lhes dizer muitas vezes “ não”, sem te deixares levar pelo seu beicinho irresistível.
Mas vais também dizer-lhes muitas vezes “sim” e sentir que é para ti que elas sorriem e estendem as mãos.
Vais levá-las ao jardim quando há sol, vais empurrar baloiços que chegam ao céu, vais assoar narizes cem vezes ao dia, vais fazê-las aprender a gostar de sopa, vais ler-lhes histórias e ensinar-lhes que todas as meninas têm direito a ser princesas, e todos os meninos têm direito a ser piratas das Caraíbas.
Elas vão ser, naquele pequeno universo diário, os filhos que tens em casa, ou na escola, ou não tens, ou esperas vir a ter mais tarde.
E por vezes podes sentir uns ligeiros remorsos por teres para elas o tempo que não tens para os teus.
Elas levam-te nos olhos quando à tarde as vêm buscar. E esperas que te levem também no coração.
Elas vão acreditar em ti como acreditam nas fadas e no Pai Natal.
Elas vão pôr-te os nervos à flor da pele e fazer-te esquecer, por vezes, o que aprendeste, e perder a paciência que sempre julgaste inesgotável.
Elas vão fazer-te suspirar pela hora do regresso a casa, vão fazer-te levar muitas vezes as mãos à cabeça e proferir intimamente palavras impronunciáveis. Porque elas são crianças. E porque tu és humana.
Resumindo: elas vão-te fazer feliz para o resto da tua vida.
 -
Para um prefácio de uma agenda das Educadoras de Infância

quinta-feira, 7 de março de 2013

CHÁ DAS CINCO


Por Alice Vieira

DIZEM que foi um imperador chinês que o descobriu.
Preocupado com longas epidemias que assolavam o império, ordenou que toda a gente bebesse água sempre fervida.
Um dia, estava ele à sombra de uma árvore e pediu água. Lá lhe trouxeram a água a ferver, e ele teve de esperar alguns minutos, pois até mesmo quem é imperador não aguenta água a escaldar pela goela abaixo.
Enquanto esperava, não reparou que umas folhas da árvore tinham caído para dentro do copo (chávena? caneca? malga?) e a água tinha ficado um bocado para o castanho.
O natural seria – sobretudo rodeado de epidemias por todos os lados… - que deitasse fora aquela mistela e voltasse a pedir mais água fervida, e nós nunca viríamos a saber de nada.
Mas não.
Ou porque a vista já não estivesse lá muito apurada, ou porque a sede fosse insuportável, ou porque – e eu aposto nesta... — pensou que a um imperador nada de mal podia acontecer, o certo é que bebeu tudo. E até gostou!
E como não morreu nem lhe aconteceu nada de grave nos dias seguintes, deve ter chegado à conclusão de que a planta não era venenosa e vá de se aproveitar dela.
Não sabemos que árvore seria exatamente aquela (Lapsang Su Chong, seria??) mas aquele foi o primeiro chá que se bebeu no mundo inteiro.
Também há quem tire o imperador dessa história e diga, muito simplesmente, que desde tempos muito antigos os monges budistas cultivavam chá nos Himalaias.
Seja como for, depois entra muita gente ao barulho, até que aparecemos nós, portugueses, que, ao chegarmos ao oriente, pegámos no chá e trouxemo-lo para o porto de Lisboa – donde partiu para outros mundos.
Como sempre, tivemos tudo nas mãos, e perdemos para outros, sobretudo para os holandeses.
 Adiante.
O mais importante é que os pais do british “five o’ clock tea” – somos nós.
É por nossa causa que os ingleses andam sempre de caneca na mão, e que não há personagem de livro, filme ou série britânica que, a dado momento, não diga "let’s have a cup of tea".
Já pensaram no inspetor Maigret ou em qualquer polícia americano a pedir chazinho???
Tudo porque no século XVII, a nossa princesa D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV, quando foi para a corte inglesa casar com Carlos II, instituiu esse hábito. Às cinco da tarde, chazinho para a rainha e suas damas.
As minhas velhas tias eram burguesas e republicanas, mas isso não as impediu, séculos mais tarde, de seguirem o exemplo de D. Catarina: tocavam a campainha (vocês ainda são do tempo em que havia campainhas colocadas em todas as salas das nossas casas?), a criada aparecia e elas diziam “ Emília, traga o chá.”
Nunca lhes passou pela cabeça irem à cozinha pedi-lo, e muito menos fazê-lo…
E depois seguia-se todo um ritual, de folhas de chá, de bules escaldados, de chávenas de Vista Alegre.
Aprendi com elas que todas as doenças se podiam curar com chá — de cavalinha, de tília, de macela, de camomila, de carqueja, do hipericão do Gerês, de perpétuas roxas, de cascas de cebola, de pés de cereja, de raiz de valeriana, de erva-do-diabo, de hortelã, de hibisco, de calêndula… digam-me a maleita e eu receito o chá.
Nessa altura não me lembro de ouvir falar em chá verde, branco ou vermelho. Ou bem que era chá – preto, forte, a escaldar e sempre sem açúcar – ou bem que era “chá de” : a primeira vez que tomei contacto com a palavra ”tisana” foi nos livros do Poirot (que era belga!) e tive de ir ao dicionário ver o que era.
Para lá de ter herdado das tias a sabedoria do chá, herdei-lhes também os bules, para os quais de vez em quando olho. Mas confesso que hoje em dia já os uso pouco: a água a ferver é deitada na caneca e dispenso os rituais.
As tias devem dar voltas no túmulo.
D. Catarina também.
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In Revista “Epicuro”, Out. 12

segunda-feira, 4 de março de 2013

Ruy Belo

Por Alice Vieira

CONHECI o Ruy Belo quando ambos entrámos para a Faculdade de Letras de Lisboa, em 1961.

Eu era uma jovem ainda a cheirar à infância do liceu; ele, dez anos mais velho, já tinha uma série de cursos no currículo, um doutoramento feito em Roma, um livro de poemas publicado.

 A princípio fazia-me confusão que uma pessoa como ele ainda insistisse em estudar mais, e se tivesse de novo matriculado numa faculdade, e andasse ali junto dos caloiros ( e todos juntos estaríamos quando, pouco tempo depois, rebentou a greve académica, que nos uniu ainda mais.)

Mas a nossa faculdade fazia-se muito mais no bar de Letras, onde a Menina Manuela tirava bicas, e onde as mesas se enchiam de gente que falava, discutia, acreditava que era possível fazer do país um lugar onde – como ele dizia pelo meio desse primeiro livro – “ um dia haverá barcos e seremos livres”

Às vezes, de repente, o Ruy exclamava:

“Tenho de ir para casa”.

E levantava-se da mesa e saía.

E eu sabia que era um poema que estava a chegar. Nunca conheci nenhum poeta a quem a inspiração chegasse assim.

Mas o Ruy era também a pessoa mais desorientada que alguma vez conheci na vida…

Nunca me hei-de esquecer do dia em que ele insistiu em ir buscar-me a casa para irmos…? À distância destes anos todos não me lembro exatamente onde iríamos, mas possivelmente a uma exposição de pintura na Galeria 111, que era o poiso de todos nós. Mas lembro-me de ter dito “eu levo o meu carro” (o meu carro era, na altura, o carro onde se amontoava toda a gente, “que saudades do tempo em que, para nós, “mini” era o teu carro e não uma cerveja”, dizia há dias o Jorge Silva Melo, nosso comum amigo…), e de ele ter respondido “desta vez vamos no meu”.

Eu vivia então na Av. António Augusto de Aguiar – e até hoje me lembro do pânico que senti quando o Ruy, metendo a primeira para arrancar, começa a subir a Av. Fontes Pereira de Melo — em sentido contrário.

“Ó Ruy, não é por este lado!”, gritava eu, e os carros que vinham contra nós a buzinarem feitos doidos, e ele “deixa estar que isto é rápido!”

Era nos anos 60, claro. Se fosse hoje, com o trânsito de hoje, aquele teria sido o nosso último dia de vida.

Depois o curso acabou, as nossas vidas levaram rumos diferentes, mas nunca deixei de estar em contacto com ele, e às vezes aparecia cá por casa, ou vinha jantar (quase sempre em dia diferente daquele que tinha sido combinado…).

Lembro-me de como me indignei quando não o deixaram entrar como professor na faculdade, e ele teve de ir dar aulas num curso noturno de uma escola do então Ensino Técnico, no Cacém.

Lembro-me de ouvir a sua voz magoada: “à noite, quando chego a casa, custa-me tanto subir as escadas…”

Hoje, enquanto recordo tudo isto, tenho na minha frente um postal da Fonte de Neptuno, em Madrid, que ele me escreveu, na sua letra tremida quando, nos anos 70, lá era leitor.

“O meu quarto na Casa do Brasil é o nº 15-A. Escreve-me, por favor”

E agora, para onde lhe poderei escrever?

sábado, 22 de dezembro de 2012

OS GLADÍOLOS

Por Alice Vieira
NEM SABIA bem por que ali estava.
Vingança, raiva, ou nenhuma razão em especial. Tinha dado de caras com a notícia no jornal, enquanto bebia o café e, de repente, vê-se a pagar a bica, a correr até à praça de táxis mais próxima, enfiar-se no carro, fechar os olhos, e deixar-se embalar até ouvir o homem dizer “cá estamos, minha senhora”.
Na rua em frente da igreja há uma florista. Pede gladíolos, mas dizem-lhe que já tiveram mas já não têm. Compra uma rosa.
A igreja está cheia, como já esperava que estivesse.
Tem muita pena de não trazer gladíolos. Um enorme ramo de gladíolos, como os que ele lhe entregava, sorriso manso nos lábios, quando regressava a casa, e lhe pedia desculpa pela pancada, pelos insultos, chegando mesmo a receitar-lhe pomadas infalíveis para as nódoas negras--prometendo nunca mais voltar ao mesmo.
Ela punha os gladíolos na jarra, e durante uma semana havia paz.
“Figura pública junta sempre mais gente no funeral do que em vida”, pensa, olhando para tantas pessoas que se acotovelavam à entrada da igreja, porque lá dentro já não cabia mais ninguém ou porque, simplesmente, não tinham podido resistir ao apelo do cigarro. Pessoas que, muito provavelmente, nunca lhe teriam dirigido sequer a palavra se alguma vez o tivessem encontrado na rua.
Alguns, mais velhos, olham para ela, ainda a reconhecem e acenam ligeiramente a cabeça.
Vagos conhecimentos, apenas. Os seus amigos verdadeiros, os que a tinham amparado nos tempos difíceis da separação, nunca ali estariam.
Entra na igreja, tentando a custo chegar até ao caixão.
Quer vê-lo.
Nunca mais o tinha visto, desde o dia em que se tinham encontrado no tribunal para o divórcio.
“Ainda te vais arrepender”, murmurara ele nessa altura. “O que és tu sem mim, não me dizes?”
Ela nem respondera. Fizera questão de deixar muito claro que não queria dele nem um centavo, o advogado aos berros, “mas a senhora não está a ver que ele vai ser condenado e pagar-lhe uma boa quantia?”, e ela a insistir, “nem um centavo desse homem, antes esfregar escadas a vida inteira.”
Tinha-se aguentado. Com a ajuda dos pais ao princípio, por si própria logo depois, na empresa onde esteve até se reformar.
É difícil chegar até ao caixão, há muita gente em volta e ninguém parece querer sair dali. Olha para o banco onde se senta a família. Só conhece a mulher das fotos nas revistas. E espera que ninguém a reconheça a ela, já passaram tantos anos e, de certeza, que ele não guardou fotografias desse tempo.
Olha para a mulher, franzina, sem a pintura que habitualmente ostenta nos retratos e, de repente, tem vontade de se sentar a seu lado, de lhe perguntar como correram aqueles anos todos, quantas vezes ele a atirou ao chão, e a espancou, e a insultou, e a ameaçou com facas - dando-lhe flores a seguir.
Olha para a cara dela, tentando encontrar marcas de antigas agressões, mas os cremes tudo apagam. Pena não haver cremes que também apagassem a dor e a humilhação e a revolta — que uma vida inteira não chegava para apagar.
A mulher tira um lenço da carteira e passa-o pela cara. Depois olha para ela. $$Ficam as duas a olhar uma para a outra, em silêncio.
Depois desviam os olhos.
Vai a sair quando, num impulso, volta atrás e deixa a rosa no colo da mulher. $$E voltam a olhar-se fixamente.
“Obrigada”, diz-lhe ela, numa voz quase inaudível.
Ela sai a correr, não sem antes olhar para o caixão.
O morto quase nem se vê, ao peso de tantos gladíolos.
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«Activa» - Dezembro de 2012

sábado, 8 de dezembro de 2012

UM NÚMERO DIFERENTE

Por Alice Vieira
ESTE É O Nº 500 da “Audácia”. Este é um número muito especial e, por isso, estamos todos em festa.
A “Audácia” nasceu em Novembro de 1966 - o que significa que está quase, quase a fazer 46 anos.
O que significa que os seus leitores atuais ainda nem eram sonhados quando ela apareceu. E, se calhar, nem a maioria dos pais.
Em 1966 o mundo era outro. Nós éramos outros. A maneira de fazer revistas era outra.
Nada destas máquinas sofisticadas que agora nos poupam tanto trabalho e tantas horas de esforço.
Lembro-me muito bem desse ano de 1966.
Eu tinha 23 anos, um curso acabado há dois, a família toda a insistir para que eu fosse professora (pois não era para isso que, segundo toda a gente, eu tinha estudado?), e eu, muito a contragosto, a ensinar um alemão rudimentar a alunos que queriam seguir Direito e precisavam de fazer exame de alemão e de ter ao menos 10 para poderem aceder à Universidade.
Foi a primeira e única vez que eu ensinei o que quer que fosse a alguém.
Eu já trabalhava no jornal – mas, para a família, jornalista era profissão que nenhuma menina decente e de boas famílias poderia escolher.
Jornalista era profissão de homens.
Feios, porcos, sujos e maus.
Mas esse foi o ano em que eu decidi que era preciso arriscar e não ter medo de escolher o que queria fazer da minha vida – mesmo que os outros abanassem a cabeça ou me virassem as costas. 
Há alturas em que tem de ser assim. Porque ninguém vive a nossa vida por nós.
E é por isso que, de cada vez que pronuncio a palavra “audácia”, me lembro da audácia que tive em largar tudo, de um momento para o outro, nesse ano de 1966: profissão, família, casa, conforto, segurança, despreocupação.
Tive a audácia de arriscar.
Depois – porque estas coisas acabam sempre por ser recompensadas…-- tive a felicidade de encontrar alguém, com quem partilhei quase 40 anos da minha vida, e que também nunca teve medo de arriscar, quando sabia que estava em jogo a liberdade, a coerência, a justiça, um futuro que sonhávamos bem melhor.
Pediram-me para hoje aqui falar dele.
Porque Mário Castrim escreveu na “Audácia” nos últimos anos da sua vida e, por isso, festejar este nº 500 é também festejar todos os que nesta revista têm trabalhado.
Mas, para mim, é tarefa muito complicada. É muito difícil falar de alguém de quem estive (e continuo a estar…) tão próxima.
Basta ler os seus textos – e as crónicas publicadas aqui na “Audácia” estão, felizmente, reunidas em livro — para se perceber a pessoa que ele era.
Trabalhou — trabalhámos… - muitos anos da nossa vida sob a censura.
Aqueles que já nasceram em liberdade têm dificuldade em entender o que isso era.
O que era não se poder falar nem escrever sobre aquilo que queríamos.
O que era “o lápis azul” a cortar páginas de alto a baixo.
O que era vermos completamente deturpado tudo o que escrevíamos (bastava o “lápis azul” cortar um “não”, por exemplo…)
O que era haver gente cujo nome nem sequer se podia mencionar.
Muitos foram desistindo. Por cansaço. Pela sensação de inutilidade. Pelo risco. (Abril vinha muito longe ainda…)
Mas o Mário nunca desistiu. Nem quando o telefone tocava cá em casa de madrugada, com ameaças. (Ainda hoje me custa atender um telefone que toca noite dentro…)
Talvez que a infância difícil que teve o tivesse preparado, e de que maneira, para a luta. A infância -- boa ou má –molda sempre as nossas vidas.
O Mário entrou para o sanatório do Outão aos 9 anos de idade – e saiu de lá dez anos depois.
Dez anos de afastamento da família, que vivia longe, de amigos, da vida normal de uma criança.
Dez anos em que sonhava com livros, muitos livros que pudesse ler à vontade, que o ajudassem a suportar dias e noites difíceis.
Acho que a única coisa que pedia, nesse tempo, eram livros.
Um dia o sanatório foi visitado por um grupo de dirigentes do Benfica, que iam conversar sobretudo com os miúdos, tentar, por momentos, fazê-los participar da vida que corria lá por fora.
- O que é que tu gostavas mais que te dessem? – perguntaram-lhe.
- “A Cidade e as Serras”, do Eça de Queiroz — respondeu ele.
Imagino o ar espantado da comitiva…
O que é certo é que, dias depois, chegava ao Sanatório do Outão um caixote com as obras completas do Eça de Queiroz e do Camilo Castelo Branco.
E esta foi a razão que tornou o Mário num benfiquista ferrenho até ao fim da sua vida.
E a vontade de nunca se deixar vencer pela doença foi sempre uma constante: estudou sozinho e pediu para fazer exames no sanatório, e fez. Quando saiu do Outão, quase com 20 anos, vinha disposto a ser professor – e foi.
Ainda hoje encontro velhos alunos dele que vêm ter comigo para me contarem como eram as aulas do “professor Fonseca”.
E depois o jornalismo.
A escrita de livros.
O resto da sua vida.
E isto é o pouco, o muito pouco, que sou capaz de dizer dele.
O resto é só meu.

Revista “Audácia”, Out.12