quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

DIA DOS NAMORADOS

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Por Alice Vieira

A FOLHA estava amarrotada, de tantos dias ali esquecida.

Uma folha A-4, dobrada em duas e depois em quatro e depois enfiada para dentro do bolso.

Ao alto à esquerda, a frase “amo-te”; em baixo, “Teresa”; ao alto à direita “mimos”, e em baixo “do Tiago”.

Tudo escrito num vermelho gritante, as palavras rodeadas de florinhas e passarinhos, e três risquinhos verdes a fazer de relva.

Marta deu uma leve, muito leve gargalhada.

“Só falta mesmo acrescentar “’jinhos, ‘jinhos, ‘jinhos!” como o outro para a Ofélia. Ai, meu Deus, como até as pessoas mais inteligentes ficam estúpidas quando S. Valentim de mete pelo meio…”

Abanou a cabeça, mas depois deu consigo a reflectir que no tempo de Pessoa ainda não se tinha inventado este maná do comércio urbano que é o Dia dos Namorados, a abarrotar de ursinhos, e coraçõezinhos e “amo-te fofa” por toda a parte, que horror…

Mesmo no seu tempo de jovem, S.Valentim ainda era desconhecido - e tinham passado muito bem sem ele. Santo António cumpria, melhor ou pior, a sua condição de casamenteiro, com a vantagem de os calores do verão ajudarem à festa.

Marta nunca se lembra de alguma vez ter jantado num 14 de Fevereiro à luz das velas, ou de nesse dia ter recebido flores. Os manjericos de Junho cumpriam a função, e esses nunca falhavam, com quadra ou sem ela.

Mas, tirando os arroubos poéticos das quadras de pé quebrado, nunca Santo António entrara, como São Valentim, pelo campo infindável dos sentimentos em ponto de rebuçado, a lamechice elevada a património imaterial da alma lusitana.

Voltou a olhar para a folha de papel.

Sorriu e concordou que nem era das piores.Com todo aquele floreado vermelho por entre as letras. Pelo menos.

- Isso é meu! — a voz de Teresa mesmo ao seu lado.

Marta não dera por ela entrar, naquele seu passo de gato silencioso, esgueirando-se por entre os móveis da casa.

- Estava no bolso do teu casaco. Encontrei por acaso.

Ia acrescentar “nem li”, mas não teve coragem.

Teresa pegou na folha, leu, releu, como se a tentar verificar se todas as letras e desenhos lá continuavam, voltou a dobrá-la e enfiou-a no bolso das calças.

Se fosse Matilde, o mais certo era armar-se logo ali um pé de vento, “tu o que queres é controlar a minha vida, saber com quem eu ando ou deixo de andar, mas já sabes que isso comigo não pega, já tenho idade suficiente para saber o que faço da minha vida”.

Mas Teresa nunca fora de dramas.

- Foi o teu namorado que te mandou isso? – perguntou Marta, e logo se arrependeu, toda a gente sabia que o namorado de Teresa se chamava Tiago, nunca tinha tido outro, de cabelo castanho, e, como ela dizia “ com olhos iguazinhos aos meus mas castanhos”, o que punha toda a gente a rir à gargalhada e ela a encolher os ombros sem perceber onde estava a graça, e sem se ralar muito com isso.

- Claro!

- Escreve bem, o teu namorado.

- Pois escreve.

-Pelo menos não te chamou “fofa”…

Foi então que o olhar de Teresa gelou.

Olhou bem para Marta e, muito pausadamente, perguntou apenas:

- Mas tu achas que se ele me chamasse “fofa” continuava a ser meu namorado?

Não deu tempo a qualquer resposta, e rematou a conversa:

- Já devias saber, avó, que não gosto de homens estúpidos.

E saiu da sala, cabeça bem erguida de todas as certezas dos seus sete anos.

«Activa» de Fevereiro 2012