domingo, 25 de novembro de 2012

AS SAUDADES DA CASA


Por Alice Vieira
E DE REPENTE a casa voltou a ficar silenciosa.
De um momento para o outro, os objetos regressaram todos ao seu lugar habitual, o piano fechou-se, deixou de haver sapatos largados pelo meio da casa de banho e dos quartos, acabaram-se as risadas à meia noite (“meninos! Já deviam estar a dormir há que horas!”), o frigorífico readquiriu o seu ritmo pacato e parou de ser esvaziado de cinco em cinco minutos, a despensa readquiriu o seu ar honesto e saudável, sem pacotes de batatas fritas nem garrafas de coca-cola, os livros de histórias encontraram de novo o seu lugar na estante, os “Simpsons” e a “Family Guy” desapareceram dos serões televisivos,
E a casa voltou ao que era, antes de os netos todos terem chegado para se apoderarem dela durante um mês inteiro.
Olho para os quartos, para a cozinha, para o corredor – e acho que a casa se deve ter sentido muito bem.
Durante este mês, ela deve ter pensado que tinha finalmente regressado ao antigamente da nossa vida, quando havia sempre gente a chegar e gente a partir, e a voz do meu filho, pequenino, a perguntar logo de manhã ao meu ouvido “mãe, temos hóspedes?”
A seguir ao 25 de Abril de 1974, o ritmo da casa serenou.
Quer dizer: a casa ficou, a partir dessa altura, a pertencer menos aos adultos e mais às crianças – e raro era o dia de anos em que, no fim da festa, eu não tivesse de ligar aos pais, a pedir que os deixassem cá ficar a dormir. (Aqui tenho de partilhar a responsabilidade com o meu marido, que inventava grutas de lobos na sala, fazia jogos de futebol no corredor — acabando toda a gente a desenhar ou a escrever o que lhe passasse pela cabeça numa parede mágica que havia reservada para isso mesmo. Hoje, lavada e pintada desde que o meu filho foi para universidade, é uma parede igual às outras…)
A Ana Rita ficou célebre até hoje (em que já deve ser mãe de filhos crescidos…) por cá ter dormido quase uma semana, até que foi preciso o pai vir pôr ordem naquilo e arrastá-la de cá por um braço...Quase todos os anos encontro a tia na Feira do Livro, e recordamos sempre essa odisseia…

Mas antes de 1974, os tempos eram muito difíceis, e raro era o dia em que não nos batiam à porta amigos que precisavam de cá ficar uma noite, duas noites, sabiam lá eles e nós quantas noites… Às vezes partiam de manhã cedo, e nunca mais tínhamos notícias deles.
O quarto do fundo estava sempre disponível (lembras-te, Rogério? Lembras-te, Isabel? Lembras-te, Daniel? Lembras-te, Armindo? e por aí fora…)  e, quando não estava, havia sempre uma cama vaga, ou chão livre para nele se estenderem colchões-camas.
Uma noite, o Armando bateu à nossa porta.
Eu nunca tinha visto o Armando. Conhecia-o apenas dos textos que ele mandava para o suplemento “Juvenil” do jornal “Diário de Lisboa”, onde eu trabalhava.
Quer dizer: do Armando, as únicas coisas que eu sabia era que escrevia muito bem, e que vivia nos Carvalhos, perto do Porto.
Ele à porta e eu sem saber quem era aquele que, em hora tão pouco apropriada, me batia ao ferrolho.
Ele, “sou o Armando”, e eu só a pensar “pelo amor de Deus, vai-te embora, vai-te embora!”, e ele, coitado, só a repetir o nome e a dizer “desculpa, mas preciso de cá ficar esta noite!”— e a olhar para mim, estranhando certamente o ar de poucos (de nenhuns…) amigos que via na minha cara, caramba!, nem um sorriso, nem um “entra amigo, a casa é tua!”, nada.
O Armando a olhar para mim, e eu, apoiada à ombreira da porta, só a respirar fundo, a respirar muito fundo, a respirar fundíssimo.
Afastei-me e fiz-lhe sinal que entrasse.
Ele entrou, e ali ficou, com um saco aos pés, esperando que eu dissesse alguma coisa.
Passados alguns minutos, e depois de ter novamente respirado muito fundo, apontei-lhe o armário que ficava mesmo no fim do corredor:
- Sabes fazer uma cama, não sabes?
Ele acenou que sim.
- Então olha, os lençóis estão ali, o cobertor também, faz a cama onde quiseres, fica o tempo que quiseres, sai quando quiseres — que eu tenho de ir já para a maternidade!
A minha filha nascia horas depois.
Acho que o Armando nunca chegou a conhecê-la – mas, durante anos a fio, nunca se esqueceu de lhe mandar os parabéns.
Devia ser de tudo isto que a casa tinha saudades.
Revista “Audácia”, Nov. 12