sábado, 20 de novembro de 2010

DENUNCIANTES

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Por Alice Vieira

OS JORNAIS anunciaram que, a partir de agora, é oficialmente reconhecida a nobre profissão de denunciante.

Já tardava, é um facto. Mas pronto, antes tarde que nunca.

Todos sabemos como a nobre arte da denúncia tem sólidas raízes entre nós.

No tempo do Senhor D. João III (e nos tempos que depois se seguiram…) muitos foram os que acabaram nas fogueiras da inquisição, denunciados por vizinhos, familiares ou amigos, prontos a jurar que os tinham visto, por exemplo, “ a ter comércio com o demónio”, ou a “apartar-se da nossa santa fé católica, passando-se à lei de Moisés, vestindo camisas lavadas aos sábados, e jejuando às 2ª e 5ª, e não comendo carne de porco”.

Sabe-se como a nossa santa fé lhes ficou eternamente grata.

Muito mais tarde, nos saudosos tempos do Estado Novo, a nobre arte da denúncia foi de novo reinstaurada. Uma legião de impolutos cidadãos, amantíssimos esposos e extremosos pais de família, encarregava-se de escrever cartas denunciando vizinhos, colegas de trabalho, familiares, amigos, ou vagamente conhecidos, jurando que os tinham ouvido falar contra a ordem estabelecida, denegrindo a figura do Sr. Presidente do Conselho, ou pondo em causa a nossa patriótica presença em África, ou ouvindo rádios a soldo de potências inimigas estrangeiras, ou acolhendo gente suspeita em suas casas pela calada da noite. Assim o juravam e assinavam, a bem da nação.

Sabe-se como a nação lhes ficou eternamente grata.

Como se vê, está-nos na massa do sangue.

Agora, se alguém suspeitar de corrupção — as autoridades ordenam que se denuncie imediatamente.

Com a net é uma limpeza, pena ela não existir nos tempos do Senhor D.João III ou do Sr. Dr. Oliveira Salazar, bom jeito tinha dado.

Claro que há uma triagem — dizem.

Claro que há uma investigação — dizem.

Claro que os tempos são outros — dizem

Mas os denunciantes, lá no fundo, nunca mudam.
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«JN» de 19 Nov 10

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Convite para lançamento de livro

Por Alice Vieira

18 Nov 10 / 18h30m
El Corte Inglés de Lisboa (piso 7)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

OS MORTOS DE NOVEMBRO

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Por Alice Vieira

OS MORTOS, claro!, os mortos de Novembro! os intermináveis mortos de Novembro — e ela de vermelho.
Podia ter escolhido outra cor, digamos, menos agressiva, menos “espampanante”, diria a mãe...
Adora a palavra “espampanante”, lembra-lhe champanhe a transbordar da flûte.
Meu Deus, os mortos de Novembro, e ela de vermelho e a pensar em champanhe.
Teresa a chamar por ela, a esperar por ela, a mandar-lhe SMS atrás de SMS, “tou cá em baixo”, “desces ou subo?”, “tás muito atrasada?”, e ela de telemóvel na mão sem saber o que responder, porque só tem olhos para o vestido vermelho, logo hoje, por que raio se esqueceu que era novembro, data marcada para pensar nos mortos, única altura em que a irmã se lembrava deles.
Com a morte da mãe (que se fizera enterrar na aldeia natal, a centenas de quilómetros dali) chegara a pensar que tudo isso tinha terminado.
Mas já devia saber que Teresa era igual à mãe.
Vêm-lhe subitamente à cabeça os Dias dos Mortos da sua infância, em que a mãe os levava a todos ao cemitério.
A mãe dizia sempre “Dia dos Fiéis Defuntos”.
Um dia ela perguntou-lhe se havia defuntos infiéis (na escola falavam muito dos “infiéis” com quem D.Afonso Henriques andava sempre à espadeirada), e a mãe deu-lhe um estalo com tanta força que os dedos lhe ficaram marcados na cara durante uma semana. A mãe sempre tivera uma maneira muito própria de responder a perguntas difíceis.
Iam sempre na véspera, porque na véspera é que era feriado e a mãe não trabalhava. Sentava-os em minúsculos banquinhos portáteis, contava-lhes rapidamente a história dos que ali estavam (e que, com o andar dos anos, já todos sabiam de cor) — enquanto tirava do saco um frasco de detergente e se punha a esfregar o mármore das campas, como se não houvesse amanhã.
“O Sr. Salvador está cada vez mais desleixado…” — ouviam-na murmurar.
O Sr. Salvador era o coveiro e quem ali tratava de tudo.
E todos olhavam uns para os outros e riam à socapa, para que a mãe não ouvisse, porque achavam muita graça à ideia de alguém, chamado Salvador, tratar de quem já não tinha salvação possível.
Todos, menos Teresa, evidentemente. Muito direita no banco, e muito séria, Teresa estava ali para sofrer, honestamente, por todos.
Às vezes a mãe até lhe pedia ajuda: “Teresinha, toma o esfregão e limpa aí esse lixo ao pé da “saudade eterna” da placa do tio João Martins”
E a Teresa que, tal como os outros, nem sabia quem tinha sido o tio João Martins, desatava a esfregar, rivalizando com a mãe em suor e dedicação.
Uma vez por ano, na véspera do Dia dos Mortos, Teresa tinha pena dos mortos da família — mesmo que nunca os tivesse visto em vida.
Mesmo que a mãe já não dominasse as suas vidas.
“Amanhã venho buscar-te ao meio-dia”, tinha-lhe dito, num rápido telefonema.
E ela pensara que, num súbito (embora estranho) ataque de saudades, a irmã mais velha quisesse passar o feriado com ela.
Nem se lembrou de perguntar “para quê?”
Ficou contente, até se vestiu de vermelho.
Agora, de repente, tão despropositado.
Faz um esforço para recordar onde estão enterrados os seus mortos, aqueles de que verdadeiramente sente a falta, aqueles cujas campas nunca conheceram as fúrias salvadoras da mãe e da irmã.
E sorri a pensar neles todos, e em como todos eles, à sua maneira, tinham dado sentido à sua vida, e era como se ainda ouvisse as suas palavras, como se ainda sentisse o calor das suas mãos, a alegria das suas gargalhadas.
Novo SMS: “então?”
“Já desço” - responde.
Pega na carteira, fecha a porta, entra no elevador.
Enquanto Teresa estiver a chorar pelos mortos desconhecidos, ela irá em busca dos que lhe pertencem.
Dos que a fizeram feliz.
Dos que merecem o seu vestido vermelho.
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«ACTIVA» de Nov 2010

sábado, 6 de novembro de 2010

A SALA DOS PROFESSORES

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Por Alice Vieira

EU SEI QUE, hoje, ser professor é profissão de risco.
De resto, qualquer profissão, hoje, é de risco — quanto mais não seja o risco de ir para a rua em dois segundos.
Mas aquele letreiro, à entrada da sala dos professores, chamou a minha atenção.
“É expressamente proibido os alunos incomodarem os professores durante os intervalos.”
Se calhar foi aquele “expressamente proibido”, se calhar foi aquele “incomodarem”, não sei, alguma coisa naquela frase me projectou de repente aos meus 20 anos, quando trabalhei com o prof. Calvet de Magalhães — um dos grandes pedagogos que este país conheceu — que nunca fechava a porta do seu gabinete.
A Escola Francisco Arruda, de que era director, foi um modelo único de experimentação de metodologias, de integração na comunidade, de educação pela arte.
A Francisco Arruda tinha laboratórios, oficinas, biblioteca, anfiteatro, ginásio (até um infantário para filhos de professores e funcionários, carinhosamente conhecido por “Chiquinha”)
E, aos sábados, abria as portas de par em par—e enchia-se de miúdos dos bairros da lata que então envolviam a escola, e que sabiam que naquele dia tinham ali à sua disposição gente que lhes contava histórias, ou artesãos que lhes explicavam ao vivo os seus ofícios, ou música, ou ateliers de modelagem, ou xadrez.
Os sábados eram uma festa.
Foi no “Diário de Lisboa” que conheci o prof. Calvet de Magalhães, a organizar “O Natal Visto pelas Crianças” — um concurso destinado a todas as escolas do país, com uma aceitação que se traduzia em caixotes e caixotes de trabalhos que as escolas mandavam. À sua volta reunia um júri de peso nas artes e na literatura: José Gomes Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Alice Gomes, Rocha de Sousa, António Domingues.
Eu estava então a iniciar-me na aventura do jornalismo, dando apoio àquelas pessoas, que para mim, até então, só viviam nos livros…
E um dia, de repente, o Prof. Calvet de Magalhães disse-me: “no sábado, vais ler histórias aos miúdos da minha escola”
Passei aquela semana em pânico, ora escolhia uma história, ora escolhia outra (estava tão longe de um dia vir a escrevê-las!) e, por muitos anos que eu viva, nunca esquecerei aquela sensação de me ver em cima de um palco diante de um salão enorme a rebentar pelas costuras da malta da pesada…
Mas aguentei-me.
E, sábado sim sábado não, lá estava eu na minha nova actividade…
Foi nesses anos que aprendi o que era verdadeiramente ser professor. A dedicação, a disponibilidade permanente, (“a porta do meu gabinete está sempre aberta, porque nunca sabemos quando um miúdo precisa de nós”), o gosto pelo trabalho que se faz, até o sentido de humor: havia uma sineta, à entrada da escola, com a inscrição: “Quando o progresso falhar, lembrem-se de mim”
Lembrei-me de tudo naquele dia, ao ler o aviso na porta da sala dos professores.
E tive muitas saudades do Prof. Calvet de Magalhães.
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«JN» de 6 Nov 10