sexta-feira, 3 de agosto de 2012

AS NAUS DAS DESCOBERTAS

Por Alice Vieira

TINHA sido um verdadeiro sufoco, ela na rua e de repente a pensar
“esqueci-me das chaves e do telemóvel em casa”
A quem pedir ajuda, e como pedi-la? Mesmo com cabines telefónicas nos passeios e moedas nos bolsos, desde que se inventaram os telemóveis que ela nunca mais soube nenhum número de cor, está tudo na memória, ela a viver pela memória de uma máquina, ao que isto chegou.
Mas foi sufoco breve, felizmente não estava longe de casa quando deu pela falta, e pôde rapidamente voltar atrás e entrar no café, que desde sempre guarda uma cópia das suas chaves para uma qualquer emergência. Como esta.
Ainda bebeu uma tranquila bica antes de voltar a casa para buscar o que esquecera, meditando, como sempre em ocasiões semelhantes, na dependência em que todos vivemos de máquinas e tralhas afins.
Vem-lhe à memória o tempo longínquo em que o primeiro telefone móvel entrara lá em casa. Uma maravilha da técnica. Tirava-se do descanso e podia-se levar pela casa toda, e falar confortavelmente estiraçado na cama, ou na sala, ou na cozinha, enquanto se mexia a sopa.
Tinha sido o filho quem mais vibrara com o objeto. Agora podia enfiar-se no quarto, sem dar cavaco a ninguém, e passar horas com as suas diversas namoradas.
Preocupava-a aquele filho, sem nunca pegar num livro, naquela casa onde eles estavam por todo o lado e onde ninguém podia passar sem eles. Ninguém, menos ele, claro, que pelos vistos passava mesmo muito bem, porque a verdade é que tinha boas notas e não chumbava.. Mas ler não era, definitivamente, o seu passatempo favorito.
Por isso ela se lembra do ar de espanto que fez no dia em que ele lhe perguntou:
- Mãe, onde estão “As Naus”?
Nem percebera.
- Onde está o quê?
- “As Naus”, mãe. Aquele livro do Lobo Antunes.
Não quis mostrar demasiado o seu espanto, o rapaz ainda era capaz de se arrepender, e tirou-o da prateleira. Tinha estado muito recentemente a pôr a sua estante em ordem, sabia onde o tinha colocado.
O filho pegou no livro, enfiou-se pelo quarto, fechou a porta e lá ficou.
Nos dias seguintes “As Naus” lá continuavam na mesa de cabeceira. Um dia achou por bem voltar a pô-lo na prateleira.
À noite, o filho, meio zangado:
- Mãe, qu’é das “Naus”?
Pelos vistos a leitura do romance entusiasmava-o.
Um dia arriscou:
- Estás a gostar das “Naus”?
Foi a vez de ele a olhar espantado.
- Das “Naus”?
- Sim, do romance do Lobo Antunes.
- Ah!!
Foi um enorme “Ah” que se devia ter ouvido pela casa toda.
Depois foi buscar o livro e abriu-o na primeira página, onde se viam uns números escritos a lápis.
- Tás a ver, mãe... É que há dias, quando tu andavas a fazer a arrumação dos livros, a Teresa ligou e eu precisava de tomar nota do número do telefone dela. E isto era a única coisa que eu tinha à mão. Como nunca sei o telefone dela, preciso sempre de ver aqui.
Ainda pensou em dar-lhe uma agenda – mas desistiu. Pegar num livro era bem melhor. Até podia ser que ele se entusiasmasse e passasse da primeira página.
Como de resto veio a acontecer, não por causa de “As Naus” mas por causa de uma namorada que lhe disse:
- Ou tu lês o que eu leio, ou nada feito.
Casaram, são muito felizes, têm 5 filhos.
( “As Naus” continuam com o número de telefone escrito a lápis, já um bocado sumido, que os anos não perdoam.)

«Activa» de Agosto de 2012