sábado, 28 de agosto de 2010

OS REPUBLICANOS NÃO SE ENTENDEM

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".


QUE FÉRIAS agitadas!

O meu pai só conseguiu passar por cá ontem, mais por causa da minha mãe, que tem andado muito nervosa.

Hoje há eleições (mas a esta hora ainda ninguém sabe o resultado) e por isso o pensamento dele ontem estava sempre em Lisboa.

Seja qual for o resultado, só espero que ele acalme e venha depois passar uns dias connosco.
Há uma burricada seguida de piquenique marcada para depois de amanhã, e gostava que ele fosse comigo. Para a minha avó não estar sempre a dizer que ele só me leva para comícios e discussões políticas.

Ontem, por exemplo, veio almoçar e depois eu disse-lhe que lhe ia mostrar a minha bicicleta nova. Mas passámos pela Drogaria Gonçalves…e pronto, instalou-se lá de conversa com o Sr. Sebastião e o passeio morreu ali.

E quando eu pensava que eram os monárquicos que os preocupavam mais…não! Com quem eles estão mesmo preocupados é com os republicanos!

Claro que os ouvi falar dos “conservadores” (e ainda me fartei de rir com o Sr. Sebastião a imitar o José Luciano, que é um dos chefes e fala “achim”…), e dos “liberais”, - mas parecia que estavam a falar de histórias antigas, que já não tinham importância.

Agora, quando começaram a falar dos republicanos, aí é que até parecia que lhes saía fogo pelos olhos!

- Cá para mim, Sr. Sebastião, se não for o Afonso Costa este país não tem salvação!
- Ó Sr. Fernando, não diga isso! Ele assusta as pessoas!
- E é disso que as pessoas precisam, para ver se reagem!
- Ó Sr. Fernando, não me diga que não se lembra daquele discurso dele, há anos, a dizer…

(e o Sr. Sebastião fez voz grossa)

- …”Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos, rolou no cadafalso em França a cabeça de Luís XIV!”

(e o Sr. Sebastião voltou à voz normal)

- …e 14 meses depois, D. Carlos era assassinado!
- Não me venha agora dizer que foi o Afonso Costa que o matou!
- Nunca ficou lá muito bem esclarecido…Não foi ele que puxou o gatilho, mas há muitas maneiras de matar uma pessoa…
- Então, se o senhor não é pelo Afonso Costa, é por quem?
- Para mim, não há ninguém como o Brito Camacho! Esse é que é um republicano a sério! Basta ler “A Luta” para vermos a diferença…
- Não diga uma coisa dessas!
E ali ficaram os dois numa discussão interminável até que o meu pai rematou:
- Está a ver? Somos ambos republicanos, queremos ambos o fim da monarquia — e não nos entendemos! É disto que eu tenho medo nas eleições de amanhã.

E enquanto eles pensavam nas eleições, eu só pensava na minha bicicleta, que veio directamente da Casa Simplex, da Rua de Sto. Antão, a única loja que as vende em Portugal, e que o meu pai ainda não viu. Uma bicicleta com rolamentos esféricos, sem cones nem caixas, e que nunca desafinam! Uma coisa verdadeiramente extraordinária!
À vinda para casa ainda estive para lhe falar disso, mas desisti : a minha bicicleta nunca iria chegar aos calcanhares do Afonso Costa. Nem do Brito Camacho.

«JN» de 28 Ago 10

sábado, 21 de agosto de 2010

QUIROMANTES E ESPANHOLAS

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

O MEU PAI não veio este fim-de-semana ter connosco a Pedrouços.

Sabe-se agora que anteontem a revolução estava para sair para a rua — e mais uma vez não saiu.
Eu nem falo nestas coisas mas, palavra, estou cheio de medo que aconteça com a república o mesmo que aconteceu naquela história muito antiga, em que um pastor estava sempre na brincadeira a gritar “lobo! lobo!” e, quando apareceu um lobo mesmo a sério, ninguém acreditou.
Um dia a revolução vem mesmo a sério para a rua, a República ganha, e já ninguém acredita - e quando o rei for entrar no palácio já lá está um presidente.

Eu até acho que, em vez de mandarem os seus homens de confiança pela Europa a tentar arranjar apoios para a causa, os republicanos deviam era mandá-los a uma consulta da quiromante Madame Brouillard, que — segundo li há bocado no último número da “Ilustração Portuguesa”, - “prediz o futuro com veracidade e rapidez, sendo incomparável em vaticínios”. Tem consultório na Rua do Carmo (o que é muito mais económico do que viajar para França ou Inglaterra), atende das 9 da manhã às 11 da noite, e paga-se mil reis por cada consulta. Não é barato, mas o que são mil reis diante da possibilidade de sabermos o futuro?

Parece que desta vez o culpado do falhanço da revolução foi um oficial que, à última hora, com medo do conflito que iria estalar a seguir, atraiçoou a causa e denunciou tudo.

Quem me contou foi o Sr. Sebastião, que estava excitadíssimo:

- Lisboa está um barril de pólvora, menino Zé! Foram apreendidas mais de 150 bombas, a tropa está toda de prevenção…

O Sr. Sebastião, que é quem avia os fregueses na Drogaria Gonçalves, é republicano. Quando cá está, o meu pai passa horas e horas a conversar com ele. A minha mãe está sempre a queixar-se de que ele passa mais tempo na Drogaria Gonçalves do que passa em casa.

- Cada um tem a espanhola que merece… — murmurou uma vez a minha avó, e eu era pequeno e não percebi nada.

Mas agora já vou entendendo alguma coisa de histórias de homens… (De resto, daqui a uns meses faço 15 anos, já não sou nenhuma criança.)

Segundo me conta a Rosa, nalgumas praias há uns clubes onde se ouve música e se fazem muitos bailes, e onde os homens gostam muito de ir, porque há por lá umas bailarinas espanholas muito engraçadas. E passam lá imenso tempo…

A Rosa jura que nós vimos sempre para Pedrouços (as outras alternativas eram Paço d’Arcos e Cascais) exactamente porque aqui não há clube nenhum desses, e a minha mãe pode passar férias descansadas…

Mas o meu pai diz que escolheu Pedrouços porque, para lá dos bons ares reconhecidos no mundo inteiro, aqui não corre o risco de dar de caras com a realeza, que está toda em Cascais, nem com esses nobres de meia tigela, que estão todos em Paço d’Arcos.

De resto, agora com a revolução a anunciar-se dia sim, dia não, duvido que o meu pai tivesse muita vontade de bailar com as espanholas.

«JN» de 21 Ago 10

sábado, 14 de agosto de 2010

AS DELÍCIAS DE PEDROUÇOS

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

E CHEGÁMOS!
O Chalet Gonçalves cheira a mofo, porque há meses que está fechado.
Desde que enviuvou, a D. Bibiana nunca mais cá viveu, e a minha mãe, com as confusões e atrasos da nossa vinda, até se esqueceu de lhe pedir que abrisse as janelas uma semana antes, como sempre faz.
Mas assim que chegamos a Pedrouços, respira-se logo outro ar! Se eu pudesse, vivia cá sempre.
O meu pai veio connosco no vapor até Belém, e depois no trem até aqui, mas voltou logo para Lisboa.
Ainda não se recompôs do comício da semana passada…Era tardíssimo quando chegou a casa, e vinha tão excitado, e falava tão alto com a minha mãe, que eu, estremunhado, levantei-me da cama, fui ter com eles à sala e perguntei:

- Já há República?!

Não havia – mas, para utilizar as suas palavras, aquele tinha sido “um comício histórico”, nunca se tinha visto nada assim, mais de cem mil pessoas na rua!

- Dizem que até a D. Amélia já admitiu que a coroa está em jogo! É agora!

Fez-me uma festa na cabeça e acrescentou:

- Podes escrever no teu diário isto que te digo!

Já perdi a conta às vezes que ele me diz que tudo está mesmo por dias, mas não o quis desiludir: não devemos tirar as ilusões a um adulto, que nunca sabe o que fazer sem elas… Por isso sorri, acenei com a cabeça e voltei para a cama.
E nestes dias, para falar verdade, não tenho pensado muito na República, nem no Povo, nem no Rei (que continua no Buçaco…)
Só penso na bicicleta, na praia, nos piqueniques e nas burricadas.
Eu agora já sei nadar, e gosto de me meter pelo mar dentro, embora saiba que as pessoas, quando vêm para a praia, não vêm para se divertir, vêm porque lhes faz bem à saúde. As mães vêm para a praia porque os filhos precisam de energia e vigor, coisas que, como todos nós sabemos, as cidades não dão.
Digamos que a praia é um remédio. Em vez de engolirmos xaropes e Pílulas Pink, e purgantes (odeio canja porque
é sempre nela que a minha mãe mistura o óleo de rícino que tenho de tomar antes virmos para cá…) — tomamos banhos de mar.
E como um remédio se engole porque tem mesmo de ser — também aqui se passa o mesmo: vamos ao banho porque tem de ser e, lá diz a Rosa, “o que tem de ser tem muita força”.
Quando eu era pequeno, os banhos eram o meu pesadelo…De manhã, lá pelas onze horas, já eu estava com o meu fato de banho diante do mar à espera do Sr. Manuel, que é há muitos anos o banheiro a quem todas as mães entregam os filhos.
Ele chegava, apertava-me o nariz e atirava-me para dentro da água! Às vezes, antes de me atirar para o mar, mergulhava a minha cabeça sete vezes seguidas na água, eu sem fôlego a pensar que morria, e ele: “é para prevenir a gaguez e para impedir que os demónios entrem no seu corpo!”
Não sei se os demónios alguma vez tentaram entrar no meu corpo - mas até hoje ainda não percebi como não fiquei gago para o resto da vida.

«JN» de 14 Ago 10

domingo, 8 de agosto de 2010

MAIS UMA SEMANA DE ESPERA

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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

As pequenas coisas

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Por Catarina Fonseca

NASCEMOS FELIZES como nascemos com cabelo castanho, olhos azuis e predisposição para bolhas nos pés, ou tornamo-nos felizes?

Tenho um amigo cronicamente infeliz. Sofre de infelicidade como outras pessoas sofrem de reumático, dores nas costas, asma ou hemorróidas. A infelicidade, nele, é quase uma forma de ser feliz. Sempre que nos encontramos, temos a mesma conversa (a seguir a ‘Porque é que toda a gente nos trata como se tivéssemos 14 anos’): afinal, por que é que vale a pena viver?

Da primeira vez, fui apanhada desprevenida. Durante uns bons minutos nem soube o que lhe responder. Finalmente, lá consegui gaguejar: “Chanel 19?”

É para vocês verem os estranhos labirintos do nosso cérebro. Só a seguir é que me veio à cabeça tudo o que me faz verdadeiramente feliz: os meus sobrinhos (especialmente a dormir), o mar da Costa Nova, gelado de cheesecake, borboletas no estômago quando nos apaixonamos, banhos de imersão com sais cor de rosa, conversas metafísicas, pessoas interessantes, livros que nos fazem ter vontade de voltar para casa. Despejei-lhe tudo isso aos trambolhões. A tudo ele torcia o nariz. O mar? É gelado! Os bebés? Choram! E rematava, “E isso são pequenas coisas”. Iá? Mas não são as pequenas coisas que nos fazem verdadeiramente feliz? Quando me preparava para voltar ao ataque com novas munições a eito (“aviões! lareiras! presentes! rouxinóis! Mozart! O George Clooney?”) percebi de repente que estava a gastar o meu Clooney. Os infelizes não são convertíveis porque a felicidade não depende de qualquer coisa fora de nós. Depende de nós. De que parte de nós e em que altura da nossa vida é que a contraímos, já não sei. Temo que tenha qualquer coisa a ver com sermos amados em bebés, mas como conheço imensa gente amada em bebé que está de mal com o Universo desde que largou a chucha, não deve ser assim tão simples.

Fui portanto documentar-me. O estudo mais recente sobre a felicidade é decisivo: ser feliz não tem a ver com a pessoa que se é mas com o sítio onde se vive. E então, qual é o país mais feliz do mundo? Não, não são as Caraíbas. É a Suíça. O que faz sentido: muitos chocolates e poucos impostos. Parece-me uma boa receita para a felicidade. Não sei se a Heidi também terá alguma coisa a ver com isso. Estão empatados com a Dinamarca (também faz sentido: são todos louros e acreditam em fadas) e a seguir os islandeses. Sendo que o inquérito era de 2006, seria interessante saber se depois de terem levado com duas cacetadas na carroceria (as cinzas do Fyjfyjfyj – pronto, do Zé Manel – e a bancarrota) continuam assim tão felizes. Os mais infelizes são os moldovos. Eu nem sei onde é que fica a Moldova. Eles pelos vistos também preferiam não saber.

Conclusão: não é preciso ter praias, é preciso ter amigos e confiança em quem nos governa. Nós portugueses desconfiamos profundamente da felicidade. Aliás, capitalizamos no fado, o que me parece bem. Já que somos infelizes, ao menos que se venda muito CD sobre isso aos totós dos Suíços. Mas, ó meninos, não exagerem! Sejam lá felizes e não chateiem! Há uns tempos, a propósito daquele 7-0 no Mundial com os pobres dos Coreanos, houve um comentador que disse: ‘É preciso não entrar em euforia!’ A única pessoa que achou isto estranho era (adivinhem lá) brasileira.

«Activa» de Agosto 2010