sábado, 26 de junho de 2010

NOVO GOVERNO E NADA DE FÉRIAS…

Por Alice Vieira

ESTE FIM-DE-SEMANA traz toda a gente muito excitada.
Enfio-me no meu quarto e aproveito para escrever no meu diário.
(Há dias o meu pai disse-me que, daqui a uns anos, isto ainda vai ser um bom documento destes tempos. Nunca se sabe…)
Pois então lá temos outro governo. Desta vez, do ministro Teixeira de Sousa que, antes de vir para a política era médico em Trás os Montes - segundo o meu pai me disse. Acho que nunca o vi (ministro do reino é bicho que não frequenta a nossa livraria…), mas vi uma fotografia: velhote, como todos, de cabelo branco e grande bigode.
Desde que o rei andou aqueles dias todos por Inglaterra, as coisas por cá, se já estavam feias, mais feias ficaram, e nunca mais se recompuseram.
O chefe do governo dizia que não conseguia governar; o rei dizia-lhe que tivesse calma, muita calma (isto devia ele ter ouvido em Inglaterra: a minha mãe está sempre a dizer que os ingleses têm imensa calma, muito mais calma do que nós…); os partidos não se entendiam; a Polícia cada vez fazia mais prisões; e depois de muita confusão, lá se foi o outro governo e lá veio este.
Que não deve durar muito, pois já se fala em fazer eleições no mês de Agosto…
(Se calhar nem valia muito a pena tomar nota aqui do nome deste ministro, que não deve aquecer o lugar, mas como o meu pai diz que este diário ainda pode ser um bom documento, tenho de aqui assentar tudo.)
Também ouvi dizer que o governo é formado por mais seis ministros e que já há quem lhes chame “os sete satanazes”…

- Que país este, santo Deus, onde tudo tem alcunhas! — protestou a minha avó.

Para dizer a verdade não me preocupam muito as alcunhas, nem o novo governo, nem os novos ministros.
O que verdadeiramente me preocupa é que este ano ainda não ouvi ninguém falar das férias de verão.
Em anos normais, a esta hora já a minha mãe estava a organizar tudo para partirmos para a praia de Pedrouços.
A D. Etelvina vinha para nossa casa todas as tardes para arranjar a nossa roupa, deitar bainhas abaixo, alargar e apertar saias, pôr em ordem a roupa de mesa e de cama, essas coisas que é sempre preciso levar quando se vai de férias.
Todos os anos passamos as férias no Chalet Gonçalves, em frente da Drogaria Gonçalves. Pertencia tudo ao Sr. Gonçalves, que era amigo do meu avô, e que já morreu. Agora pertence tudo à D. Bebiana, que é a viúva.
Desde sempre que me lembro de alugarmos a casa para toda a temporada de verão.
Umas semanas antes, a minha mãe ia com a Rosa abrir as janelas, levar já algumas malas, e pedir à D. Bebiana para arranjar duas raparigas que pudessem ir lá para casa servir durante esses meses, porque a Rosa sozinha não dava conta do recado.
Depois mudávamo-nos todos para lá - menos o meu pai, que só ia ao fim de semana, porque não podia fechar a livraria.
Mas este ano, ou por causa da república, ou por causa do meu irmão, ainda ninguém começou a falar em férias.
E isto, sinceramente, isto é que verdadeiramente me preocupa.
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«JN» de 26 Jun 10

sábado, 19 de junho de 2010

PÃO COM SERRADURA

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Por Alice Vieira


Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

QUANDO EU ERA PEQUENO, pensava que o meu pai conhecia o mundo inteiro.
É claro que neste momento já tenho outra ideia do mundo mas, mesmo assim ainda fico admirado com a quantidade de gente que ele conhece.
Ouço-o falar de Miguel Bombarda, Machado Santos, Cândido dos Reis, Magalhães Lima e sei que um dia, quando vier a República, vão ser todos pessoas muito importantes.
Muitos são clientes habituais da livraria, ou fazem da livraria o seu lugar de conversa, ou encontram-se na Brasileira, ou vão ler as notícias do mundo enviadas pela Agência Havas que a Havaneza afixa, ou fazem por não perder um sarau do São Carlos. (Há mesmo quem assegure que são melhores as conspirações que se tramam entre as quatro paredes do São Carlos do que as óperas que lá se ouvem…)
Há mesmo um grupo de amigos do meu pai que anda pelo estrangeiro a pedir apoios para quando a revolução rebentar a sério.
Mas enquanto não rebenta, o governo não se entende.
Quer dizer, o governo nunca se entende.
Basta dizer que, desde que D. Manuel é rei, este já é o quinto governo do país. E, pelos vistos, já outro se anuncia para breve.

- Casa onde não há pão…- murmura a minha avó.

O que até vem a propósito, pois parece que até com o pão tem havido sarilhos.
Ouvi o meu pai falar disso à mesa.
Dizia ele que, como há falta de cereais, o pão fica muito caro.
(E aí aproveitou logo para exclamar, com voz de comício:

- Uma das primeiras medidas da República será fazer descer o preço do pão!)

E então, para as pessoas o poderem comprar, (“se as pessoas não comerem pão o que é que elas vão comer, com a miséria que vai por aí?”, murmura a minha mãe) ele é posto à venda abaixo do seu preço real de produção.
E então os produtores, para ver se podem lucrar mais qualquer coisita, vá de misturarem a farinha com serradura, cal e gesso!
E sei que os problemas não se ficam por aí: ontem a Rosa contou que o Alfredo lhe tinha contado que os moços de padeiros estavam em greve. E que o governo tinha mandado o exército dar serventia às padarias!

- Bem me parecia que o pão tem andado com um gosto estranho…-- disse a minha avó, metendo o dente na terceira torrada.
- Só a revolução nos pode salvar…- murmurou o meu pai.
- Muito gosta o senhor meu genro de falar em revoluções…. — disse a minha avó—Toda a gente sabe que uma revolução é um acto condenável, que vai sempre contra a ordem, contra a religião…

(A minha avó, quando quer, também tem voz de comício, mas de comício de sacristia…)
Então o meu pai aclarou a voz e disse:

- “As revoluções não são factos que se aplaudam ou se condenem. São factos fatais. Têm de vir “
- Quem é que disse isso? Algum dos seus irmãos maçons?
- Não. Por muito que lhe custe ouvir, quem disse isto foi o Eça de Queiroz.

Com uma força inaudita, a minha avó ferrou o dente na quarta torrada. Mesmo que tivesse serradura, gesso ou cal, ela tê-la-ia trincado da mesma maneira.

«JN» de 19 Jun 10

sábado, 12 de junho de 2010

O DIA DE CAMÕES

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

DESDE QUE EU ME LEMBRO de ser gente que o dia 10 de Junho se festeja cá em casa.
Se calha a dia de semana, festeja-se mais tarde porque o meu pai tem de fechar a livraria e eu tenho de chegar do colégio.
Se calha a um domingo, festeja-se mais cedo, assim que a minha avó e a minha mãe chegam da missa.
Vamos todos até ao Chiado, bem junto da estátua, e o meu pai recorda a vida do poeta: as privações por que passou, a perda de um olho (nesse momento a minha avó murmura “ai coitadinho…”), o naufrágio (nesse momento a minha mãe murmura “ai, Dinamene!...”), e o regresso à pátria – e nesse momento eu murmuro “ cá vou eu…” porque já sei que é a altura de o meu pai apontar para as estátuas que rodeiam, cá em baixo, a figura do poeta lá no cimo, e perguntar:

- Zé Joaquim, quem são estes?

Com o treino destes anos todos, já os conheço de cor:

- Fernão Lopes, Pedro Nunes, Gomes Eanes de Zurara, João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda, Vasco Mouzinho de Quevedo…

(Neste momento faço uma ligeira pausa porque já sei que é aqui que o meu pai murmura: “completamente esquecido e tantas vezes considerado um segundo Camões…Injustiças desta vida…” – e termino:)

- …Jerónimo Corte-Real, e Francisco Sá de Meneses.

O meu pai fica feliz, e regressamos a casa, não sem antes termos passado pela livraria, para vermos a beleza da montra: um busto de Camões, e várias edições de “Os Lusíadas”, acompanhadas de edições de “A Fome de Camões”, de Gomes Leal, “Camões” de Almeida Garrett e “Camões” de António Feliciano de Castilho –livros que eu todos os anos morro de medo que o meu pai se lembre de me mandar ler. Até agora, felizmente, tenho escapado.
Depois ao jantar o meu pai recorda os grandes festejos do terceiro centenário — as luzes, o cortejo, os barcos no rio — e remata:

- Eu tinha 16 anos, e marcou-me para a vida.

Nesse momento sabemos que a evocação está terminada, e a vida volta ao normal.
O meu pai está sempre a dizer que é uma vergonha o10 de Junho não ser feriado.
(De resto, eu acho que é uma vergonha os dias todos não serem feriados, porque em todos eles deve ter acontecido qualquer coisa de extraordinário ao longo destes 1910 anos…)
E acrescenta:

- Claro que se fosse um santo tinha direito a isso e a muito mais…É ver o que acontece com o Santo António!...

Aí eu já não digo nada, porque no dia de Santo António vou sempre com a Rosa e o Alfredo aos arraiais de Alfama. Comem-se sardinhas, há muita música, e gosto de ver os tronos.
O Alfredo, que sabe muitas coisas, já me contou que este hábito de fazer os tronos e pedir uma moedinha para o santo vem de muito longe, do ano de 1755, quando um grande terramoto destruiu Lisboa. Esta foi então uma das maneiras que o povo encontrou de arranjar dinheiro para a reconstrução da cidade.
Fico a pensar que se o povo se lembrasse de fazer tronos de Santo António para arranjar dinheiro para a revolução, se calhar a República já cá estava.
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«JN» de 12 Jun 10

sábado, 5 de junho de 2010

O CENTENÁRIO DA ARGENTINA

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Por Alice Vieira


Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

POR TODA A PARTE se ouve falar da república e de conspirações. Pelo que ouço, toda a gente conspira. E toda a gente sabe que toda a gente conspira!
Acho mesmo que só o rei é que não sabe.
Um dia acorda, e tem uma grande surpresa, olá se tem.
Mas enquanto não acorda, anda nas festas do costume. Esta semana, por exemplo, festeja-se o centenário da Argentina.

A Argentina era uma colónia espanhola mas, depois de muitas lutas, conseguiu ser país independente — e republicano!
Quando penso que Portugal já é independente há quase oitocentos anos, fico espantado por haver países que são independentes há tão pouco tempo!
Segundo conta o meu pai, as coisas na Argentina andam complicadas (pelos vistos a república não resolve tudo…) e estes festejos, que têm carácter internacional, são mais para fazer esquecer o que verdadeiramente lá se passa.
Mas, apesar disso, lá fez a montra da livraria a chamar a atenção das pessoas para o acontecimento.
Só que em vez de pôr a fotografia do presidente (que passou esta semana por Lisboa, numa visita relâmpago, apenas o tempo de ir cumprimentar o rei e as rainhas ás Necessidades) pôs fotografias de heróis argentinos — e heróis, felizmente, todos os países têm.
A Argentina tem Simon Bolívar e José de San Martín.

No colégio, a propósito destas comemorações, aprendemos a sua história, as suas lutas, e como dedicaram a vida a libertar todos os povos do poder de Espanha, e saímos todos para a rua a berrar “liberdade ou morte!”
Ao lado dos retratos dos heróis o meu pai colocou ainda uma placa, onde ele próprio tinha escrito em letra desenhada, uma frase de Bolívar num dos seus primeiros discursos:

................“Juro pelo deus de meus pais
................Juro por eles
................Juro pela minha honra
................Juro pela minha pátria
................- que não darei descanso ao meu braço nem repouso à minha alma até ter conseguido quebrar as grilhetas que subjugam os nossos povos ao poder espanhol.”

Mas para não se dizer que não falava de livros — sempre era a montra de uma livraria… - colocou em lugar de destaque uma obra - “El Gaúcho Martin Fierro” e “La Volta de Martin Fierro” - de um poeta argentino chamado José Hernández.
O meu pai diz que se trata do livro mais importante da literatura argentina, que fala das lutas de gaúchos (uma espécie de cowboys) e de índios, dos combates pela terra quando começou a construção das linhas de caminho de ferro, a luta pelo domínio das pampas (uma espécie de pradaria) e contra a exploração.

- Uma espécie de “D.Quixote” — diz ele.

Eu não quero desdizê-lo mas parece-me mais uma espécie de Texas Jack-- mas com a desvantagem de ser em espanhol, em verso, e em dois volumes…
Fora isto, foi uma semana pacífica: está a decorrer o Concurso Hípico Internacional (lá vai o rei a todas as provas…), a minha mãe ainda não estreou a máquina de costura nova, e a casa toda cheira a Heno de Pravia.

«JN» de 5 Jun 10