sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

VAI SER COMPLICADO

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Por Alice Vieira

“Vai ser complicado”, diz ela.

“Não importa”, diz ele.

A porta fecha, o genérico avança, ela limpa os olhos e desliga a televisão.

Não sabe quantas vezes já viu este filme. Mesmo assim, sempre que a televisão o anuncia, lá está ela, os olhos a seguirem tudo como se fosse a primeira vez.

Para já, porque gosta de rever aquela província tão miserável do norte da Argentina, onde trabalhou durante algum tempo e onde várias cenas foram filmadas; mas sobretudo pela cena final, onde sempre se revê, mas em desfecho diferente: ela a dizer “vai ser complicado”, e Afonso a virar as costas e a desaparecer pela escada. Mais tarde havia de lhe mandar um cartão: “ desculpa, mas não tenho estruturas”. Frase que, desde então, ela usa sempre que quer brincar com alguém que se furta a qualquer coisa que ela pede:”não digas mais: não tens estruturas!”. As pessoas riem, ficou uma espécie de “private joke” para os amigos mais chegados.

Mas diante daquela cena tudo volta sempre à sua memória: o alvoroço do reencontro, os primeiros meses de paixão, uma viagem a Paris, um fim de semana no Algarve, velhas músicas que recordavam juntos, os amigos a apontá-los como prova de que os sonhos de infância acabavam por se realizar.

Onde é que já ia a infância. Se é que existira alguma vez. Naquele tempo crescia-se muito depressa, aprendia-se muito cedo a viver uma vida de adultos, os sonhos ficavam adiados para melhores dias, se os houvesse.

Os pais franziram os olhos em relação ao namoro com Afonso, um disparate, asseguravam, contando pelos dedos das mãos as namoradas que ele era suposto já ter tido e deixado. “Por que hás-de tu ser diferente?”, insistiam. Entretanto apareceu o Renato, primo afastado, e apesar de a paixão ser fraca, acabaram por casar. “Têm tudo para dar certo”, garantiam os pais – que nunca entenderam aquela súbita separação, tantos anos mais tarde.

De resto, só mesmo os amigos mais chegados o souberam: Afonso voltara, e ela largara tudo para o seguir. Sempre fora mulher de arriscar, sem olhar para trás.

Festejaram o primeiro ano de reencontro num restaurante com vista para o Tejo, com direito a uma orquídea e cartão alusivo.

No segundo ano, Afonso desculpou-se com a necessidade de uma ida urgente a Espanha tratar de negócios.

No terceiro ano, esqueceu-se.

Foi então que ela se decidiu por um quase ultimato, farta de dias e dias em que ele não aparecia nem telefonava, datas que esquecia, comemorações que falhava. Não ia ser fácil, nem para um nem para outro, mas estava certa de que tudo se havia de resolver. Não lhe garantia ele tantas vezes que sempre a amara, durante aqueles anos todos de separação?

- Vai ser complicado — disse ela, preparando-se para rebater todas as possíveis dificuldades que ele iria apresentar.

Mas Afonso não disse nada. Abriu a porta e foi-se embora.

Semanas depois ela estava na plateia de um cinema, chorando que nem uma madalena diante de um filme argentino, onde a actriz, nos segundos finais, dizia o mesmo:

- Vai ser complicado.

Com um sorriso – tem a certeza – igual ao dela.

E com a resposta que ela sempre esperara ouvir de Afonso: “não importa”.

Agora faz tudo por esquecer. Mas, de cada vez que o filme se anuncia, tudo volta ao mesmo, as lágrimas, as saudades, os sonhos perdidos.

Só tem pena que a vida não seja um filme, com o genérico no final, para se perceber quem fez o quê.
«Activa» de Janeiro 2012