sexta-feira, 15 de junho de 2012

Mário Castrim

Por Alice Vieira 
AMIGOS 
Mário Castrim morreu há dez anos. Lembrando a data, a Editora Caminho vai apresentar dois dos seus livros –a reedição de “ESTAS SÃO AS LETRAS” e “VIAGENS NA CASA” – no próximo dia 20 deste mês de Junho, às 18h30m, na Livraria Bucholz.
A apresentação será feita pelo escritor António Carlos Cortez, e haverá amigos que irão recordá-lo.
Gostaríamos que fosse um encontro festivo e que, tanto os que foram seus amigos, como os que já não o conheceram, nos acompanhassem. Esperamos por todos (e não, não há jogo de futebol nesse dia…)

sábado, 9 de junho de 2012

FICA…FICA…FICA…


Por Alice Vieira

AQUILO andava a matraquear-lhe na cabeça, dias e noites a fio, ela nem acreditava nessas coisas de sonhos e presságios, e mais não sei o quê, mas a verdade é que tinha de haver qualquer razão, não podia ser por acaso que uma pessoa, de repente, desatava a recordar um filme visto há mais de 50 anos, nem sequer um grande filme, nada de “ we’ll always have Paris” ou “you can whistle, can you?”, nem sequer “me tarzan, you jane”, filme anódino de que nem recordava o título.
Até tinha ligado ao Francisco a perguntar que filme seria, mas ele não lhe deu grande ajuda, preocupado em arranjar verbas para o novo projeto.
A bem dizer, ela não se recordava de nada. Nem dos atores, nem da história. Nada de nada, a não ser aquela cena (seria no princípio da história? Seria no fim?) e aquela palavra, continuamente repetida: “fica, fica, fica!”.
Vê a cena nitidamente, e a preto e branco. A mesa da cozinha, os pais, os três filhos, e o que estava para ser adotado. Lembra-se que era um miúdo muito complicado, muito difícil de aturar, e muito doente (que doença é que não recordava, mas andava de muletas), e aquela era a altura em que se ia decidir se ele ficaria a viver com eles ou não. Havia um jarro para onde cada um tinha deitado um papelinho com o seu ”voto” : “stay” (fica) ou “go” (vai). Depois, um deles (já não recorda qual),entregou a jarra ao miúdo, para que ele desdobrasse os papelinhos e lesse a sentença.
O miúdo olha para os papelinhos mas não reage.
“Só sei ler termómetros”, murmura.
Então, sem qualquer troca de palavras, sem sequer uma troca de olhares, uma das outras crianças faz o trabalho. Pega nos papelinhos e vai lendo em voz alta, à medida que os desdobra, “stay…stay…stay…” – enquanto a câmara foca o que realmente está escrito em todos: “go…go… go..”
Lembra-se de ter chorado que nem uma madalena a ver aquilo. Quase tanto como com a morte da mãe do Bambi.
Mas agora já não é criança, e não entende por que, de repente, aquilo não lhe sai da cabeça.
Foi então que ele ligou.
Ela teve dificuldade em conhecer-lhe a voz, mas de repente lembrou-se de que o Sporting tinha ganho, e ele devia estar em casa de amigos a festejar, e já devia ter bebido um pouco mais, como sempre fazia, no tempo em que ainda viviam juntos.
“Se eu tivesse vergonha na cara nem lhe respondia”, pensou, mas a verdade é que lhe respondeu, como se nada se tivesse passado naqueles anos todos em que ele não dera sinal de vida.
E ele, com a voz doce que o álcool sempre lhe dava, a dizer coisas parvas, a perguntar por amigos de há anos, e ela só a ver a cena do filme, e a repetir “vai…vai…vai…”,mas lá bem dentro dela a vontade de dizer “ fica…fica…fica…” , e ele nem merecia nem nada, não era doentinho nem andava de muletas nem ia ser adotado.
Mas pela janela vinha o cheiro das laranjeiras do quintal, e era verão, e o mundo estava todo lá fora.
Acabaram por combinar um jantar lá em casa ( “fica…fica…fica…”) para dali a dias.
Deu consigo a rir que nem uma doida e, depois dos beijinhos da praxe e do “ligo amanhã”, tinha tantas saudades tuas”, desliga, abre o computador e manda um mail ao Francisco:
“ainda está de pé o convite para escrever a tal telenovela?”
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In “Activa”, Junho 2012

sábado, 2 de junho de 2012

O CHEIRO DO JASMIM


Por Alice Vieira
 
ERA SEMPRE a mesma coisa, estava pior que os cãezinhos de Pavlov, e já tinha tido mais que tempo de se esquecer de tudo isso.
Toda a gente morta há já um ror de anos, e ela sempre a lembrar-se do mesmo.
A rapariga a deitar-lhe o chá na chávena e ela, mesmo sem querer, a recusar, “não, jasmim não!”
É por isso que lá em casa as pessoas dizem que ela é alérgica ao jasmim, coisa que a nora, vegetariana de nascença, não entende e, nos primeiros anos de pertencer à família, ainda protestava “ nunca vi ninguém alérgico ao jasmim!”.Como ninguém nunca lhe respondeu, acabou por desistir. Mas, ao fim destes anos todos, ainda a olha com desconfiança, e abana a cabeça de cada vez que entram num restaurante chinês e ela recusa o chá.
Alergia. Claro. Que outra explicação poderia dar que os outros aceitassem sem lhe chamarem doida?
Mas sabe que nunca poderá esquecer aqueles enormes dias de verão, a voz cantada de Joaquina (Quininha, era assim que elas todas chamavam àquela tia mais nova, naquele tempo em que as meninas usavam diminutivos e laços na cabeça), eles todos na esplanada diante da praia, à espera de se irem vestir para o jantar.
Era também no tempo em que as meninas acompanhavam a família nos hotéis de verão e tinham de se vestir a preceito para o jantar.
E pôr novas fitas no cabelo.
Dia e noite o ar tinha sempre o mesmo cheiro.
Cheiro a jasmim, explicava Quininha.
Um cheiro que rebentava de todos os jardins, que entrava nas pessoas, que se entranhava na roupa, que se misturava com as gargalhadas de quem acreditava que era impossível envelhecer um dia.
Quininha dizia então:
“O jasmim é que é o culpado das desgraças que por aí acontecem.”
Ela era muito pequena e não percebia por que é que a tia dizia aquilo, e por que é que as irmãs mais velhas desatavam a rir. Desgraças eram desgraças, e na catequese estavam sempre a repetir que Deus castiga quem se ri das desgraças dos outros.
Quininha sorria e continuava na dela:
“Este cheiro a jasmim é o diabo…Quando entra em nós, já não podemos fazer nada...”
Uma vez ela olhou para a tia tão fixamente que esta achou-se na obrigação de explicar melhor, tia é tia.
“ Nunca te chegues perto, Joaninha! Nunca! O cheiro do jasmim é veneno!”
“Veneno dos que fazem muito mal?”
“Veneno dos que matam”.
E as irmãs riam, riam, e caíam as fitas do cabelo, e a mãe fingia que não ouvia, e a avó, tentando disfarçar um sorriso, olhava para Quininha e murmurava:
“ Ai, rapariga, não tens mesmo juízo nenhum…”
Depois passaram muitos anos, as pessoas foram descobrindo que afinal se envelhecia, que o mundo não era já aquele imenso jardim de verão diante do mar, com o cheio a jasmim a prolongar a felicidade.
As pessoas foram morrendo, outras nascendo. E ela, instintivamente, recuando sempre, quando se falava em jasmim.
Como os cãezinhos de Pavlov.
 Um dia, no verão, disse para a filha:
“O jasmim é que é o culpado de muitas desgraças que acontecem!”
Mas os tempos (e as filhas) eram diferentes. E Elsa respondera que a comunicação social, essa sim, essa é que era a culpada de toda as desgraças.
Nunca mais falou em jasmim.
A não ser para dizer que é alérgica, quando tentam encher-lhe a chávena de chá.
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 In “Activa”, Maio 2012