Por Alice
Vieira
HOJE, pela
primeira vez na minha vida, sinto-me velha.
Tenho o
telemóvel na mão e estou há horas a olhar para ele sem saber o que fazer. Acabo
por largá-lo, aqueles para quem eu queria ligar já não me vão atender – e, para
além deles, já não há mais ninguém capaz de entender a minha não sei se fúria,
não sei se raiva, não sei se impotência. A minha — isso sei — grande tristeza.
Dói-me esta
perda de memória que vai atacando a nossa sociedade a um ritmo cada vez mais
vertiginoso.
Acabo de
chegar da Escola Francisco Arruda, onde acho que já não entrava há mais de 40
anos. Ótimas instalações, tudo a cheirar a novo.
A escola
Francisco Arruda foi o “sonho” de um homem chamado Calvet de Magalhães, um dos
maiores pedagogos deste país que, nesses anos 50 da sua fundação, a transformou
num oásis de educação e de cultura. Pioneiro de muitas causas (a integração de
alunos deficientes foi uma das suas grandes lutas), foi sobretudo um animador
cultural num tempo onde o desânimo imperava. A escola estava então rodeada de
bairros de lata e, todos os sábados, ele abria as portas a toda a comunidade. E
havia exibição de filmes, palestras, ateliers de olaria, histórias contadas aos
miúdos, etc. Era uma maravilha ver aquela escola cheia de gente, que a
considerava sua.
Hoje isso
pode parecer habitual, naquele tempo não era.
O Prof.Calvet
foi ainda fundador da Associação Portuguesa para a Educação pela Arte, que
durante anos manteve uma atividade regular, destacando-se a publicação de uma
coleção de histórias infantis, sempre ilustradas pelos meninos da Francisco
Arruda. E aí se integrava a organização de um concurso, a nível nacional,
chamado “O Natal Visto pelas Crianças”, a que o Diário de Lisboa se associava.
É aí que eu
entro — a fazer a ligação entre as reuniões do júri, e a publicação dos textos
nas páginas do jornal.
É difícil entender
hoje a importância desse concurso. Para já, o júri era de peso: para além do
Prof. Calvet, como organizador, José Gomes Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Maria
Lúcia Namorado, Alice Gomes, Rocha de Sousa, António Domingues. E eu, na
verdura dos meus 18 anos, a ouvi-los, a aprender com eles, a rir muito com
eles. Vinham caixotes de textos do país inteiro, as reuniões eram
prolongadíssimas e duravam muitos dias — mas eram sempre uma festa. Lia-se cada
texto como se fosse candidato ao Prémio Nobel — e quando se chegava àquela
altura dramática dos 11 anos, em que os meninos já estão formatados pela escola
e dizem todos os mesmos lugares- comuns e era difícil encontrar um melhor que
outro, a voz do Zé Gomes:”ó Matilde, leia lá em voz alta que, na sua voz, tudo
é uma maraviha!”
Depois um
dia, de repente, o prof. Calvet de Magalhães diz-me:”no sábado vais ler
histórias aos miúdos lá na minha escola.” Pensei que estava a brincar comigo,
eu nunca tinha escrito uma história na minha vida, nem me lembrava de alguma
vez ter contado histórias fosse a quem fosse. Ri-me, fiz-me desentendida, mas
ele: ”sábado de manhã, não faltes!”
E lá fui.
Sei que escrevi uma história mas não me lembro de mais nada, a não ser de me
ver diante de um ginásio a transbordar de gente, e eu num palco, em frente de
um microfone a tentar ler o que levava escrito numas folhas de papel.
Lembro-me
que levava um vestido cor de laranja. Lembro-me de ter ouvido muitas palmas. E
lembro-me do Prof. Calvet a dizer: ”para a semana cá te espero”.
Foram as
primeiras histórias que escrevi, para muitos daqueles sábados de festa, que se
prolongaram por muitos anos.
O Prof.
Calvet foi diretor da Francisco Arruda até à sua morte: na turbulência da
revolução, quando começou de repente a ver a “sua” escola transformada, e no ar
a ameaça de deixar de ser seu diretor, não aguentou e suicidou-se.
O Pror.
Calvet de Magalhães faria em Março cem anos.
E eu sempre
pensei que, no seu centenário, o país lhe fizesse a homenagem que ele merece.
Mas Março passou — e nada aconteceu.
Então pensei
que possivelmente a Escola se teria encarregado disso.
Mas a Escola
nem sequer tem uma placa com o seu nome em lado algum. Nem o seu nome foi dado,
como seria de toda a justiça, à biblioteca. Entra-se ali e é como se ele nunca
tivesse existido.
E eu chego a
casa a pensar nesta falta de memória coletiva — e pego no telemóvel para dizer
à Matilde, ao Zé Gomes, à Maria Lúcia, à Natércia Rocha, ao Mário, à Maria do
Sameiro, “vocês já viram que ninguém se lembrou do centenário do Prof. Calvet?”,
mas não digo, porque já todos morreram, e eu fico, entre as paredes da minha
sala, sem saber com quem partilhar raivas e mágoas. E sem saber o que fazer no
meio deste silêncio vergonhoso.
«Senior» de 18 Jul 13