sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

EUROPEUS, QUE BOM!

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Por Alice Vieira

DESCULPEM LÁ mas eu, se fosse americana, tinha-me sentido muito ofendida por um cão me ter desejado bom ano.
De certeza que toda a gente viu na televisão, passou em todos os canais, com direito a repetições: Barak Obama e a mulher, em duo natalício, mandavam os seus votos de Boas Festas a todo o povo americano. Em nome de ambos,”e também de Malia, e de Sasha” — e vai a Sra. Obama, sorridente, e acrescenta: “e de Bo!” O que o marido reafirma, evidentemente : “e de Bo!”
Bo é o cão da família Obama. Cão de Água português, como toda a gente sabe, o que faz com que tenhamos um infiltrado na Casa Branca.
Mas nem o meu mais acérrimo patriotismo aceita que um cão me deseje Boas Festas. Era só o que mais faltava.
Eu até gosto do casal, palavra!, e só não votei nele porque não pude, mas festejei a vitória cá em casa com um grupo de amigos, champanhe, e tudo aquilo a que a alegria tem direito.
E eu até percebo que os 48% de popularidade não sejam de molde a deixá-lo muito tranquilo, e que portanto há que recorrer a todas as estratégias de marketing para recuperar quem se perdeu.
Mas há limites.
Imaginem que o presidente Cavaco Silva, na mensagem de Ano Novo, exprimia os seus votos em dueto com a mulher, trazendo à liça a família toda, “e também em nome do Bruno e da Patrícia e da Mariana, e do Afonso…”, etc, etc, etc - que o nosso presidente, em número de familiares, leva a palma ao americano.
Já imaginaram? E olhem que eu não incluí cão nem gato nem passarinho nem tartaruga, que não sei se existe lá por casa.
Já pensaram nas reacções? Na risota? Nas anedotas do dia seguinte?
Não há dúvida: ter quase 900 anos de história em cima dos ombros é bem diferente do que ter pouco mais de 200.
Deixem-me ser elitista: ser europeu (está bem, somos velhos; está bem, estamos gastos) ainda é uma coisa muito bonita!
E bom ano para todos!
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«JN» de 31 Dez 10

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

QUANDO ELES NOS DEIXAM

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Por Alice Vieira

ENTRO na sala, e é como se tudo faltasse só porque ele falta.
Desde ontem que ando para aqui sem saber o que fazer, abro portas, fecho portas, olho em volta, como se isso chegasse para o fazer voltar a casa.
Foi a primeira vez que passou a noite fora.
E sem aviso.
Ligo às amigas, na tentativa de um consolo, de uma palavra de conforto. Para isso é que se inventaram as amigas.
Nada feito.
Riem-se de mim. Deve ser a isto que se chama “solidariedade feminina”.
“Cinco anos, dizes tu? Aguentou cinco anos? Meu Deus, mas isso é uma eternidade! O meu não aguentou nem dois!
“E o meu? Ao fim de um ano, adeuzinho!”
Estremeço.
Nem me passa pela cabeça que ele não vai voltar.
Elas voltam a rir.
“Até pode ser que volte, não digo que não, mas vais ver, nunca mais te entendes com ele…Vem mudado, com uma linguagem diferente… “
Desligo o telefone.
A minha filha também não me ajuda:
“Ó mãe, não penses mais nisso, procura mas é um novo…
“Tu não me digas uma coisa dessas! Ele vai voltar”
“Isso é o que dizem todos”
Tento ocupar o tempo — mas sem ele é impossível.
Sem ele não consigo ouvir música.
Nem ler um jornal.
Nem partilhar histórias.
De cada vez que olhava para ele, tinha a certeza de que havia de viver o resto da minha vida ao seu lado.
A minha filha ria-se, porque esta tinha sido uma relação assumida muito tarde.
“Quem te viu e quem te vê… - murmurava ela — “Ao princípio, quando toda a gente te falava nele, zangavas-te, juravas que nunca iria entrar na tua vida…E agora…”
E agora — oh felicidade! — ouço a campainha da porta, é ele que volta, eu tinha a certeza.
Reconheço-o imediatamente, ainda antes de abrir a porta do elevador, e a minha vida volta a ter razão de ser, enquanto oiço a voz do homem que me diz:
“Prontinho, aí o tem de volta, formatei-lhe o software, instalei-lhe mais uns programas, mais um anti-vírus profissional, e está com três gigas. Com as deslocações, são 170 euros, mais IVA.”
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«JN» de 17 Dez 10

domingo, 5 de dezembro de 2010

RECORDANDO CARLOS DE OLIVEIRA

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Por Alice Vieira

QUANDO CHEGA Dezembro, começamos a notar que à mesa familiar falta cada vez mais gente.
“Mesa familiar” é, no fundo, a metáfora que usamos para nesta altura abraçarmos um pouco mais os amigos, e ficarmos felizes só pelo facto de eles estarem ao nosso lado.
Mas ao nosso lado vai havendo cada vez mais lugares vagos.
A minha mesa familiar ainda não se habituou às ausências do João Aguiar, da Rosa Lobato de Faria, da Matilde Rosa Araújo, do Raul Solnado, da Mariana Rey Monteiro, todos eles ainda tão dentro de mim.
Mas, de repente, chega-me uma terrível e inesperada saudade de alguém que há muitos anos desapareceu da minha mesa.
Tudo por causa de um programa que a RTP-2 passou, dedicado aos “Grande Livros”.
Naquela noite, o livro era “Uma Abelha na Chuva”, do Carlos de Oliveira.
É um grande romance da nossa literatura, e foi bom recordarmos as imagens do filme do Fernando Lopes, e ouvir falar dele (a Laura Soveral e a sua voz incomparável…)
Mas o que sobretudo me marcou foi o rosto do Carlos de Oliveira — aquele olhar que entrava dentro de nós e nos dizia tudo o que era preciso, aquele sorriso que me recebia sempre, quando eu chegava à sua mesa do “Monte Carlo”.
Ele e o Zé Gomes Ferreira — sempre. Depois às vezes por lá caíam o Abelaira, o Mário Dionísio, tantos outros.
Mas o Carlos e o Zé Gomes eram a minha âncora. E foram a minha verdadeira universidade. Eu, vinte e poucos anos, deslumbrada no convívio diário com gente que nunca pensara vir a conhecer.
E, de repente, quando a revolução de Abril dava os seus primeiros passos, o Carlos de Oliveira morre. De um dia para o outro.
Nunca perdoei ao destino, e acho que aquela geração mais nova que privou com ele nunca mais se recompôs.
Fosse o que fosse que fizéssemos ou escrevêssemos, pensávamos sempre: “o que é o Carlos dirá disto”.
Ele era o rigor, a coerência, a lucidez em estado puro.
Ele era a nossa consciência moral.
Nunca mais tivemos outra.
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«JN» de 3 Dez 10