sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

EUROPEUS, QUE BOM!

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Por Alice Vieira

DESCULPEM LÁ mas eu, se fosse americana, tinha-me sentido muito ofendida por um cão me ter desejado bom ano.
De certeza que toda a gente viu na televisão, passou em todos os canais, com direito a repetições: Barak Obama e a mulher, em duo natalício, mandavam os seus votos de Boas Festas a todo o povo americano. Em nome de ambos,”e também de Malia, e de Sasha” — e vai a Sra. Obama, sorridente, e acrescenta: “e de Bo!” O que o marido reafirma, evidentemente : “e de Bo!”
Bo é o cão da família Obama. Cão de Água português, como toda a gente sabe, o que faz com que tenhamos um infiltrado na Casa Branca.
Mas nem o meu mais acérrimo patriotismo aceita que um cão me deseje Boas Festas. Era só o que mais faltava.
Eu até gosto do casal, palavra!, e só não votei nele porque não pude, mas festejei a vitória cá em casa com um grupo de amigos, champanhe, e tudo aquilo a que a alegria tem direito.
E eu até percebo que os 48% de popularidade não sejam de molde a deixá-lo muito tranquilo, e que portanto há que recorrer a todas as estratégias de marketing para recuperar quem se perdeu.
Mas há limites.
Imaginem que o presidente Cavaco Silva, na mensagem de Ano Novo, exprimia os seus votos em dueto com a mulher, trazendo à liça a família toda, “e também em nome do Bruno e da Patrícia e da Mariana, e do Afonso…”, etc, etc, etc - que o nosso presidente, em número de familiares, leva a palma ao americano.
Já imaginaram? E olhem que eu não incluí cão nem gato nem passarinho nem tartaruga, que não sei se existe lá por casa.
Já pensaram nas reacções? Na risota? Nas anedotas do dia seguinte?
Não há dúvida: ter quase 900 anos de história em cima dos ombros é bem diferente do que ter pouco mais de 200.
Deixem-me ser elitista: ser europeu (está bem, somos velhos; está bem, estamos gastos) ainda é uma coisa muito bonita!
E bom ano para todos!
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«JN» de 31 Dez 10

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

QUANDO ELES NOS DEIXAM

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Por Alice Vieira

ENTRO na sala, e é como se tudo faltasse só porque ele falta.
Desde ontem que ando para aqui sem saber o que fazer, abro portas, fecho portas, olho em volta, como se isso chegasse para o fazer voltar a casa.
Foi a primeira vez que passou a noite fora.
E sem aviso.
Ligo às amigas, na tentativa de um consolo, de uma palavra de conforto. Para isso é que se inventaram as amigas.
Nada feito.
Riem-se de mim. Deve ser a isto que se chama “solidariedade feminina”.
“Cinco anos, dizes tu? Aguentou cinco anos? Meu Deus, mas isso é uma eternidade! O meu não aguentou nem dois!
“E o meu? Ao fim de um ano, adeuzinho!”
Estremeço.
Nem me passa pela cabeça que ele não vai voltar.
Elas voltam a rir.
“Até pode ser que volte, não digo que não, mas vais ver, nunca mais te entendes com ele…Vem mudado, com uma linguagem diferente… “
Desligo o telefone.
A minha filha também não me ajuda:
“Ó mãe, não penses mais nisso, procura mas é um novo…
“Tu não me digas uma coisa dessas! Ele vai voltar”
“Isso é o que dizem todos”
Tento ocupar o tempo — mas sem ele é impossível.
Sem ele não consigo ouvir música.
Nem ler um jornal.
Nem partilhar histórias.
De cada vez que olhava para ele, tinha a certeza de que havia de viver o resto da minha vida ao seu lado.
A minha filha ria-se, porque esta tinha sido uma relação assumida muito tarde.
“Quem te viu e quem te vê… - murmurava ela — “Ao princípio, quando toda a gente te falava nele, zangavas-te, juravas que nunca iria entrar na tua vida…E agora…”
E agora — oh felicidade! — ouço a campainha da porta, é ele que volta, eu tinha a certeza.
Reconheço-o imediatamente, ainda antes de abrir a porta do elevador, e a minha vida volta a ter razão de ser, enquanto oiço a voz do homem que me diz:
“Prontinho, aí o tem de volta, formatei-lhe o software, instalei-lhe mais uns programas, mais um anti-vírus profissional, e está com três gigas. Com as deslocações, são 170 euros, mais IVA.”
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«JN» de 17 Dez 10

domingo, 5 de dezembro de 2010

RECORDANDO CARLOS DE OLIVEIRA

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Por Alice Vieira

QUANDO CHEGA Dezembro, começamos a notar que à mesa familiar falta cada vez mais gente.
“Mesa familiar” é, no fundo, a metáfora que usamos para nesta altura abraçarmos um pouco mais os amigos, e ficarmos felizes só pelo facto de eles estarem ao nosso lado.
Mas ao nosso lado vai havendo cada vez mais lugares vagos.
A minha mesa familiar ainda não se habituou às ausências do João Aguiar, da Rosa Lobato de Faria, da Matilde Rosa Araújo, do Raul Solnado, da Mariana Rey Monteiro, todos eles ainda tão dentro de mim.
Mas, de repente, chega-me uma terrível e inesperada saudade de alguém que há muitos anos desapareceu da minha mesa.
Tudo por causa de um programa que a RTP-2 passou, dedicado aos “Grande Livros”.
Naquela noite, o livro era “Uma Abelha na Chuva”, do Carlos de Oliveira.
É um grande romance da nossa literatura, e foi bom recordarmos as imagens do filme do Fernando Lopes, e ouvir falar dele (a Laura Soveral e a sua voz incomparável…)
Mas o que sobretudo me marcou foi o rosto do Carlos de Oliveira — aquele olhar que entrava dentro de nós e nos dizia tudo o que era preciso, aquele sorriso que me recebia sempre, quando eu chegava à sua mesa do “Monte Carlo”.
Ele e o Zé Gomes Ferreira — sempre. Depois às vezes por lá caíam o Abelaira, o Mário Dionísio, tantos outros.
Mas o Carlos e o Zé Gomes eram a minha âncora. E foram a minha verdadeira universidade. Eu, vinte e poucos anos, deslumbrada no convívio diário com gente que nunca pensara vir a conhecer.
E, de repente, quando a revolução de Abril dava os seus primeiros passos, o Carlos de Oliveira morre. De um dia para o outro.
Nunca perdoei ao destino, e acho que aquela geração mais nova que privou com ele nunca mais se recompôs.
Fosse o que fosse que fizéssemos ou escrevêssemos, pensávamos sempre: “o que é o Carlos dirá disto”.
Ele era o rigor, a coerência, a lucidez em estado puro.
Ele era a nossa consciência moral.
Nunca mais tivemos outra.
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«JN» de 3 Dez 10

sábado, 20 de novembro de 2010

DENUNCIANTES

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Por Alice Vieira

OS JORNAIS anunciaram que, a partir de agora, é oficialmente reconhecida a nobre profissão de denunciante.

Já tardava, é um facto. Mas pronto, antes tarde que nunca.

Todos sabemos como a nobre arte da denúncia tem sólidas raízes entre nós.

No tempo do Senhor D. João III (e nos tempos que depois se seguiram…) muitos foram os que acabaram nas fogueiras da inquisição, denunciados por vizinhos, familiares ou amigos, prontos a jurar que os tinham visto, por exemplo, “ a ter comércio com o demónio”, ou a “apartar-se da nossa santa fé católica, passando-se à lei de Moisés, vestindo camisas lavadas aos sábados, e jejuando às 2ª e 5ª, e não comendo carne de porco”.

Sabe-se como a nossa santa fé lhes ficou eternamente grata.

Muito mais tarde, nos saudosos tempos do Estado Novo, a nobre arte da denúncia foi de novo reinstaurada. Uma legião de impolutos cidadãos, amantíssimos esposos e extremosos pais de família, encarregava-se de escrever cartas denunciando vizinhos, colegas de trabalho, familiares, amigos, ou vagamente conhecidos, jurando que os tinham ouvido falar contra a ordem estabelecida, denegrindo a figura do Sr. Presidente do Conselho, ou pondo em causa a nossa patriótica presença em África, ou ouvindo rádios a soldo de potências inimigas estrangeiras, ou acolhendo gente suspeita em suas casas pela calada da noite. Assim o juravam e assinavam, a bem da nação.

Sabe-se como a nação lhes ficou eternamente grata.

Como se vê, está-nos na massa do sangue.

Agora, se alguém suspeitar de corrupção — as autoridades ordenam que se denuncie imediatamente.

Com a net é uma limpeza, pena ela não existir nos tempos do Senhor D.João III ou do Sr. Dr. Oliveira Salazar, bom jeito tinha dado.

Claro que há uma triagem — dizem.

Claro que há uma investigação — dizem.

Claro que os tempos são outros — dizem

Mas os denunciantes, lá no fundo, nunca mudam.
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«JN» de 19 Nov 10

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Convite para lançamento de livro

Por Alice Vieira

18 Nov 10 / 18h30m
El Corte Inglés de Lisboa (piso 7)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

OS MORTOS DE NOVEMBRO

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Por Alice Vieira

OS MORTOS, claro!, os mortos de Novembro! os intermináveis mortos de Novembro — e ela de vermelho.
Podia ter escolhido outra cor, digamos, menos agressiva, menos “espampanante”, diria a mãe...
Adora a palavra “espampanante”, lembra-lhe champanhe a transbordar da flûte.
Meu Deus, os mortos de Novembro, e ela de vermelho e a pensar em champanhe.
Teresa a chamar por ela, a esperar por ela, a mandar-lhe SMS atrás de SMS, “tou cá em baixo”, “desces ou subo?”, “tás muito atrasada?”, e ela de telemóvel na mão sem saber o que responder, porque só tem olhos para o vestido vermelho, logo hoje, por que raio se esqueceu que era novembro, data marcada para pensar nos mortos, única altura em que a irmã se lembrava deles.
Com a morte da mãe (que se fizera enterrar na aldeia natal, a centenas de quilómetros dali) chegara a pensar que tudo isso tinha terminado.
Mas já devia saber que Teresa era igual à mãe.
Vêm-lhe subitamente à cabeça os Dias dos Mortos da sua infância, em que a mãe os levava a todos ao cemitério.
A mãe dizia sempre “Dia dos Fiéis Defuntos”.
Um dia ela perguntou-lhe se havia defuntos infiéis (na escola falavam muito dos “infiéis” com quem D.Afonso Henriques andava sempre à espadeirada), e a mãe deu-lhe um estalo com tanta força que os dedos lhe ficaram marcados na cara durante uma semana. A mãe sempre tivera uma maneira muito própria de responder a perguntas difíceis.
Iam sempre na véspera, porque na véspera é que era feriado e a mãe não trabalhava. Sentava-os em minúsculos banquinhos portáteis, contava-lhes rapidamente a história dos que ali estavam (e que, com o andar dos anos, já todos sabiam de cor) — enquanto tirava do saco um frasco de detergente e se punha a esfregar o mármore das campas, como se não houvesse amanhã.
“O Sr. Salvador está cada vez mais desleixado…” — ouviam-na murmurar.
O Sr. Salvador era o coveiro e quem ali tratava de tudo.
E todos olhavam uns para os outros e riam à socapa, para que a mãe não ouvisse, porque achavam muita graça à ideia de alguém, chamado Salvador, tratar de quem já não tinha salvação possível.
Todos, menos Teresa, evidentemente. Muito direita no banco, e muito séria, Teresa estava ali para sofrer, honestamente, por todos.
Às vezes a mãe até lhe pedia ajuda: “Teresinha, toma o esfregão e limpa aí esse lixo ao pé da “saudade eterna” da placa do tio João Martins”
E a Teresa que, tal como os outros, nem sabia quem tinha sido o tio João Martins, desatava a esfregar, rivalizando com a mãe em suor e dedicação.
Uma vez por ano, na véspera do Dia dos Mortos, Teresa tinha pena dos mortos da família — mesmo que nunca os tivesse visto em vida.
Mesmo que a mãe já não dominasse as suas vidas.
“Amanhã venho buscar-te ao meio-dia”, tinha-lhe dito, num rápido telefonema.
E ela pensara que, num súbito (embora estranho) ataque de saudades, a irmã mais velha quisesse passar o feriado com ela.
Nem se lembrou de perguntar “para quê?”
Ficou contente, até se vestiu de vermelho.
Agora, de repente, tão despropositado.
Faz um esforço para recordar onde estão enterrados os seus mortos, aqueles de que verdadeiramente sente a falta, aqueles cujas campas nunca conheceram as fúrias salvadoras da mãe e da irmã.
E sorri a pensar neles todos, e em como todos eles, à sua maneira, tinham dado sentido à sua vida, e era como se ainda ouvisse as suas palavras, como se ainda sentisse o calor das suas mãos, a alegria das suas gargalhadas.
Novo SMS: “então?”
“Já desço” - responde.
Pega na carteira, fecha a porta, entra no elevador.
Enquanto Teresa estiver a chorar pelos mortos desconhecidos, ela irá em busca dos que lhe pertencem.
Dos que a fizeram feliz.
Dos que merecem o seu vestido vermelho.
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«ACTIVA» de Nov 2010

sábado, 6 de novembro de 2010

A SALA DOS PROFESSORES

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Por Alice Vieira

EU SEI QUE, hoje, ser professor é profissão de risco.
De resto, qualquer profissão, hoje, é de risco — quanto mais não seja o risco de ir para a rua em dois segundos.
Mas aquele letreiro, à entrada da sala dos professores, chamou a minha atenção.
“É expressamente proibido os alunos incomodarem os professores durante os intervalos.”
Se calhar foi aquele “expressamente proibido”, se calhar foi aquele “incomodarem”, não sei, alguma coisa naquela frase me projectou de repente aos meus 20 anos, quando trabalhei com o prof. Calvet de Magalhães — um dos grandes pedagogos que este país conheceu — que nunca fechava a porta do seu gabinete.
A Escola Francisco Arruda, de que era director, foi um modelo único de experimentação de metodologias, de integração na comunidade, de educação pela arte.
A Francisco Arruda tinha laboratórios, oficinas, biblioteca, anfiteatro, ginásio (até um infantário para filhos de professores e funcionários, carinhosamente conhecido por “Chiquinha”)
E, aos sábados, abria as portas de par em par—e enchia-se de miúdos dos bairros da lata que então envolviam a escola, e que sabiam que naquele dia tinham ali à sua disposição gente que lhes contava histórias, ou artesãos que lhes explicavam ao vivo os seus ofícios, ou música, ou ateliers de modelagem, ou xadrez.
Os sábados eram uma festa.
Foi no “Diário de Lisboa” que conheci o prof. Calvet de Magalhães, a organizar “O Natal Visto pelas Crianças” — um concurso destinado a todas as escolas do país, com uma aceitação que se traduzia em caixotes e caixotes de trabalhos que as escolas mandavam. À sua volta reunia um júri de peso nas artes e na literatura: José Gomes Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Alice Gomes, Rocha de Sousa, António Domingues.
Eu estava então a iniciar-me na aventura do jornalismo, dando apoio àquelas pessoas, que para mim, até então, só viviam nos livros…
E um dia, de repente, o Prof. Calvet de Magalhães disse-me: “no sábado, vais ler histórias aos miúdos da minha escola”
Passei aquela semana em pânico, ora escolhia uma história, ora escolhia outra (estava tão longe de um dia vir a escrevê-las!) e, por muitos anos que eu viva, nunca esquecerei aquela sensação de me ver em cima de um palco diante de um salão enorme a rebentar pelas costuras da malta da pesada…
Mas aguentei-me.
E, sábado sim sábado não, lá estava eu na minha nova actividade…
Foi nesses anos que aprendi o que era verdadeiramente ser professor. A dedicação, a disponibilidade permanente, (“a porta do meu gabinete está sempre aberta, porque nunca sabemos quando um miúdo precisa de nós”), o gosto pelo trabalho que se faz, até o sentido de humor: havia uma sineta, à entrada da escola, com a inscrição: “Quando o progresso falhar, lembrem-se de mim”
Lembrei-me de tudo naquele dia, ao ler o aviso na porta da sala dos professores.
E tive muitas saudades do Prof. Calvet de Magalhães.
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«JN» de 6 Nov 10

sábado, 30 de outubro de 2010

SAUDADES DA NÈLITA

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Por Alice Vieira

Por que nos lembramos de umas pessoas e esquecemos outras? O que leva a nossa memória a ser selectiva? Seja o que for, ela terá as suas razões.

AS VELHAS DA CASA sempre lhe tinham tentado ensinar que era na primavera que se faziam as limpezas, mas ela nunca tivera essa obsessão primaveril pelo aspirador, pela esfregona ou pelo pano do pó. E se havia altura em que (vagamente) lhe apetecia dar uma arrumadela na casa, era sempre em Outubro.

Porque, para ela, era então que o ano começava. E que as coisas velhas e sem préstimo se deitavam fora. E se trocava a posição dos móveis. E se mudavam as fotografias das molduras.
Nunca se tinha conseguido libertar daquilo a que o marido chamava “a síndroma do antigamente-a-escola-era-risonha-e-franca”, ou seja, é em outubro que as aulas começam, que se abre uma vida nova, que se escolhem os cadernos, que se forram os livros, que se baixa a bainha das batas.

Tantos anos depois – quando já ninguém sabe como se forra um livro e para que é que isso serve, ou que raio de coisa é uma bata — na sua cabeça tudo continua igual.

Era em Outubro que o ano começava. Ela chegava dos três meses espalhados pela praia, pelo campo, pelas termas, a morrer de saudades das colegas e dos amigos do bairro (nessa altura nem sonhava que iria casar com um deles) apesar de, naqueles meses, terem trocado entre si muitos postais e cartas.

Por isso não pode deixar de sentir um leve aperto no estômago — “como o tempo passa!” - quando, pelo meio da papelada que rasga, lhe caem no colo uma série de postais antigos.

Todos enviados entre Agosto e Setembro de 1956, de Viana do Castelo, pela Nèlita.

Com diversas variantes de “camponesas em trajo de trabalho”, e de “motivos regionais” (o que vinha a dar no mesmo, ou seja, moçoilas vestidas à moda do Minho dos pés à cabeça, à frente de carros de bois e de rebanhos.)

Dá voltas à cabeça — e não consegue lembrar-se de nenhuma Nèlita mas, pelos postais, vê-se que devia ser amiga íntima, possivelmente lá do bairro, porque pergunta pela família inteira ,e sabe o nome de cada uma das velhas, e num deles até lhe dá os parabéns pelo exame de solfejo no Conservatório, ao mesmo tempo que a informa de que “o primo da Zulmira entrou para o Colégio Militar”, enquanto noutro se espanta, “nem acredito que o meu querido partiu duas costelas!”, e noutro ainda lhe dá conta da sua indignação:”imagina que escrevi à Elizabeth Taylor mas não recebi fotografia nenhuma.”

Fica a sorrir, tentando imaginar-se naquele ano de 1956, com 13 anos, a escrever postais à Nèlita, e tem muita pena de a ter esquecido assim, como se ela não tivesse existido.

Ao jantar fala nisso ao marido, “imagina, devemos ter sido tão amigas e nem me lembro dela!”

Ele dá uma gargalhada:

“A Nélita! Como é que tu não te lembras da Nèlita? Andava sempre atrelada à Zulmira e deviam ser as miúdas mais feias lá da nossa rua!”

E depois de uma pausa, acrescentou:

“Feia, mas muito simpática! Nunca me hei-de esquecer que foi a única das tuas amigas que se preocupou comigo naquele verão em que tive um torcicolo que não havia meio de passar! Até me escreveu um postal!”

“Só por causa de um torcicolo?”

Ele voltou a rir:

“É que eu disse-lhe que tinha partido duas costelas… Ela estava de férias no norte, nunca veio a descobrir”.

De súbito, já não tem pena nenhuma de ter riscado a Nèlita da sua memória.

E fica muito contente por a Elizabeth Taylor não lhe ter enviado nenhuma fotografia.
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«ACTIVA» - Outubro de 2010

sábado, 23 de outubro de 2010

DESCOBRI O SIMPLEX

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Por Alice Vieira

TENHO MAIS MEDO de entrar numa repartição de Finanças ou da Segurança Social do que no consultório do dentista.

Por isso, quando entrei na Segurança Social para pedir um documento a provar que não devo nada a ninguém, até tremia.

Tirei a senha e, oh alegria!, era a senha 35 e já iam na 14, não devia demorar muito.

Nem valia a pena sentar-me, fiquei encostada à parede a olhar para os que iam chegando, e tirando senhas, e suspirando.

Quando, hora e meia depois, ainda se continuava na senha 14, comecei a não achar graça.

Reparo então - tenho pouca prática destas coisas - numas senhas com a designação de “prioritárias”. Pergunto quais as prioridades que abrangem - mas ninguém me sabe responder.

De repente, num écran em que passa muita informação a correr, com toda a gente a sorrir muito, a dizerem-nos - a nós, que já ali estamos há horas — como tudo agora é fácil e rápido, descubro que basta uma pessoa ter mais de 65 anos para usufruir dessa benesse.

Tiro outra senha, desta vez a 20, quando já estavam a chamar a 10. Óptimo, agora é que era.

O pior é que se estava na hora do almoço - e, durante mais de uma hora, nenhuma senha mexeu.

Palavra que temi um levantamento popular. Uma senhora começou a fazer um comício às massas, “devíamos era ir com panelas a São Bento!”, mas como a maior parte não estava a perceber o que faziam ali as panelas, ela lá explicou que era uma coisa que tinha acontecido no Chile, mas na sua cabeça as coisas deviam andar um pouco baralhadas porque, dali a momentos, já era a Argentina e as mães da Praça de Maio, e nós que éramos todos uns bananas, que amochávamos tudo. Desiste de esperar e vai embora, ela e mais alguns, e por isso, ao fim de seis horas de ali estar, chamam-me para me informarem que o que eu quero não é com eles.

Deve ser a isto que o nosso primeiro chama o “simplex”.
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«JN» de 22 Out 10

sábado, 9 de outubro de 2010

VIVA (ENFIM!) A REPÚBLICA!!

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A MINHA CABEÇA está baralhada e nem sei por onde começar.
A confusão toda começou quando há dias o Alfredo entrou aos berros, “um louco assassinou o Dr. Miguel Bombarda!”
A minha mãe caiu desamparada na chaise-longue da sala, gritando “ai que mal que eu me sinto!”, e o meu pai, sem saber se havia de acudir à Pátria ou à mulher, disse:

- Chamem a parteira! - e desapareceu pelas escadas com o Alfredo, que não parava de perguntar “e agora quem é que distribui as armas ao pessoal?”

Foi então que percebi que a revolução vinha aí, e que desta vez é que era. Segundo ouvi dizer, havia senha para os revoltosos e tudo! “Mandou-me procurar?”, era a pergunta, - a que se devia responder “passe, cidadão!”
Não sei explicar mas, desde esse dia 3, em que o doutor foi assassinado, até ao dia 5, em que o meu pai entrou em casa de madrugada cheio de sangue nas calças - na minha cabeça não há divisões, nem manhãs nem noites, como se tivesse sido tudo um único dia.
O meu pai andava num entra e sai, preocupado com a criança a nascer em casa, e com a revolução a nascer na rua.
E de cada vez que entrava, trazia notícias diferentes.

- A revolução a rebentar, e o rei a jantar com o presidente do Brasil! Disseram-lhe que seria melhor cancelar o jantar — e ele disse que o mais que podia fazer era prescindir da sobremesa para acabar mais cedo!

Às vezes o meu pai vinha eufórico, e falava de nomes como Machado Santos, Afonso Costa, José Relvas, João Chagas, e os olhos dele brilhavam quando contava que os bravos de Infantaria 16 não tardavam a vir por aí abaixo, e que os soldados se tinham deitado vestidos e equipados para estarem prontos a sair quando fosse dado o sinal!
Mas às vezes chegava desanimado, como quando se deixou cair no sofá da sala, murmurando:

- O almirante Cândido dos Reis suicidou-se.

Até a minha mãe se esqueceu das dores.

- Ainda me parece estar a ouvi-lo ontem : ”Se me julgasse incapaz de assumir o comando das forças da marinha e de as conduzir à vitória, dava um tiro na cabeça!” Disseram-lhe que estava tudo perdido e ele não aguentou.

Mas logo o meu pai recuperou forças e voltou a sair, exclamando:

- Mas nada está ainda perdido!

Foi quando apareceu o Alfredo a gritar “Machado Santos está na Rotunda com mais 400 homens, e vão chegar muitos mais! “
Saíram os dois e nunca mais os vimos até à madrugada do dia 5, quando nos entraram pela casa, exaustos, empoeirados, colarinhos abertos, casacos rotos, manchas de sangue nas calças.

- Ganhámos!...

Exactamente no momento em que a parteira saía do quarto da minha mãe e dizia:


- Manuel Alfredo… - murmurou o meu pai. — Nasce no dia em que se anuncia um mundo novo!

O meu filho vai ter…
E a parteira:

- “Menina”, eu disse “menina”…

Resumindo (até porque este caderno está mesmo a acabar e não me apetece muito começar um novo) : já temos República, o rei, as rainhas e o Arreda foram de barco para o exílio em Gibraltar, e vamos escolher um presidente.

- Cá estaremos para ver no que dá…- murmura a minha avó.

É isso: cá estaremos
(Ah, e a minha irmã foi baptizada com o nome de Maria da Anunciação.
Sempre se podem aproveitar os monogramas da roupa).
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«JN» de 9 Out 10

sábado, 2 de outubro de 2010

“CONQUISTEI O EXÉRCITO!”

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Por Alice Vieira

FALTA POUCO para voltar à escola e, para aproveitar os dias de liberdade que me restam, pedi ao meu pai que me levasse ao Coliseu : há lá uma dupla irresistível de cómicos e o cavaleiro australiano Silant faz prodígios com o chicote!

Mas o meu pai disse que não estamos em tempo de palhaçadas.
Depois do jantar a Rosa disse que, se eu quisesse, podia ir com ela e com o Alfredo para a semana ao teatro.

- O Alfredo tem entradas para o Teatro do Príncipe Real! Deu-lhas um marçano amigo dele. Eu conheço-o, chama-se António Silva e é um tipo magrinho e com muita graça! O António entra na peça que se estreeou agora, chamada “O Rei Maldito”. Quer dizer, entra e sai, porque quase nem abre a boca, mas já é o suficiente para ter direito a borlas!

A Rosa contou que o Alfredo nem queria ir porque diz que a vida não vai para teatros, mas ela lá o convenceu. Agora, resta-me convencer a minha mãe.
Mas não são apenas o meu pai e o Alfredo que estão preocupados : toda a gente anda sobressaltada.
As greves não têm fim. Neste momento há greves dos tanoeiros, dos tipógrafos, dos conserveiros, dos garrafeiros, e sobretudo dos corticeiros, que estão a ocupar as estações de caminho de ferro, para impedir o embarque da cortiça.
Ouvem-se os boatos mais desencontrados, e as prisões continuam.
Ontem a D. Etelvina, que agora vem cá quase todas as tardes para acabar o enxoval do meu irmão, até tremia só de pensar nos dois vizinhos que de manhã tinham sido levados pela polícia.

- Imagine a Sra.D. Joaquina - dizia ela para a minha avó — eu a cruzar-me com eles todos os dias, “boa tarde, Sr. João Borges! Boa tarde, Sr. Manuel Ramos!”, e eles , “boa tarde D.Etelvina!”, sempre muito bem educados - e vai-se a ver eram bombistas! A polícia diz que eles tinham em casa centenas de bombas! Já viu se aquilo tudo explodia lá no prédio?!

E a D. Etelvina tremia tanto que até se picou com a agulha.

- Isto anda muito mal — disse a minha mãe — mas o rei continua por aí a passear como se nada fosse…Andou pelo Buçaco a brincar às batalhas…
- Era um centenário importante! — a voz ofendida da minha avó.

A minha mãe riu:

- Coitado, acho que ele não está mesmo a perceber nada do que se passa...Contaram-me que lá no Buçaco, depois das cerimónias, e dos desfiles e dos “vivas” do costume, exclamou: “Conquistei o exército!”

E a minha mãe deu uma gargalhada:

- Agora anda a fazer de cicerone ao Presidente Hermes da Fonseca, que acabou de chegar do Rio de Janeiro… Não me admiro nada de o ouvir dizer um dia destes: “conquistei o Brasil!”

A minha mãe estava mesmo bem disposta. Foi então que me lembrei de lhe perguntar por que é que o meu irmão se vai chamar Manuel Alfredo.
Ela ficou muito séria e foi a minha avó que exclamou:

- Porque o teu pai não tem vergonha na cara e vai dar ao filho o nome dos dois criminosos que mataram D. Carlos e D. Luís Filipe!

A minha mãe encolheu os ombros e ficou a abanar a cabeça, enquanto a minha avó levava a D. Etelvina até ao roupeiro para guardarem mais um lençol!

«JN» de 2 Out 10

sábado, 25 de setembro de 2010

O MEU IRMÃO JÁ TEM NOME

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

AS CORTES abriram anteontem.
Eu estava na livraria com o meu pai e ouvi-o falar disso com o Dr. Miguel Bombarda, que é um médico muito amigo dele (“um grande republicano!”) que vai lá muito comprar livros, e depois fica na conversa.
Segundo ouvi, D. Manuel fez um discurso que parecia não ter fim, prometendo reformas da instrução, da justiça, da administração, enfim, de praticamente tudo.

- Está louco…- dizia o Dr. Miguel Bombarda – Completamente louco…

(O Dr. Miguel Bombarda é especialista em tratar pessoas loucas, de maneira que está sempre a ver loucura em tudo…)
Mas o meu pai deu-lhe razão:

- Um discurso perfeitamente irrealista! Mas não podemos esquecer que o discurso foi feito na base das propostas de medidas que constavam do programa de governo!
- Loucos!...Todos loucos!...

O discurso, no entanto, não deve ter grande efeito, porque as Cortes voltaram a fechar hoje, e só devem abrir em 12 de Outubro. Até lá, muita coisa pode mudar.
E, mais uma vez, andamos em festa.

- Amanhã chega a Lisboa o Duque de Wellington — disse o meu pai, ao jantar.

Até me ia engasgando com a carne assada.

- O Duque de Wellington?? O verdadeiro?

A minha avó murmurou logo que todos os duques são verdadeiros, mas o meu pai olhou para mim de tal maneira que tive vontade de me enfiar pelo chão.

- Isso nem parece teu, Zé Joaquim! Vamos comemorar o centenário da batalha do Buçaco, e tu querias que o duque fosse o mesmo? Este é o neto!

Mas para mim, heróis são heróis, e netos de heróis não têm graça nenhuma , por isso desinteressei-me do assunto, e o meu pai ficou a discutir com a minha mãe a qualidade do ensino em Portugal e que se calhar, em Outubro, eu ia para outra escola, muito possivelmente para uma das que funcionam nos Centros Republicanos.
No fim do jantar a minha avó foi buscar o bastidor e ficou a bordar na roupa o monograma do meu irmão, tal como tinha feito quando eu nasci. Ainda hoje gosto de olhar para esses dois “J”, como duas minúsculas bengalas, bordados na roupa que era minha e que está agora guardada no roupeiro.
Agora o monograma é diferente: depois de alguma discussão, os meus pais chegaram a acordo e o meu irmão vai-se chamar Manuel Alfredo. Portanto a minha avó borda na roupa as iniciais MA entrelaçadas uma na outra.

- E tenho de me despachar, porque a parteira disse que a criança era capaz de nascer fora de tempo…- diz ela, não se importando de assustar ainda mais a minha mãe.

Não percebo porque é que escolheram aqueles dois nomes – eu sou José Joaquim em honra da minha mãe, Maria José, e da minha Avó, Joaquina — mas na família não há nenhum Manuel nem nenhum Alfredo, e duvido muito que seja em honra do rei…
Mas a minha avó deve saber qualquer coisa — e não lhe agrada, porque se farta de soprar enquanto borda as letras no bastidor, e há dias ouvia-a murmurar:

- Criminosos…Dois criminosos…

Mas o meu pai apareceu na sala nessa altura e ela pediu à Rosa água chalada para os nervos, e já não bordou mais.
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«JN» de 25 Set 10

sábado, 18 de setembro de 2010

VOLTARAM OS TIROS

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

COMO A DRA. ADELAIDE continua sem tempo para acudir aos enjoos da minha mãe, o meu pai mandou a Rosa pedir ajuda à vizinha Henriqueta, que imediatamente enviou a nossa casa uma senhora muito simpática, que sorriu para todos e, em jeito de apresentação, disse:

- Trabalhei muito tempo com a D. Alice Costa!

A minha avó desfez-se em sorrisos e acompanhou-a ao quarto da minha mãe, enquanto o meu pai resmungava:

- Talassa…

Tudo porque, segundo me contou a Rosa, a D. Alice Costa foi quem ajudou D. Luis Filipe e D. Manuel a nascer.
Depois de examinar a minha mãe, a senhora veio ter connosco e disse:

- Ou ela fica em repouso absoluto, ou a criança nasce antes do tempo.

É muito grave uma criança nascer antes do tempo, pode até morrer, e por isso estamos todos um bocado assustados, e o meu pai até ficou em casa. A situação política também o preocupa: as Cortes deviam ter aberto hoje, mas ficou tudo adiado para dia 23.
Sentou-se ao lado da minha mãe e começou a ler-lhe o último número da “Ilustração Portuguesa”.

- Veja lá que assunto é que escolhe! - barafustou a minha avó.
- A senhora minha sogra fique descansada, o que vou ler é uma obra de arte! Literatura com um L gigante!

E então disse que se tratava de uma reportagem que o seu amigo Aquilino Ribeiro tinha mandado de Paris.

- Pelo amor de Deus, não me fale desse bombista! - gritou a minha avó, mas o meu pai fez que não ouviu e começou a ler o relato de um circuito de aviação em Paris.

Eu adoro aviões, e já me estava a ver dentro de um deles, nessa viagem de 800 quilómetros, ou então no campo de Issy-les-Moulineaux, entre a multidão que tinha ido assistir à partida das aeronaves.
O meu pai lia pausadamente, de vez em quando parava para exclamar “ esta alma do diabo escreve mesmo bem!”, e depois continuava, e eu estava um bocado confuso com aquelas palavras, mas se o meu pai dizia que era bom é porque era.
Estava ele, emocionado, a ler

“…e as passarolas, airosas como aves do paraíso, saíram dos seus ninhos e, açoitando a atmosfera doirada do nascente, filistriaram, curvetearam, descreveram mil regalos à vista e…”

quando um petardo rebenta mesmo ao pé da nossa casa.
A casa tremeu toda, os copos na cristaleira batiam uns nos outros que nem sei como não se partiram, e a minha mãe desatou aos gritos.
Fomos todos à janela, só se ouviam tiros e o barulho que os cascos dos cavalos do esquadrão da Guarda Municipal faziam na calçada.
Um homem passou a correr debaixo da nossa janela e gritou:

- A carbonária anda a lançar bombas à polícia!

Fechámos bem as janelas, e tentámos acalmar.
O meu pai voltou para o pé da minha mãe, e dizia:

- Então, Maria José, não é nada…Quer dizer…é o costume…Já devias estar habituada…

Mas a “Ilustração Portuguesa”, mais as “passarolas airosas como aves do paraíso”, ficaram abandonadas em cima da mesa.
Há momentos da nossa vida que nenhuma literatura consegue igualar.
Mesmo com L gigante.

«JN» de 18 Set 10

sábado, 11 de setembro de 2010

A CADEIRA DE SÃO GENS

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Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

FOI UM REGRESSO a Lisboa muito atribulado.
A minha mãe não parava de vomitar, e ninguém conseguia encontrar a Dra. Adelaide Cabete, para lhe acudir.
- Isto não é nada — dizia ela, para nos sossegar, mas ninguém sossegava.
- Claro — resmungava a minha avó — escolhem médicas que se interessam mais pela política do que pelos doentes e depois é isto… Deve andar lá pelos estrangeiros, a gritar que as mulheres é que devem mandar neste mundo..
- E talvez não fosse má ideia--dizia a minha mãe, entre dois vómitos.
- Va de retro, Satanás! – exclamava logo a minha avó.
Foi então que ontem a vizinha Henriqueta subiu cá acima com um conselho para a minha mãe. Por que é que ela não ia até à capelinha da Senhora do Monte e se sentava, por uns minutos, na cadeira de São Gens? Toda a gente sabia que era uma cadeira milagrosa.
O meu pai, que estava em casa nessa altura, só não explodiu de fúria porque era pessoa educada e fazia questão de manter boas relações com a vizinhança.
Mas eu vi como ele ficou vermelho.
- A D. Henriqueta desculpar-me-á — disse, com a voz mais calma que lhe era possível - mas não vejo como é que uma cadeira pode fazer milagres. Isso é mais uma daquelas aldrabices que os padres querem enfiar à força na cabeça das pessoas ignorantes!
A minha avó suspirou muito fundo, e a vizinha Henriqueta fez que nem o ouviu e disse apenas:
- Sr. Fernando, é evidente que não é uma cadeira qualquer! É a cadeira onde se sentava o mártir São Gens, que foi o primeiro bispo de Lisboa! A mãe de São Gens morreu de parto…
- Ai, nem me fale nisso — murmurou a minha mãe, baixinho.
--… e, por isso ,todas as mulheres grávidas que se sentam nessa cadeira…
- Morrem de parto, não me diga! — exclamou o meu pai .
- Credo, Sr. Fernando, nem a brincar diga uma blasfémia dessas! — e a vizinha Henriqueta benzeu-se três vezes, para esconjurar desgraças .
Depois, já mais calma, continuou:
- É exactamente o contrário! Por acção do mártir São Gens, todas as mulheres grávidas que se sentam nessa cadeira têm uma gravidez tranquila, e uma hora pequenina.
Para mim, todas as horas são iguais, sessenta minutos cada, e não percebi como podia haver horas mais pequenas que outras, mas não disse nada, se calhar também era milagre do santo.
A vizinha Henriqueta insistia:
- Vá lá, D. Joaquina! Vai ver como todo esse mau estar lhe passa!
A minha mãe olhou para o meu pai, mas o meu pai olhou para o relógio e disse apenas:
- Tenho de ir abrir a livraria.
E saiu.
Então ontem, a minha mãe, a minha avó, a Rosa, a vizinha Henriqueta e eu fomos todos até à Graça, subimos a rua íngreme que leva à Senhora do Monte, e a minha mãe sentou-se na cadeira de pedra, logo à entrada da capelinha. Ao princípio foi complicado, porque a cadeira é muito estreita e a minha mãe está um bocado gorda, mas lá se conseguiu encaixar.
Quando à noite o meu pai chegou, ninguém lhe disse nada.
Mas o que é facto é que a minha mãe desde ontem que não vomita.

«JN» de 11 Set 10

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Crónica fútil

Por Catarina Fonseca

PASSAMOS A VIDA a comparar-nos com as outras. Ai eu sei que é inútil, mas são estes pequenos momentos que nos deitam (momentaneamente) abaixo.

Sabem aqueles dias em que nos sentimos mesmo giras? No outro dia, acordei assim. Saí de casa a pensar, Ai que gira que eu estou. Estou mesmo gira. É que se fosse homem saltava-me imediatamente para cima.

Eis senão quando se me pranta à frente uma tipa com três metros de perna, mais quatro de trança, mais bronze do Optimus Alive. Era eu em gira. Em muito muito muito mais gira. Fui condenada a segui-la rua abaixo. Inda por cima a rua era comprida. Vocês não odeiam metáforas?

Fiquei a pensar naquela cena deprimente de haver sempre quem seja muito melhor do que nós, o que quer que se faça ou seja na vida. Cheguei de autoestima arrasada à minha secretária e comecei logo bem o dia com um daqueles mailes de Bobis a precisar de lar: ‘Cãozinho acorrentado a uma casota, de família de etnia cigana, com fome, parasitas, e ferido…’ O pobre do Bobi cigano (dúvida que me ocorre de repente: e terão tirado o cão à família cigana com parasitas e deixado lá as crianças?) com parasitas e fome estava bem pior que eu, que a única desgraça que tinha na vida era não ser tão gira como a Rapunzel da minha rua (além de ter janelas que fecham mal e um estore avariado, que não chega a ser tão mau como ter parasitas, embora chegue ligeiramente mais perto). É verdade que a inveja é o pior dos parasitas, mas ainda assim não é tão grave como parasitas a sério.

Decidi portanto procurar ajuda especializada e embrenhei-me no livro ‘Os segredos das mulheres brasileiras’, da fantástica Nelma Penteado. De certeza que a outra rapariga o leu. Ou se calhar não precisava. Há quem tenha a sorte de nascer brasileira de alma (e ainda mais sorte em nascer de corpo). Estava eu embrenhada a divertir-me mais do que na Feira Popular (ai que saudades!) quando dou com o seguinte parágrafo sobre reforçar os nossos pontos positivos: “Não gosta das suas pernas? Há pessoas que não as têm! Não gosta do seu rosto? Há pessoas bem piores! Tem só uma perna? Passe-lhe creme, pinte as unhas dos pés e transforme a sua vida numa vida feliz.”
Ai meu Deus. Estou a tremer até hoje. Só uma perna? Imaginei-me só com uma pernita, a passar verniz nos meus cinco deditos únicos! Tive pesadelos a noite toda comigo mesma a tentar fazer RPM só com uma pernita. Isto sim, é mau! É muito pior do que ser cão com parasitas numa família cigana! Comparado com isto, já nem me atrevo a chorar no ombro da minha mãezinha e dizer-lhe “Ai porque é que não saio ao tio Olímpio que ele sim tinha três metros de perna!” ao que ela me responderia, se bem a conheço, “Pois tinha, e também era careca e estrábico, e não se chamava verdadeiramente Olímpio porque havia mais 16 irmãos e a mãe pôs o mesmo nome a dois filhos.”

Não liguem. É do calor. Da ressaca das férias. Conclusão disto tudo? Sejam o mais giras que possam e não olhem para as outras. Não abram mailes de cãezinhos abandonados ao princípio da manhã. E acima de tudo, passem creme na(s) perna(s).

P.S – Isto era para ser uma crónica séria e útil sobre o eterno retorno do Regresso às Aulas. Sendo que não tenciono regressar às aulas nem amarrada de pés e mãos, fiquem-se com a Nelma e sejam felizes. E giras. Se puderem.
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«Passiva» de Set 10

sábado, 4 de setembro de 2010

A MINHA MÃE ANDA MUITO NERVOSA

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

PARA A SEMANA voltamos para Lisboa.
A minha mãe recomeçou a vomitar, e todos cá em casa se assustaram. Ainda sugeri que tomasse umas colherzinhas do Elixir do Dr. Mealhe, que cura os males de estômago da minha avó, mas ela resmungou:

- Isto não tem nada a ver com o estômago. E não são conversas para ti.

Quando me dizem isto, eu vou logo perguntar à Rosa e ela explica-me.
Não percebo porque é que a minha mãe ou a minha avó não me explicam o que ela explica. Ela diz que há assuntos que as pessoas não gostam que as crianças saibam, e que também há assuntos que são só de mulheres e assuntos que são só de homens. Parece que os vómitos da minha mãe são assunto só de mulheres, e acontecem por causa do meu irmão. Ter uma criança deve fazer um mal horrível ao estômago das mulheres.
Para além disso, a minha mãe dorme mal, e tem pesadelos, porque em todo o lado se ouve falar de uma epidemia de bexigas doidas em Lisboa, que os médicos não conseguem controlar.
Os jornais dizem que centenas de pessoas estão a ser vacinadas todos os dias, e a minha mãe anda sempre a pedir ao meu pai que a leve também à vacina, porque as bexigas doidas são um perigo, e quando uma pessoa as apanha ou morre ou fica marcada para a vida inteira, e se ela as apanhar o meu irmão morre à nascença.
O meu pai tenta acalmá-la, e diz-lhe que a varíola (o meu pai nunca diz “bexigas doidas”…) ataca sobretudo as pessoas que vivem na miséria e numa completa falta de higiene.

- Não é a nós que a varíola ataca. Nós temos possibilidades de viver numa casa boa, com todas as condições, e podemos passar férias em lugares saudáveis. A varíola ataca as famílias que vivem amontoadas em casebres miseráveis, sem dinheiro, sem condições, essa legião de mendigos que cada vez é maior…
- Lá está o senhor meu genro a fazer política…- resmungou a minha avó.

E o meu pai saiu da sala, para não aumentar a discussão e a minha mãe ficar ainda mais nervosa.
O meu pai até tem andado bem disposto, porque nas eleições da semana passada os republicanos duplicaram a votação! Tinham sete deputados, e agora têm 14 — como o ouvi dizer há bocado ao Sr. Sebastião.
Que, por acaso, me pareceu mais interessado numa notícia da “Ilustração Portuguesa”, em que se falava de um invento de um engenheiro dinamarquês, coisa verdadeiramente revolucionária: um aparelho completamente automático para mungir as vacas.
O Sr. Sebastião, que tem umas terras e uns animais na Beira, nem queria acreditar:

- Imagine o Sr. Fernando que nem é preciso mexermos com as nossas mãos nas tetas delas!

Olhei para o meu pai e vi que ele nem estava a ouvir nada. Estava a pensar nos 14 deputados.
Agora é que a revolução está mesmo, mesmo a rebentar.
E talvez por isso ele tenha aproveitado este mal estar da minha mãe para anunciar o regresso a Lisboa: não tinha mesmo graça nenhuma que a República rebentasse quando ele estivesse a conversar sobre as vacas do Sr. Sebastião na Drogaria Gonçalves.
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«JN» de 4 Set 10

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

SE A MENINA QUISESSE….

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Por Alice Vieira

DESCIAM A CALÇADA DO COMBRO, Lisboa ardia naquela tarde de fim de verão, as duas queixando-se “deste tempo em que as estações já não querem dizer nada.”
Recordaram ambas as tardes em que iam com as mães à Baixa, comprar tecido para os “fatos de meia-estação”…

“Meia-estação”, diz a minha filha, é metade da Gare do Oriente…”

Entram num café, que ainda se chama “leitaria”, as mesas ocupadas por mulheres do bairro, que discutem, com a mulher ao balcão, doenças, insónias e falta de dinheiro.
Arranjam uma mesa ao fundo.
De repente ela olha em volta e desata a rir:

“Há mais de 30 anos que não entrava aqui!”

A amiga não percebe, é uma leitaria de bairro, sem nada que a torne diferente das outras.
Ainda a rir, ela acrescenta:

“Era aqui que o Miguel vinha ter comigo ao fim do dia…E fica sabendo que, neste momento, eu podia ser a dona disto!”

Nunca contara a história a ninguém. Nem sequer ao Miguel, que nunca entendeu por que razão, de um dia para o outro, ela decidira esperá-lo noutro lugar, longe dali.

Todos os dias, depois das sete, ela entrava e escolhia a mesa que dava para a rua, para melhor poder ver o Miguel a aproximar-se. Tinham pouco mais de 20 anos, estavam apaixonados, um dia iriam casar e seriam felizes para sempre. O Sr.Joaquim, dono da leitaria, seguia aquele namoro com benevolência, sorrisos e compreensão.
Às vezes o Miguel atrasava-se, às vezes não chegava e ela acabava por voltar para casa, sem saber o que tinha acontecido. Em casa, com a mãe sempre a vigiar-lhe os passos, era impossível telefonar. Tinha de esperar pelo dia seguinte, pelas sete horas, pela mesa na leitaria do Sr. Joaquim.
Um dia, desses em que o Miguel faltara, o Sr.Joaquim aproximou-se da mesa.

“A menina dá-me licença?”

E antes que ela pudesse dizer fosse o que fosse, já o Sr. Joaquim se sentava na sua frente e começava com uma estranha conversa:

“Se a menina quisesse…”

E ela sem entender, e ele:

“O seu namorado não a merece, a menina aqui à espera dele e ele nem aparece, e não são uma nem duas vezes, que eu bem noto, ouça bem o que eu lhe digo, mande-o à vida antes que seja tarde, aquilo não é futuro para a menina, a menina merece muito mais…”

E ela sem conseguir dizer nada, a olhar para o Sr. Joaquim, para o cabelo muito preto a tresandar a Restaurador Olex do Sr. Joaquim, e ele no seu discurso imparável:

“Se a menina quisesse, eu podia fazê-la muito feliz, ficava com esta leitaria, punha-lhe uma casa com tudo o que a menina quisesse, nada lhe faltava, seria sempre muito estimada, nem precisava de trabalhar…"

Aproveitando uma pausa providencial, ela sorri, diz qualquer coisa como “obrigada”, e sai disparada, sem olhar para trás.
Nunca mais ali tinha entrado.

“Tinha sido o teu futuro…”, exclama a amiga, no meio de uma gargalhada, “estavas hoje a servir galões e bolos de arroz às velhas, e a ouvires as suas maleitas e desgraças…Diz lá se não tinha sido melhor do que teres passado a vida a corrigir testes …”

Riem ambas, ela ainda a recordar a cara do Sr. Joaquim, o brilho untuoso dos olhos do Sr. Joaquim.
Pagam a despesa, e ela não resiste a perguntar à mulher que está ao balcão:

- Esta leitaria era do Sr. Joaquim…Ainda é vivo?

A mulher abana a cabeça:

- Morreu há muitos anos. Eu era miúda e não me lembro, mas a minha mãe está sempre a contar que foi muito estranho: chegou uma tarde a casa muito maldisposto, sentou-se à mesa, e deixou cair a cabeça. Estava morto. Fulminante, diz a minha mãe.

Saem as duas para o calor da tarde.
E até chegarem a casa não dizem nem mais uma palavra.

«ACTIVA» Set 2010

sábado, 28 de agosto de 2010

OS REPUBLICANOS NÃO SE ENTENDEM

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".


QUE FÉRIAS agitadas!

O meu pai só conseguiu passar por cá ontem, mais por causa da minha mãe, que tem andado muito nervosa.

Hoje há eleições (mas a esta hora ainda ninguém sabe o resultado) e por isso o pensamento dele ontem estava sempre em Lisboa.

Seja qual for o resultado, só espero que ele acalme e venha depois passar uns dias connosco.
Há uma burricada seguida de piquenique marcada para depois de amanhã, e gostava que ele fosse comigo. Para a minha avó não estar sempre a dizer que ele só me leva para comícios e discussões políticas.

Ontem, por exemplo, veio almoçar e depois eu disse-lhe que lhe ia mostrar a minha bicicleta nova. Mas passámos pela Drogaria Gonçalves…e pronto, instalou-se lá de conversa com o Sr. Sebastião e o passeio morreu ali.

E quando eu pensava que eram os monárquicos que os preocupavam mais…não! Com quem eles estão mesmo preocupados é com os republicanos!

Claro que os ouvi falar dos “conservadores” (e ainda me fartei de rir com o Sr. Sebastião a imitar o José Luciano, que é um dos chefes e fala “achim”…), e dos “liberais”, - mas parecia que estavam a falar de histórias antigas, que já não tinham importância.

Agora, quando começaram a falar dos republicanos, aí é que até parecia que lhes saía fogo pelos olhos!

- Cá para mim, Sr. Sebastião, se não for o Afonso Costa este país não tem salvação!
- Ó Sr. Fernando, não diga isso! Ele assusta as pessoas!
- E é disso que as pessoas precisam, para ver se reagem!
- Ó Sr. Fernando, não me diga que não se lembra daquele discurso dele, há anos, a dizer…

(e o Sr. Sebastião fez voz grossa)

- …”Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos, rolou no cadafalso em França a cabeça de Luís XIV!”

(e o Sr. Sebastião voltou à voz normal)

- …e 14 meses depois, D. Carlos era assassinado!
- Não me venha agora dizer que foi o Afonso Costa que o matou!
- Nunca ficou lá muito bem esclarecido…Não foi ele que puxou o gatilho, mas há muitas maneiras de matar uma pessoa…
- Então, se o senhor não é pelo Afonso Costa, é por quem?
- Para mim, não há ninguém como o Brito Camacho! Esse é que é um republicano a sério! Basta ler “A Luta” para vermos a diferença…
- Não diga uma coisa dessas!
E ali ficaram os dois numa discussão interminável até que o meu pai rematou:
- Está a ver? Somos ambos republicanos, queremos ambos o fim da monarquia — e não nos entendemos! É disto que eu tenho medo nas eleições de amanhã.

E enquanto eles pensavam nas eleições, eu só pensava na minha bicicleta, que veio directamente da Casa Simplex, da Rua de Sto. Antão, a única loja que as vende em Portugal, e que o meu pai ainda não viu. Uma bicicleta com rolamentos esféricos, sem cones nem caixas, e que nunca desafinam! Uma coisa verdadeiramente extraordinária!
À vinda para casa ainda estive para lhe falar disso, mas desisti : a minha bicicleta nunca iria chegar aos calcanhares do Afonso Costa. Nem do Brito Camacho.

«JN» de 28 Ago 10

sábado, 21 de agosto de 2010

QUIROMANTES E ESPANHOLAS

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

O MEU PAI não veio este fim-de-semana ter connosco a Pedrouços.

Sabe-se agora que anteontem a revolução estava para sair para a rua — e mais uma vez não saiu.
Eu nem falo nestas coisas mas, palavra, estou cheio de medo que aconteça com a república o mesmo que aconteceu naquela história muito antiga, em que um pastor estava sempre na brincadeira a gritar “lobo! lobo!” e, quando apareceu um lobo mesmo a sério, ninguém acreditou.
Um dia a revolução vem mesmo a sério para a rua, a República ganha, e já ninguém acredita - e quando o rei for entrar no palácio já lá está um presidente.

Eu até acho que, em vez de mandarem os seus homens de confiança pela Europa a tentar arranjar apoios para a causa, os republicanos deviam era mandá-los a uma consulta da quiromante Madame Brouillard, que — segundo li há bocado no último número da “Ilustração Portuguesa”, - “prediz o futuro com veracidade e rapidez, sendo incomparável em vaticínios”. Tem consultório na Rua do Carmo (o que é muito mais económico do que viajar para França ou Inglaterra), atende das 9 da manhã às 11 da noite, e paga-se mil reis por cada consulta. Não é barato, mas o que são mil reis diante da possibilidade de sabermos o futuro?

Parece que desta vez o culpado do falhanço da revolução foi um oficial que, à última hora, com medo do conflito que iria estalar a seguir, atraiçoou a causa e denunciou tudo.

Quem me contou foi o Sr. Sebastião, que estava excitadíssimo:

- Lisboa está um barril de pólvora, menino Zé! Foram apreendidas mais de 150 bombas, a tropa está toda de prevenção…

O Sr. Sebastião, que é quem avia os fregueses na Drogaria Gonçalves, é republicano. Quando cá está, o meu pai passa horas e horas a conversar com ele. A minha mãe está sempre a queixar-se de que ele passa mais tempo na Drogaria Gonçalves do que passa em casa.

- Cada um tem a espanhola que merece… — murmurou uma vez a minha avó, e eu era pequeno e não percebi nada.

Mas agora já vou entendendo alguma coisa de histórias de homens… (De resto, daqui a uns meses faço 15 anos, já não sou nenhuma criança.)

Segundo me conta a Rosa, nalgumas praias há uns clubes onde se ouve música e se fazem muitos bailes, e onde os homens gostam muito de ir, porque há por lá umas bailarinas espanholas muito engraçadas. E passam lá imenso tempo…

A Rosa jura que nós vimos sempre para Pedrouços (as outras alternativas eram Paço d’Arcos e Cascais) exactamente porque aqui não há clube nenhum desses, e a minha mãe pode passar férias descansadas…

Mas o meu pai diz que escolheu Pedrouços porque, para lá dos bons ares reconhecidos no mundo inteiro, aqui não corre o risco de dar de caras com a realeza, que está toda em Cascais, nem com esses nobres de meia tigela, que estão todos em Paço d’Arcos.

De resto, agora com a revolução a anunciar-se dia sim, dia não, duvido que o meu pai tivesse muita vontade de bailar com as espanholas.

«JN» de 21 Ago 10

sábado, 14 de agosto de 2010

AS DELÍCIAS DE PEDROUÇOS

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

E CHEGÁMOS!
O Chalet Gonçalves cheira a mofo, porque há meses que está fechado.
Desde que enviuvou, a D. Bibiana nunca mais cá viveu, e a minha mãe, com as confusões e atrasos da nossa vinda, até se esqueceu de lhe pedir que abrisse as janelas uma semana antes, como sempre faz.
Mas assim que chegamos a Pedrouços, respira-se logo outro ar! Se eu pudesse, vivia cá sempre.
O meu pai veio connosco no vapor até Belém, e depois no trem até aqui, mas voltou logo para Lisboa.
Ainda não se recompôs do comício da semana passada…Era tardíssimo quando chegou a casa, e vinha tão excitado, e falava tão alto com a minha mãe, que eu, estremunhado, levantei-me da cama, fui ter com eles à sala e perguntei:

- Já há República?!

Não havia – mas, para utilizar as suas palavras, aquele tinha sido “um comício histórico”, nunca se tinha visto nada assim, mais de cem mil pessoas na rua!

- Dizem que até a D. Amélia já admitiu que a coroa está em jogo! É agora!

Fez-me uma festa na cabeça e acrescentou:

- Podes escrever no teu diário isto que te digo!

Já perdi a conta às vezes que ele me diz que tudo está mesmo por dias, mas não o quis desiludir: não devemos tirar as ilusões a um adulto, que nunca sabe o que fazer sem elas… Por isso sorri, acenei com a cabeça e voltei para a cama.
E nestes dias, para falar verdade, não tenho pensado muito na República, nem no Povo, nem no Rei (que continua no Buçaco…)
Só penso na bicicleta, na praia, nos piqueniques e nas burricadas.
Eu agora já sei nadar, e gosto de me meter pelo mar dentro, embora saiba que as pessoas, quando vêm para a praia, não vêm para se divertir, vêm porque lhes faz bem à saúde. As mães vêm para a praia porque os filhos precisam de energia e vigor, coisas que, como todos nós sabemos, as cidades não dão.
Digamos que a praia é um remédio. Em vez de engolirmos xaropes e Pílulas Pink, e purgantes (odeio canja porque
é sempre nela que a minha mãe mistura o óleo de rícino que tenho de tomar antes virmos para cá…) — tomamos banhos de mar.
E como um remédio se engole porque tem mesmo de ser — também aqui se passa o mesmo: vamos ao banho porque tem de ser e, lá diz a Rosa, “o que tem de ser tem muita força”.
Quando eu era pequeno, os banhos eram o meu pesadelo…De manhã, lá pelas onze horas, já eu estava com o meu fato de banho diante do mar à espera do Sr. Manuel, que é há muitos anos o banheiro a quem todas as mães entregam os filhos.
Ele chegava, apertava-me o nariz e atirava-me para dentro da água! Às vezes, antes de me atirar para o mar, mergulhava a minha cabeça sete vezes seguidas na água, eu sem fôlego a pensar que morria, e ele: “é para prevenir a gaguez e para impedir que os demónios entrem no seu corpo!”
Não sei se os demónios alguma vez tentaram entrar no meu corpo - mas até hoje ainda não percebi como não fiquei gago para o resto da vida.

«JN» de 14 Ago 10

domingo, 8 de agosto de 2010

MAIS UMA SEMANA DE ESPERA

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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

As pequenas coisas

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Por Catarina Fonseca

NASCEMOS FELIZES como nascemos com cabelo castanho, olhos azuis e predisposição para bolhas nos pés, ou tornamo-nos felizes?

Tenho um amigo cronicamente infeliz. Sofre de infelicidade como outras pessoas sofrem de reumático, dores nas costas, asma ou hemorróidas. A infelicidade, nele, é quase uma forma de ser feliz. Sempre que nos encontramos, temos a mesma conversa (a seguir a ‘Porque é que toda a gente nos trata como se tivéssemos 14 anos’): afinal, por que é que vale a pena viver?

Da primeira vez, fui apanhada desprevenida. Durante uns bons minutos nem soube o que lhe responder. Finalmente, lá consegui gaguejar: “Chanel 19?”

É para vocês verem os estranhos labirintos do nosso cérebro. Só a seguir é que me veio à cabeça tudo o que me faz verdadeiramente feliz: os meus sobrinhos (especialmente a dormir), o mar da Costa Nova, gelado de cheesecake, borboletas no estômago quando nos apaixonamos, banhos de imersão com sais cor de rosa, conversas metafísicas, pessoas interessantes, livros que nos fazem ter vontade de voltar para casa. Despejei-lhe tudo isso aos trambolhões. A tudo ele torcia o nariz. O mar? É gelado! Os bebés? Choram! E rematava, “E isso são pequenas coisas”. Iá? Mas não são as pequenas coisas que nos fazem verdadeiramente feliz? Quando me preparava para voltar ao ataque com novas munições a eito (“aviões! lareiras! presentes! rouxinóis! Mozart! O George Clooney?”) percebi de repente que estava a gastar o meu Clooney. Os infelizes não são convertíveis porque a felicidade não depende de qualquer coisa fora de nós. Depende de nós. De que parte de nós e em que altura da nossa vida é que a contraímos, já não sei. Temo que tenha qualquer coisa a ver com sermos amados em bebés, mas como conheço imensa gente amada em bebé que está de mal com o Universo desde que largou a chucha, não deve ser assim tão simples.

Fui portanto documentar-me. O estudo mais recente sobre a felicidade é decisivo: ser feliz não tem a ver com a pessoa que se é mas com o sítio onde se vive. E então, qual é o país mais feliz do mundo? Não, não são as Caraíbas. É a Suíça. O que faz sentido: muitos chocolates e poucos impostos. Parece-me uma boa receita para a felicidade. Não sei se a Heidi também terá alguma coisa a ver com isso. Estão empatados com a Dinamarca (também faz sentido: são todos louros e acreditam em fadas) e a seguir os islandeses. Sendo que o inquérito era de 2006, seria interessante saber se depois de terem levado com duas cacetadas na carroceria (as cinzas do Fyjfyjfyj – pronto, do Zé Manel – e a bancarrota) continuam assim tão felizes. Os mais infelizes são os moldovos. Eu nem sei onde é que fica a Moldova. Eles pelos vistos também preferiam não saber.

Conclusão: não é preciso ter praias, é preciso ter amigos e confiança em quem nos governa. Nós portugueses desconfiamos profundamente da felicidade. Aliás, capitalizamos no fado, o que me parece bem. Já que somos infelizes, ao menos que se venda muito CD sobre isso aos totós dos Suíços. Mas, ó meninos, não exagerem! Sejam lá felizes e não chateiem! Há uns tempos, a propósito daquele 7-0 no Mundial com os pobres dos Coreanos, houve um comentador que disse: ‘É preciso não entrar em euforia!’ A única pessoa que achou isto estranho era (adivinhem lá) brasileira.

«Activa» de Agosto 2010

sábado, 31 de julho de 2010

VAMOS A BANHOS

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

PARECE QUE É desta que vamos para Pedrouços.
Todos os dias a minha mãe insistia, mas o meu pai torcia o nariz, com os argumentos de sempre - a situação política instável e o nascimento do meu irmão.
A minha mãe tentava sossegá-lo:

- A monarquia, por muito que lhe custe, está de pedra e cal, e o nosso filho só nasce em fins de Outubro. Não vejo motivo nenhum para não irmos em Agosto para Pedrouços. De resto, a D. Bebiana está à nossa espera, e nunca aluga a casa a mais ninguém. Era uma grande desfeita que lhe fazíamos.
- De resto — acrescentou logo a minha avó — é só olhar para a cara do Zezito para ver como está a precisar de bons ares.

(O Zezito sou eu. Odeio que me chamem assim mas felizmente só a minha avó tem essa mania — e normalmente só quando estou doente.)
Desde sempre que oiço dizer que as nossas idas para Pedrouços são por minha causa, porque aquela aldeia é conhecida pelos seus bons ares e pelas suas águas, que operam milagres na cura da anemia, do raquitismo e da depressão. Há mesmo estrangeiros que vêm dos seus países só por causa dos bons ares de Pedrouços.
Eu nunca tive anemia nem raquitismo nem depressão — mas a minha avó diz que vale mais prevenir que remediar - e nestes últimos tempos não tem feito outra coisa senão dizer à minha mãe que eu ando muito descorado.
Aqui há dias queria mesmo levar-me à Farmácia Peninsular, na Rua Augusta, para me comprar Pílulas Pink, que é um remédio de que toda a gente fala e que, segundo diz a minha avó, “transforma o sangue pobre e viciado em sangue puro e generoso”.
Se há comprimidos que fazem as pessoas generosas…venham eles! Mas a minha mãe não deixou, porque disse que se estava mesmo a ver que isso era uma grande aldrabice.
A minha avó amuou, ninguém comprou Pílulas Pink, e eu continuo descorado.
Então o meu pai acabou por concordar com a nossa ida.
Claro que ele só vai aos fins-de-semana, porque a livraria não pode fechar. E também porque não é muito apreciador das belezas de Pedrouços... Assim que a minha mãe começa a fazer os preparativos para a nossa ida, começa ele a recitar uma frase do Ramalho Ortigão, um autor de quem ele gosta muito.
(Quer dizer, o meu pai diz que ele é um grande escritor, mas não gosta dele como pessoa porque é monárquico. O meu pai diz que a gente tem sempre de separar essas coisas, embora eu ache difícil…Mas o meu pai consegue: lembro-me uma vez de ver o Ramalho Ortigão, que é já muito velho, entrar na livraria, e o meu pai olhava para ele como eu olharia para o Júlio Verne se o visse na minha frente.)
Então o meu pai recorda a frase de um livro dele sobre as praias, em que diz, a respeito de Pedrouços: “pela manhã a gente abre a janela do nosso quarto, deita a cabeça de fora e pode fazer a barba no espelho do vizinho do prédio em frente.”
Eu também acho que Pedrouços já tem gente a mais mas, mesmo assim, tudo é preferível a esta pasmaceira de Lisboa no verão.

«JN» de 31 Jul 10

sábado, 24 de julho de 2010

O ALFREDO VOLTOU

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".


ESTÁVAMOS A TOMAR o pequeno almoço, ainda o meu pai não tinha saído para a livraria quando, de repente, ouvimos um grito da Rosa.

- Um assalto! — disse logo a minha avó, levantando-se da mesa.

(A minha avó anda muito preocupada porque os jornais não param de falar da onda de assaltos e violência — “onda vermelha” é assim que eles escrevem — na cidade de Lisboa)
Mas não era um assalto, era apenas o Alfredo que voltava!
A Rosa estava branca como se tivesse visto um fantasma, e quase desmaiara ao dar de caras com ele no patamar das escadas de serviço. Mais magro, com olheiras e barba de muitos dias, depois de ter andado por aí, a seguir à fuga dos calabouços da esquadra do Caminho Novo, juntamente com alguns amigos.

- Eu não te disse, rapariga, que ele andava escondido? — disse o meu pai, acrescentando — Se calhar por causa dele e dos primos dele é que isto deu no que deu…
- O senhor sabe que não é verdade! — gritou o Alfredo, que pode estar fraco de carnes mas não está fraco de voz—Desta vez a culpa foi toda…
- Pronto, pronto! – interveio a minha mãe — o Alfredo está cá fora e está bem, hoje é dia de festa e não quero discussões!

E para a festa ser a sério, deu o dia livre à Rosa.

- Maus hábitos — resmungou logo a minha avó – Hoje dás-lhe o dia livre, para a semana também, não tarda está a exigir-te um dia livre todas as semanas! Ouve o que te digo! O pessoal tem que ser tratado com rédea curta senão abusa logo! E de resto...

E a minha avó pôs aquela cara que ela costuma reservar para os grandes problemas do mundo:

- De resto, temos muito poucos motivos para festas… A menina não lê jornais? Não sabe o que se passa?
- Sei! Sei que, por exemplo, a sua querida rainha Maria Pia…
- Dona Maria Pia, se faz favor... — emendou logo a minha avó
- …mandou vir um chapéu de Paris que custou 18 contos de réis! Isso é que eu sei! 18 contos por um chapéu, quando o povo está na miséria!

A voz da minha mãe até tremia.
(Para falar verdade, eu nem consigo imaginar o que sejam 18 contos de reis…Já os 60 reis que eu pago pelo “Texas Jack” no quiosque aqui em frente me parece uma fortuna… E oiço sempre o meu pai barafustar quando paga 80 reis pela onça de tabaco francês que fuma…)
A minha avó não lhe respondeu e continuou:

- Dizia eu que não há motivo para festas quando o rei de Espanha acabou agora de escapar a um atentado! E foi por pouco! O anarquista estava mesmo a disparar a pistola quando foi preso!
- Então... — disse a minha mãe – se escapou, ainda bem! Se tivesse morrido é que era mau!
- Não faça de conta que não percebe! A Espanha é mesmo aqui ao lado, hoje o atentado é contra Afonso XIII, amanhã é contra D. Manuel! E nem sempre falham. Lembre-se do que aconteceu a D. Carlos e D. Luís Filipe…

Suspirou muito fundo e rematou:

- Os anarquistas estão por toda a parte! É o fim do mundo.

E lá foi para a sua novena, deixando a minha mãe a lavar a loiça do pequeno almoço. Quem dava dias livres às criadas tinha de acarretar com as consequências.
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«JN» de 24 Jul 10

sábado, 17 de julho de 2010

PIOR QUE ARRANCAR UM QUEIXAL…

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

ESTA FOI uma semana complicada.
O meu pai entrava em casa a desoras, ou até mesmo nem entrava em casa.
“Anda a dormir sabe-se lá por onde”, murmurava a minha mãe, que todos os dias refila porque não se encontra em estado de ter ralações como esta. Claro que a revolução não tem culpa nenhuma que a minha mãe esteja de esperanças, mas ela não pensa nisso.
É que a Revolução estava marcada para dia 14!
Finalmente!
Desta vez é que era!
Comemorava-se mais um aniversário da Tomada da Bastilha — que é uma data muito importante para os franceses, porque foi quando eles também puseram os reis deles fora do trono,
(eles foram muito mais apressados do que nós, e acabaram com a monarquia há mais de 120 anos…)
era uma data simbólica, e aproveitava-se o facto de D. Manuel andar distraído, de férias e de amores lá pelo Grand Hotel da Mata do Buçaco…
Mais uma vez estava tudo, tudo, para acontecer... mas mais uma vez não aconteceu.
E o meu pai não parava de barafustar que a culpa era toda daqueles incompetentes de Caçadores-2 que, à última da hora, quando se estava à espera que viessem por ali abaixo — tinham roído a corda e nem um passo tinham dado.
Bom, mas se estava tudo, tudo preparado para dia 14 — então ficaria para dia 16, que era para os ânimos não esfriarem.
“Desta vez”, disse o meu pai, “ vamos nós tomar conta do assunto!”
Quando o meu pai diz “nós”, eu já sei que se refere aos seus “irmãos” da maçonaria. Esses, segundo ele, sabem o que fazem, são rigorosos, têm a cabeça no lugar. “Os outros”, da Carbonária, são uns loucos que estragam tudo…
Então, para que nada pudesse falhar no dia 16, o meu pai contou que se tinha organizado um novo plano, que dividia a cidade de Lisboa em 6 grandes comandos, e que assim tudo ficava mais fácil de orientar.
“Desta vez é que não falha!” — disse ele para a minha mãe, antes de, mais uma vez, sair porta fora.
A minha mãe até estava admirada por ele ter falado tanto. Era a prova de que realmente estava tudo mesmo, mesmo para acontecer. Uma questão de horas, de minutos.
Mas o certo é que já hoje é dia 17- e a monarquia ainda cá está.
Desta vez parece que, no meio de mais uma reunião, alguém disse que ainda não era oportuno…
Pelos vistos, custa mais tirar a república de cá do que custou tirar da minha boca aquele queixal infectado que me fazia imensas dores! O dentista arrancou-mo que foi uma beleza. Gritei que nem um vitelo, aquilo era sangue pelo consultório todo, e um cheiro a éter que agoniava — mas pronto, cortou-se o mal pela raiz (na verdadeira acepção da frase…)
“Tudo pronto para sair para a rua, tudo controlado, os marinheiros de Alcântara e o Arsenal a postos — e vem aquela alimária e diz que não é ainda oportuno!!!” — grita o meu pai que, nestes últimos dias, não tem feito outra coisa.
Confesso que não faço ideia nenhuma do que seja “alimária” e assim que puder vou ver no dicionário.
Mas tenho cá um palpite que não deve ser coisa boa.
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«JN» de 17 Jul 10

sábado, 10 de julho de 2010

FÉRIAS NO BUÇACO

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Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

A ROSA NÃO PÁRA
de chorar, sem notícias do Alfredo.
O meu pai diz-lhe que não é caso para alarme, o mais provável é ele ter arranjado maneira de fugir e estar escondido num sítio qualquer.

- E por que é que não me dá notícias? — chora a Rosa
- Porque está escondido. Se está escondido é porque não quer que ninguém o veja — e faz ele bem!

E o meu pai desatou logo a resmungar que é por estas e outras que a revolução tem falhado sempre.

- Começam a falar com quem não devem, começam a aparecer às namoradas, dão com a língua nos dentes - e lá se vai tudo por água abaixo.

Fez uma pausa e murmurou:

- Mas desta vez não vai falhar…

A minha mãe sentiu-se logo maldisposta, e pediu um chá de tília.

- Fernando, não me esconda nada! É agora? Diga-me: é agora?

O meu pai sossegou-a:

- Esteja descansada! Então não sabe que o nosso rei está de férias? Se o rei - que, segundo diz a senhora minha sogra, só pensa na segurança e bem-estar do seu povo - foi tranquilamente para o Buçaco, ouvir os passarinhos - é porque está tudo bem.
A minha mãe não pareceu convencida:

- Eu conheço-o, Fernando…

Então o meu pai deu-lhe um beijo e saiu.
A minha mãe não sossegou nessa tarde.
A minha avó ainda pensou em mandar a Rosa chamar a Dra. Adelaide, mas a minha mãe não deixou:

- Nem pense, minha mãe! Se anda conspiração no ar, de certeza que a Dra. Adelaide está lá metida, e não vai ter tempo para acudir a achaques sem importância…Isto é nervoso, já passa. E realmente, o Fernando tem razão: se D.Manuel foi de férias para o Buçaco, é porque está tudo calmo.
- E ao que parece não está lá sozinho... — resmungou a Rosa, entrando com a tisana para a minha mãe – Esse ao menos manda chamar a namorada e não lhe esconde nada…

A minha avó saiu logo em defesa do bom nome do seu rei:

- D.Manuel não tem namorada nenhuma. Isso são más línguas!
- Ora essa! – defendeu-se a Rosa -Toda a gente sabe que a actriz está lá com ele! E que ele a cobre de jóias! E que até já lhe deu um automóvel!
- Pronto, já bebi o chá, leva a xícara — disse a minha mãe, para repor a paz na sala.

Finalmente fez-se silêncio.
A minha mãe tricotava qualquer coisa em tons de azul.
No bastidor, a minha avó bordava a palavra “BEBÉ” a ponto de cruz, no meio de um babeiro.
Eu tentava passar da primeira página de “Os Miseráveis”, de um escritor francês muito importante chamado Victor Hugo, que o meu pai me mandou ler há mais de um mês.

- Não há dúvida que os nossos reis não podem ver uma actriz na sua frente…--murmurou então a minha mãe - Já o avô, foi o que foi…
- Não é bonito falar mal dos mortos — disse logo a minha avó.

E era bonito D. Luís andar para todo o lado com a Rosa Damasceno? E é bonito este andar feito doido com a Gaby Deslys? O país numa situação tão grave, o povo a passar fome, e eles a gastarem dinheiro desta maneira?
A minha avó largou o bastidor sobre a mesa.

- Quando a menina fala como o seu marido fica insuportável.

E retirou-se para o quarto.
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«JN» de 10 Jul 10

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Um pequeno conto musical - Convite

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Por Alice Vieira

VAMOS estrear Um Pequeno Conto Musical no próximo dia 11, domingo, às 21h30m, no Jardim da Cascata do Palácio de Belém. Imprima o convite para assistir ao concerto ao vivo da Orquestra Metropolitana de Lisboa, com narração de Alice Vieira e direcção musical de Cesário Costa. Na altura será lançado o livro com o texto e música, editado pela Caminho.

IMPORTANTE:
é obrigatória a apresentação do convite na entrada do Museu da Presidência, em Belém, e é preciso confirmar até amanhã, dia 8 Jul 10, pelo tel. 213 617 344.

sábado, 3 de julho de 2010

O MEU AMIGO AQUILINO

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Por Alice Vieira

O ALFREDO foi preso.
A Rosa chora dia e noite, sobretudo quando se lembra do Sr.Mateus, nosso vizinho preso já há meses e de quem nunca mais se ouviu falar.
O meu pai já lhe disse que o Sr.Mateus é diferente: foi apanhado a fazer uma bomba. Ao passo que o Alfredo foi levado num grupo de muitos, que tinham sido denunciados à Secreta, mas não havia bombas nenhumas.

- Além disso — explica ele — diz-se por aí que o Mateus fugiu para França.
- Ai, Sr. Fernando!, pela sua rica saúde, não me diga que o meu Alfredo vai fugir para França!

E a Rosa corre para a cozinha, enquanto o meu pai aproveita para dizer que os da Carbonária são todos uns inconscientes, sem cuidado nenhum, e por isso estão sempre a ser presos.

- Ouve o que te digo, Zé Joaquim: não é glória nenhuma ser preso! Devemos sempre ter inteligência suficiente para sabermos trocar-lhes as voltas! Glória é lutar por uma causa justa!

Claro que, se formos presos, temos de nos portar como verdadeiros homens, mas o nosso objectivo é prosseguir a luta cá fora!
Nestes últimos tempos, o meu pai fala sempre em jeito de comício.
E a propósito da fuga do Sr. Mateus, o meu pai recordou um amigo dele chamado Aquilino Ribeiro, que eu ainda me lembro de ver na livraria, que um dia foi apanhado a fazer explodir uma bomba, foi levado para a prisão, e há mais de dois anos desapareceu.

- Está em França. De vez em quando tenho notícias dele. E, se bem o conheço, de certeza que não está parado…

Eu gostava de ouvir este amigo do meu pai. Tinha uma fala engraçada, diferente da nossa.

- O Aquilino nasceu perto de Viseu, e os beirões falam “achim” — dizia o meu pai.

Estava sempre a conspirar e a fabricar bombas e a escrever coisas contra a monarquia.
E tinha paciência para mim.
Uma vez contou-me que até tinha inventado para si próprio um nome diferente, para poder escapar melhor.

- Sou Alberto Ramos. Já sabes. Só me tratas por Alberto Ramos, ouviste?

Alberto Ramos — para que a pessoa que lhe alugava o quarto, e a lavadeira que lhe tratava da roupa não desconfiassem de nada, ao verem as iniciais “A.R.”, que a mãe dele tinha bordado em toda a roupa…
Lembro-me um dia, estava-se no Carnaval, de ver o meu pai chegar a casa vermelho de fúria, a chamar-lhe louco varrido, inconsciente e mais não sei o quê.

- Mas que foi que ele fez? — perguntou a minha mãe.
- Nem vais acreditar…Imagina que aquela alma do diabo, procurado pela polícia em toda a parte, mascarou-se de dominó e foi pedir lume ao tenente-coronel Dias!!

O meu pai dava voltas à mesa da casa de jantar, tal era a fúria:

- Ao tenente-coronel Dias! O n.º 1 da polícia do reino!

Pouco depois dessa aventura, ouvi o meu pai dizer que ele tinha fugido para França — e nunca mais me lembrei dele a não ser agora, por causa do Alfredo.
Para além da prisão do Alfredo, a única coisa importante que aconteceu é que se marcaram eleições para dia 28 de Agosto.
Este ano é que o meu pai não vai pôr o pé na praia.
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«JN» de 2 Jul 10

sábado, 26 de junho de 2010

NOVO GOVERNO E NADA DE FÉRIAS…

Por Alice Vieira

ESTE FIM-DE-SEMANA traz toda a gente muito excitada.
Enfio-me no meu quarto e aproveito para escrever no meu diário.
(Há dias o meu pai disse-me que, daqui a uns anos, isto ainda vai ser um bom documento destes tempos. Nunca se sabe…)
Pois então lá temos outro governo. Desta vez, do ministro Teixeira de Sousa que, antes de vir para a política era médico em Trás os Montes - segundo o meu pai me disse. Acho que nunca o vi (ministro do reino é bicho que não frequenta a nossa livraria…), mas vi uma fotografia: velhote, como todos, de cabelo branco e grande bigode.
Desde que o rei andou aqueles dias todos por Inglaterra, as coisas por cá, se já estavam feias, mais feias ficaram, e nunca mais se recompuseram.
O chefe do governo dizia que não conseguia governar; o rei dizia-lhe que tivesse calma, muita calma (isto devia ele ter ouvido em Inglaterra: a minha mãe está sempre a dizer que os ingleses têm imensa calma, muito mais calma do que nós…); os partidos não se entendiam; a Polícia cada vez fazia mais prisões; e depois de muita confusão, lá se foi o outro governo e lá veio este.
Que não deve durar muito, pois já se fala em fazer eleições no mês de Agosto…
(Se calhar nem valia muito a pena tomar nota aqui do nome deste ministro, que não deve aquecer o lugar, mas como o meu pai diz que este diário ainda pode ser um bom documento, tenho de aqui assentar tudo.)
Também ouvi dizer que o governo é formado por mais seis ministros e que já há quem lhes chame “os sete satanazes”…

- Que país este, santo Deus, onde tudo tem alcunhas! — protestou a minha avó.

Para dizer a verdade não me preocupam muito as alcunhas, nem o novo governo, nem os novos ministros.
O que verdadeiramente me preocupa é que este ano ainda não ouvi ninguém falar das férias de verão.
Em anos normais, a esta hora já a minha mãe estava a organizar tudo para partirmos para a praia de Pedrouços.
A D. Etelvina vinha para nossa casa todas as tardes para arranjar a nossa roupa, deitar bainhas abaixo, alargar e apertar saias, pôr em ordem a roupa de mesa e de cama, essas coisas que é sempre preciso levar quando se vai de férias.
Todos os anos passamos as férias no Chalet Gonçalves, em frente da Drogaria Gonçalves. Pertencia tudo ao Sr. Gonçalves, que era amigo do meu avô, e que já morreu. Agora pertence tudo à D. Bebiana, que é a viúva.
Desde sempre que me lembro de alugarmos a casa para toda a temporada de verão.
Umas semanas antes, a minha mãe ia com a Rosa abrir as janelas, levar já algumas malas, e pedir à D. Bebiana para arranjar duas raparigas que pudessem ir lá para casa servir durante esses meses, porque a Rosa sozinha não dava conta do recado.
Depois mudávamo-nos todos para lá - menos o meu pai, que só ia ao fim de semana, porque não podia fechar a livraria.
Mas este ano, ou por causa da república, ou por causa do meu irmão, ainda ninguém começou a falar em férias.
E isto, sinceramente, isto é que verdadeiramente me preocupa.
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«JN» de 26 Jun 10

sábado, 19 de junho de 2010

PÃO COM SERRADURA

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Por Alice Vieira


Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

QUANDO EU ERA PEQUENO, pensava que o meu pai conhecia o mundo inteiro.
É claro que neste momento já tenho outra ideia do mundo mas, mesmo assim ainda fico admirado com a quantidade de gente que ele conhece.
Ouço-o falar de Miguel Bombarda, Machado Santos, Cândido dos Reis, Magalhães Lima e sei que um dia, quando vier a República, vão ser todos pessoas muito importantes.
Muitos são clientes habituais da livraria, ou fazem da livraria o seu lugar de conversa, ou encontram-se na Brasileira, ou vão ler as notícias do mundo enviadas pela Agência Havas que a Havaneza afixa, ou fazem por não perder um sarau do São Carlos. (Há mesmo quem assegure que são melhores as conspirações que se tramam entre as quatro paredes do São Carlos do que as óperas que lá se ouvem…)
Há mesmo um grupo de amigos do meu pai que anda pelo estrangeiro a pedir apoios para quando a revolução rebentar a sério.
Mas enquanto não rebenta, o governo não se entende.
Quer dizer, o governo nunca se entende.
Basta dizer que, desde que D. Manuel é rei, este já é o quinto governo do país. E, pelos vistos, já outro se anuncia para breve.

- Casa onde não há pão…- murmura a minha avó.

O que até vem a propósito, pois parece que até com o pão tem havido sarilhos.
Ouvi o meu pai falar disso à mesa.
Dizia ele que, como há falta de cereais, o pão fica muito caro.
(E aí aproveitou logo para exclamar, com voz de comício:

- Uma das primeiras medidas da República será fazer descer o preço do pão!)

E então, para as pessoas o poderem comprar, (“se as pessoas não comerem pão o que é que elas vão comer, com a miséria que vai por aí?”, murmura a minha mãe) ele é posto à venda abaixo do seu preço real de produção.
E então os produtores, para ver se podem lucrar mais qualquer coisita, vá de misturarem a farinha com serradura, cal e gesso!
E sei que os problemas não se ficam por aí: ontem a Rosa contou que o Alfredo lhe tinha contado que os moços de padeiros estavam em greve. E que o governo tinha mandado o exército dar serventia às padarias!

- Bem me parecia que o pão tem andado com um gosto estranho…-- disse a minha avó, metendo o dente na terceira torrada.
- Só a revolução nos pode salvar…- murmurou o meu pai.
- Muito gosta o senhor meu genro de falar em revoluções…. — disse a minha avó—Toda a gente sabe que uma revolução é um acto condenável, que vai sempre contra a ordem, contra a religião…

(A minha avó, quando quer, também tem voz de comício, mas de comício de sacristia…)
Então o meu pai aclarou a voz e disse:

- “As revoluções não são factos que se aplaudam ou se condenem. São factos fatais. Têm de vir “
- Quem é que disse isso? Algum dos seus irmãos maçons?
- Não. Por muito que lhe custe ouvir, quem disse isto foi o Eça de Queiroz.

Com uma força inaudita, a minha avó ferrou o dente na quarta torrada. Mesmo que tivesse serradura, gesso ou cal, ela tê-la-ia trincado da mesma maneira.

«JN» de 19 Jun 10

sábado, 12 de junho de 2010

O DIA DE CAMÕES

Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

DESDE QUE EU ME LEMBRO de ser gente que o dia 10 de Junho se festeja cá em casa.
Se calha a dia de semana, festeja-se mais tarde porque o meu pai tem de fechar a livraria e eu tenho de chegar do colégio.
Se calha a um domingo, festeja-se mais cedo, assim que a minha avó e a minha mãe chegam da missa.
Vamos todos até ao Chiado, bem junto da estátua, e o meu pai recorda a vida do poeta: as privações por que passou, a perda de um olho (nesse momento a minha avó murmura “ai coitadinho…”), o naufrágio (nesse momento a minha mãe murmura “ai, Dinamene!...”), e o regresso à pátria – e nesse momento eu murmuro “ cá vou eu…” porque já sei que é a altura de o meu pai apontar para as estátuas que rodeiam, cá em baixo, a figura do poeta lá no cimo, e perguntar:

- Zé Joaquim, quem são estes?

Com o treino destes anos todos, já os conheço de cor:

- Fernão Lopes, Pedro Nunes, Gomes Eanes de Zurara, João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda, Vasco Mouzinho de Quevedo…

(Neste momento faço uma ligeira pausa porque já sei que é aqui que o meu pai murmura: “completamente esquecido e tantas vezes considerado um segundo Camões…Injustiças desta vida…” – e termino:)

- …Jerónimo Corte-Real, e Francisco Sá de Meneses.

O meu pai fica feliz, e regressamos a casa, não sem antes termos passado pela livraria, para vermos a beleza da montra: um busto de Camões, e várias edições de “Os Lusíadas”, acompanhadas de edições de “A Fome de Camões”, de Gomes Leal, “Camões” de Almeida Garrett e “Camões” de António Feliciano de Castilho –livros que eu todos os anos morro de medo que o meu pai se lembre de me mandar ler. Até agora, felizmente, tenho escapado.
Depois ao jantar o meu pai recorda os grandes festejos do terceiro centenário — as luzes, o cortejo, os barcos no rio — e remata:

- Eu tinha 16 anos, e marcou-me para a vida.

Nesse momento sabemos que a evocação está terminada, e a vida volta ao normal.
O meu pai está sempre a dizer que é uma vergonha o10 de Junho não ser feriado.
(De resto, eu acho que é uma vergonha os dias todos não serem feriados, porque em todos eles deve ter acontecido qualquer coisa de extraordinário ao longo destes 1910 anos…)
E acrescenta:

- Claro que se fosse um santo tinha direito a isso e a muito mais…É ver o que acontece com o Santo António!...

Aí eu já não digo nada, porque no dia de Santo António vou sempre com a Rosa e o Alfredo aos arraiais de Alfama. Comem-se sardinhas, há muita música, e gosto de ver os tronos.
O Alfredo, que sabe muitas coisas, já me contou que este hábito de fazer os tronos e pedir uma moedinha para o santo vem de muito longe, do ano de 1755, quando um grande terramoto destruiu Lisboa. Esta foi então uma das maneiras que o povo encontrou de arranjar dinheiro para a reconstrução da cidade.
Fico a pensar que se o povo se lembrasse de fazer tronos de Santo António para arranjar dinheiro para a revolução, se calhar a República já cá estava.
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«JN» de 12 Jun 10

sábado, 5 de junho de 2010

O CENTENÁRIO DA ARGENTINA

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Por Alice Vieira


Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

POR TODA A PARTE se ouve falar da república e de conspirações. Pelo que ouço, toda a gente conspira. E toda a gente sabe que toda a gente conspira!
Acho mesmo que só o rei é que não sabe.
Um dia acorda, e tem uma grande surpresa, olá se tem.
Mas enquanto não acorda, anda nas festas do costume. Esta semana, por exemplo, festeja-se o centenário da Argentina.

A Argentina era uma colónia espanhola mas, depois de muitas lutas, conseguiu ser país independente — e republicano!
Quando penso que Portugal já é independente há quase oitocentos anos, fico espantado por haver países que são independentes há tão pouco tempo!
Segundo conta o meu pai, as coisas na Argentina andam complicadas (pelos vistos a república não resolve tudo…) e estes festejos, que têm carácter internacional, são mais para fazer esquecer o que verdadeiramente lá se passa.
Mas, apesar disso, lá fez a montra da livraria a chamar a atenção das pessoas para o acontecimento.
Só que em vez de pôr a fotografia do presidente (que passou esta semana por Lisboa, numa visita relâmpago, apenas o tempo de ir cumprimentar o rei e as rainhas ás Necessidades) pôs fotografias de heróis argentinos — e heróis, felizmente, todos os países têm.
A Argentina tem Simon Bolívar e José de San Martín.

No colégio, a propósito destas comemorações, aprendemos a sua história, as suas lutas, e como dedicaram a vida a libertar todos os povos do poder de Espanha, e saímos todos para a rua a berrar “liberdade ou morte!”
Ao lado dos retratos dos heróis o meu pai colocou ainda uma placa, onde ele próprio tinha escrito em letra desenhada, uma frase de Bolívar num dos seus primeiros discursos:

................“Juro pelo deus de meus pais
................Juro por eles
................Juro pela minha honra
................Juro pela minha pátria
................- que não darei descanso ao meu braço nem repouso à minha alma até ter conseguido quebrar as grilhetas que subjugam os nossos povos ao poder espanhol.”

Mas para não se dizer que não falava de livros — sempre era a montra de uma livraria… - colocou em lugar de destaque uma obra - “El Gaúcho Martin Fierro” e “La Volta de Martin Fierro” - de um poeta argentino chamado José Hernández.
O meu pai diz que se trata do livro mais importante da literatura argentina, que fala das lutas de gaúchos (uma espécie de cowboys) e de índios, dos combates pela terra quando começou a construção das linhas de caminho de ferro, a luta pelo domínio das pampas (uma espécie de pradaria) e contra a exploração.

- Uma espécie de “D.Quixote” — diz ele.

Eu não quero desdizê-lo mas parece-me mais uma espécie de Texas Jack-- mas com a desvantagem de ser em espanhol, em verso, e em dois volumes…
Fora isto, foi uma semana pacífica: está a decorrer o Concurso Hípico Internacional (lá vai o rei a todas as provas…), a minha mãe ainda não estreou a máquina de costura nova, e a casa toda cheira a Heno de Pravia.

«JN» de 5 Jun 10