terça-feira, 17 de julho de 2012

FÉRIAS GRANDES


Por Alice Vieira

JÁ NÃO sabia as vezes que tinha feito, desfeito e refeito a mala.
- Raio de tempo… --murmurou.
O marido largou o jornal e as palavras cruzadas e sorriu:
- Ninguém te entende…Se chove é porque chove, se faz sol é porque faz sol…
Deixou-se cair no sofá. Não era nada disso e ele sabia.
- O que eu queria era o tempo certo. Fiável. Dantes, quando íamos de férias no verão, levávamos roupa leve, um guarda-chuva, vá lá, por mera precaução, mas nunca enchíamos a mala de camisolas, casacos, meias…
No verão anterior nunca conseguira largar o casaco de fazenda. Mesmo as pessoas daquela praia do norte, habituadas a pouco calor, diziam que nunca se lembravam de um tempo assim, o vento a levar tudo atrás, tempestades de areia, as pessoas dias inteiros enfiadas em casa. Lembra-se até que a Goretti, amiga de há muitos anos, lhe tinha telefonado a dizer “se quiseres lareira, arranja-se!”
Só por vergonha não aceitou.
- O que eu queria…
- O que tu querias – riu o marido -- era ser criança, confessa! Quatro meses de férias, um verão que nunca mais acabava, as ”férias grandes” dizíamos nós, sem preocupações nenhumas…Mas isso, minha querida, isso era o paraíso, e já devias saber que, quando nos tornamos adultos, os paraísos desaparecem.
Regressou às palavras cruzadas, repetindo:
- Era mesmo o paraíso.
Ela voltou a enfiar mais umas camisolas na mala.
 Sempre que o verão aparecia no calendário (e, cada vez mais , só mesmo no calendário) vinha-lhe aquela estúpida saudade da infância, ela que nunca tinha saudades de nada, muito menos da infância, ficava amarrada à recordação da quinta, do grande plátano diante da casa, da ruazinha orlada de cedros que levava ao muro que dava para a outra quinta, onde vivia a família do António.
O António vivia sempre enfiado lá em casa, lia os números atrasados da “Mecânica Popular” que os irmãos dela colecionavam e iam deixando na quinta, quando chegava a hora de voltar para Lisboa, e fazia coisas complicadíssimas com as peças do Meccano.
- Hei de ser engenheiro…-- garantia ele
Mas houve um dia em que ele largou a revista e o Meccano e lhe disse:
- Vamos dar uma volta.
Os pais tinham saído, a caseira andava distraída no galinheiro, os irmãos tinham pegado nas bicicletas e desaparecido.
Foi na ruazinha dos cedros que então o António lhe perguntou:
- Queres ser minha namorada?
E ela sem saber o que responder, porque acabara de fazer 12 anos e nunca tinha tido um namorado.
Mas durante aquele verão foram namorados.
E foi um verão muito quente, e os dias eram enormes, e as noites parecia que ardiam.
Até que um dia o pai chegou muito zangado a casa, porque tinha ouvido não sei o quê no café, mandou a mãe fazer as malas e voltaram para Lisboa mais cedo do que era habitual. Nunca o pai lhe disse o que acontecera, mas a verdade é que ela nunca mais voltou a ver o António, que nas férias seguintes já não morava naquela casa ao lado do muro da rua dos cedros.
Às vezes dá consigo a pensar no que lhe terá acontecido, se será engenheiro, se terá emigrado, se estará casado e pai de família. Como era possível as pessoas desaparecerem assim das nossas vidas.
Deve ter suspirado com muita força porque o marido perguntou:
- Disseste alguma coisa?
Não respondeu.
Pensava ainda na palavra “paraíso”.
-
«Activa» de Julho 2012

domingo, 8 de julho de 2012

A PRAIA, HÁ MUITOS ANOS

Por Alice Vieira

MUITAS vezes penso como foi que nós – ou seja, todos os que já temos para lá de 50 anos – conseguimos sobreviver.

Como foi que conseguimos ser crianças, adolescentes, andar na escola, aprender. Como foi que conseguimos ser gente sem nos terem levado ao psicólogo. Como foi que crescemos mais ou menos saudáveis, sem ficarmos traumatizados por esse tempo pré-histórico em que – segundo os padrões de hoje – nada havia.

Para vocês deve ser praticamente impossível imaginar um mundo sem telemóveis, sem computadores, sem Power-points, sem tv interativa, sem downloads, sem i-Pad ou i-Pod, ou i-Outra Coisa Qualquer. Um mundo sem discotecas, sem mochilas às costas, sem inter-rails, sem férias em Lloret del Mar, sem Erasmus.

Até a mim – juro – me custa a acreditar.

Mas existiu.

E sobrevivemos.

E fomos tão felizes como vocês. Só que de outra maneira.

Quando chegam os meses de verão, por exemplo, lembro-me das minhas idas à praia, quando eu era muito criança. Vivíamos perto de Sintra mas, não sei porquê, os adultos lá de casa não seguiam, como destino comum de quem vivia naqueles lugares, para a Praia das Maçãs.

Não.

Armavam-se como se fôssemos para uma expedição para o deserto, e marchávamos para a Praia do Guincho.

Há 60 anos, a Praia do Guincho não existia. Ou seja, existia um imenso areal deserto, um mar bravo de meter medo ao susto, dunas onde os pescadores tinham construído umas minúsculas casotas para se abrigarem em caso de tempestade maior – e mais nada. Rigorosamente mais nada.

Nem pessoas, evidentemente, a não ser os pescadores na sua faina.

Ah, por acaso havia também um barracão mal amanhado no cimo das arribas, junto à estrada, que era uma espécie de restaurante de um senhor galego chamado Muxaxo, que gostava muito de nós porque éramos os únicos a descer à praia (e se era complicado descer por aquelas rochas até chegarmos ao areal!).

Fazia sempre muito mau tempo no Guincho. Mesmo quando fazia bom tempo no resto do país. Muito vento, muito frio e — nunca percebi porquê – enxames de abelhas desvairadas a atacar os invasores…

Então os adultos lá de casa, todas as manhãs, antes de sairmos, telefonavam para a barraca do Sr. Muxaxo para saber como estava o tempo. E o Sr. Américo ou a Josefa (que eram os únicos empregados) lá nos serviam de boletim meteorológico.

Mas mesmo que as precisões não fossem das melhores – raramente eram… – a gente marchava para lá. Era preciso haver uma tempestade muito, muito, mas mesmo muito grande para desistirmos. (E não, os adultos lá de casa nunca pensaram que podíamos apanhar resfriados ou gripes. E a verdade é que nunca apanhámos.) Connosco marchavam também mantas, cadeiras de verga, casacos, repelentes de insetos, mas não me lembro de alguma vez termos levado protetor solar.

As onze da manhã eram o ponto mais dramático do dia. Nós, os miúdos da casa, até tremíamos, mas nem pensar em fugir ou dizer que não.

Era a hora em que chegava o Sr. António.

O Sr. António pescava robalos, que vendia aos adultos da casa e, depois de feito o negócio, olhava para nós, esfregava as mãos e dizia “vamos lá a isto”.

E nós todos íamos atrás dele até à beira mar. Punha-nos em linha e depois, com uma das mãos apertava-nos o nariz e com a outra rodeava-nos o corpo e atirava-nos ao mar – e a gente que se desenvencilhasse. Lá longe, ao abrigo da barraca de lona, os adultos da casa nem se dignavam olhar.

Gritávamos, esbracejávamos, engolíamos litros e litros de água salgada, faltava-nos o ar -- mas foi assim que nós todos aprendemos a nadar na perfeição. Porque quem escapa ao mar do Guincho escapa a todos os mares do mundo.

E nenhum de nós ficou traumatizado.

Vou muito pouco ao Guincho, mas tenho sempre muitas saudades desse tempo, e sobretudo do sorriso do Sr. Américo e da Josefa. Nunca me lembro deles sem estarem a sorrir para nós. Sorriam muito, sorriam sempre.

 Hoje o progresso dá-nos muitas coisas melhores – mas acho que as pessoas sorriem menos.

(In “Audácia”, revista juvenil dos Missionários Combonianos, número de Junho 2012)