sexta-feira, 15 de abril de 2011

DIAS ÚTEIS

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Por Alice Vieira

TODAS as manhãs, nestes últimos dez anos, fazia o mesmo percurso.
Com excepção para os dias de folga.
Aí mudava um bocadinho, embora os passos fossem sensivelmente os mesmos, nos mesmos lugares. Via apenas outros rostos, os dos dias de semana estavam já, àquela hora, encaixados nos seus guichés, nos seus balcões, atrás de secretárias.
Nos dias de folga era ligeiramente diferente, o rapaz da leitaria dizia “hoje vem mais tarde”, ela respondia “é o meu dia de folga”, sempre, durante estes dez anos que ali tem vivido.
Entretanto o rapaz envelheceu dez anos, tal como ela, até já tem um filho de 7 anos, soube-o pela porteira, porque ela não gosta de grandes intimidades. Sempre falou apenas o que era necessário falar. Nem os vizinhos consegue encaixar nos seus andares, é “bom dia” ou “boa tarde” se os encontra no elevador, e não mais que isso.
Há dez anos o rapaz da leitaria nem sequer tinha barba e fazia uma voz esganiçada quando ela entrava, “bica e croissant para a D.Laura!”.
Às vezes não lhe apetecia nada bica e croissant, mas tinha a sensação de estar a cometer qualquer pecado se, em vez disso, pedisse meia de leite e um queque.
- Vem hoje mais tarde! — diz-lhe o rapaz da leitaria
E ela já não responde “é o meu dia de folga”, porque a partir de agora todos os dias são de folga.
Começa a pensar em quantos cafés bebeu, em quantos croissants comeu nestes anos todos, mas desiste, não são pensamentos próprios para a sua idade, e na sua idade só se devem ter pensamentos úteis, que sirvam para alguma coisa.
Tal como as conversas.
- Como vai o seu filho na escola? - pergunta ao rapaz, na hora de pagar, e logo se admira das suas palavras, que necessidade tinha de entrar em intimidades .
- Lá vai…- respondeu ele, admirado também. (Mais tarde dirá ao patrão, “a velhota do 54 estava hoje muito esquisita”, e o patrão há-de responder, “é da idade, coitada! qualquer dia dá-lhe um badagaio e vai desta para melhor”)
Ela levanta-se da mesa, olha para o relógio como sempre tem feito, embora, a partir de agora não haja horários a cumprir, e procura as chaves dentro da mala.
Atravessa a placa, resmunga qualquer coisa quando vê o caixote do lixo ainda na rua, entra em casa.
Fecha a porta e encosta-se a ela.
- E agora? – diz para si própria.
É então que ouve o telefone.
Ninguém lhe costuma telefonar para o fixo, está quase decidida a nem atender, mas muda de ideias e corre até à sala, e do lado de lá perguntam “é a D. Elisa?”, e ela ri e responde, quase nem se reconhecendo, “não, é a D. Laura, não serve?”
E a pessoa deve ter sentido de humor e nenhuma pressa, ou se calhar também está pela primeira vez em casa e não no emprego, porque ainda fica uns minutos à conversa, rindo de coisa nenhuma.
Quando desliga, a casa parece-lhe cheia de barulhos que não reconhece. Quem estará no andar de cima com aspirador àquela hora?
Então volta a vestir o casaco, e vai ao café, e desta vez há-de pedir meia de leite e um queque, e há-de saber a história toda do filho do rapaz — tudo, para conseguir esquecer a sua própria casa, à luz da manhã de um dia útil.

«ACTIVA» de Abril 2011

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