domingo, 10 de julho de 2011

NOSSA SENHORA E A PÁTRIA

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Por Alice Vieira

AGORA não se rala muito mas, em miúda, sempre que falava no caso, todos atiravam as culpas para cima dos outros, e assobiavam para o ar.
Desde que se lembrava de ser gente e de ter direito a fazer perguntas (o que, lá em casa, era direito que chegava muito tarde) nunca ninguém lhe conseguiu dar resposta cabal.
O pai dizia:

- Eu nunca me meti nisso.

A mãe dizia:

- Eu estava mais para lá que para cá, aceitei o primeiro nome que me propuseram.

E os padrinhos garantiam que nem sequer tinham sido consultados.
Por isso levou a vida inteira sem ter um culpado a quem dirigir setas de raiva pelo facto de, num tempo de Cátias Sofias e Vanessas Alexandras, ter sido baptizada com o nome de Maria de Portugal.
E a mãe, sempre tão pronta a arranjar diminutivos para tudo (“este solinho é uma bênção!”, “ o cozidinho estava que era um regalo!”) — no que tocava a nomes era inflexível:

- Nome é a coisa mais importante que temos, fica no BI a vida inteira, nada de brincadeiras.

Por isso ela nunca foi “Mariazinha”, nem “Mimi”, nem “Micas” – nem, evidentemente, “Portugalzinha”…
Claro que, nos seus primeiros anos de criança, isso era questão que não a incomodava.
Se uma pessoa lhe perguntava o nome, atrapalhava-se um bocadinho a responder, mas havia sempre alguém por perto que a ajudava, e ela não tinha ainda discernimento para descodificar o olhar que no fim a pessoa lhe lançava, “coitadinha, o que te havia de acontecer”.
Mas um dia veio a escola.
E foi aí que tudo se complicou.
Nunca mais na vida há-de esquecer a professora de Religião e Moral, logo na primeira aula, a recordar-lhe a enorme responsabilidade que pesava nos seus ombros:

- Lembra-te, Maria de Portugal: tens de ser um exemplo para todos os teus colegas, um modelo de virtudes, tens de te portar sempre muito bem, porque trazes em ti Nossa Senhora e a Pátria.

Convenhamos que era demais para uma criança de seis anos: chegou a casa e chorou o dia inteiro.
Não fazia a mínima ideia do que quereria dizer “um modelo de virtudes”, mas portar-se sempre bem era destino que não a atraía.
A mãe quis saber o que tinha acontecido, mas ela não foi capaz de explicar.
Nunca soube o que aconteceu depois.
Nem perguntou. A princípio, porque ainda não estava na idade de poder fazer perguntas.
Mais tarde, porque já não lhe interessava.
Mas nunca mais se há-de esquecer da mãe, dias depois, vestindo-lhe uma saia verde e uma blusa vermelha e, no calor daquele feriado de Junho, meter-se com ela no eléctrico até ao Largo de Camões, fazendo-a sair aí e empurrando-a até junto da estátua.
Ela não sabia de quem era aquela estátua, nem lhe interessava por aí além.
A mãe desatou a contar uma história de que ela também não percebeu metade – mas a metade que percebeu deu para entender que, pelo facto de ter aquele nome, aquele era um dia só seu:

- Dia de Portugal! - repetia a mãe. Acrescentando:
- Dia só teu e daquele senhor! - apontando para o alto da cabeça “daquele senhor”, cheia de pombos.

Lembra-se de repente de uma imagem de Nossa Senhora, também rodeada de pombos, que está no livro de Religião.
Olha para os pombos sobre a estátua e tem a certeza de que “aquele senhor” deve chamar-se “Portugal”.
Só pode.
Nossa Senhora e a Pátria.
E sente-se feliz por ter um companheiro de infortúnio.
Quem sabe se um dia também ela vai ter direito a estátua – com muitos, muitos pombos à cabeça.

«Activa» de Junho de 2011

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