Por Alice Vieira
DEIXA-SE cair na cadeira que dá para o corredor, há-de dormir a viagem toda, porque está cansada de dias seguidos a subir e descer de aviões, faz rapidamente as contas e em dez dias já entrou e saiu de oito aviões, e ela já não tem propriamente 20 anos. Fora isto mesmo que dissera ao jovem que a viera acompanhar ao aeroporto, e ele atirara-lhe com o habitual “o que interessa é a juventude de espírito”, coisa em que, evidentemente, só os jovens é que acreditam. Ela sorriu e lembrou-se do Rafael, que fugazmente tinha passado pela sua vida e que, nos seus últimos anos, a essa frase respondia sempre “o pior é que a juventude de espírito não me ajuda a subir escadas”.
“Qualquer dia também estou a dizer o mesmo”, pensa, enquanto põe o cinto de segurança, e tira o livro da mala, embora saiba que nem o vai abrir. Sente-se embalada por aquele bruaá característico dos aviões, choros de crianças, risos, línguas várias, o barulho dos motores, está quase a fechar os olhos.
É então que ouve a passageira do lado perguntar-lhe, num inglês arrastadamente americano, se é de Portugal ou se vai de visita.
É uma velhota loira platinada, a pele esticada de botox ou outra coisa semelhante, olhos piscos dos muitos dry-martinis ou gin-tónicos. Deve ser das que vivem na Califórnia, entre praias, palmeiras, t-shirts de papagaios e velhas missões mexicanas transformadas em hotéis.
Diz-lhe que sim, que é portuguesa e regressa a casa, e espera que a conversa fique por ali, dormir é tudo quanto deseja, e sonhar com os presépios com que vai inundar a sala assim que chegar, e o cheiro a canela a espalhar-se por todos os cantos.
Mas a americana não se cala, e sem ela perguntar nada vai dizendo que não gosta de sair de Santa Mónica, mas a filha e os netos vieram para este fim do mundo (“sorry!”, acrescenta logo), e é o primeiro natal que estão longe, por isso decidiu-se a apanhar o avião. De Portugal sabe apenas que “é um país muito, muito pequenino”, não é verdade?
Ela esteve para lhe dizer que era ainda mais pequenino que Santa Mónica, mas teve medo que o sentido de humor californiano não chegasse até aí e contentou-se em acenar com a cabeça.
A velhota vai embalada na conversa, a filha também lhe disse isso mesmo, embora não se falem muito, e por isso ela tem tanta curiosidade, ela nunca esteve num país pequenino, a bem dizer nunca saiu dos EUA que, evidentemente, não conhece totalmente porque esses sim são um país muito, muito grande.
De repente, encara-a com os olhos ainda mais piscos, e pergunta: “Como é viver num país onde todos se conhecem? Sim, porque vocês devem conhecer-se todos, how nice, how nice…!”
Ela tem vontade de lhe dizer que ainda o país dela não era país e já nós andávamos a fazer pela vida por terra e mar, conhecidos e desconhecidos – mas desiste. Para quê. É agora que vai mesmo dormir, não aguenta mais, o patriotismo que fique para depois.
Só acorda no fim da aterragem.
Por um daqueles acasos da vida, há uma funcionária em terra que a conhece e lhe vem dar beijinhos e desejar feliz Natal – enquanto a velhota passa por elas, e desaparece na porta de saída, abanando a cabeça e repetindo “how nice, how nice!...”
Para quê tirar-lhe as ilusões, ainda por cima em tempo de paz entre as pessoas.
ACTIVA de Dezembro de 2011
DEIXA-SE cair na cadeira que dá para o corredor, há-de dormir a viagem toda, porque está cansada de dias seguidos a subir e descer de aviões, faz rapidamente as contas e em dez dias já entrou e saiu de oito aviões, e ela já não tem propriamente 20 anos. Fora isto mesmo que dissera ao jovem que a viera acompanhar ao aeroporto, e ele atirara-lhe com o habitual “o que interessa é a juventude de espírito”, coisa em que, evidentemente, só os jovens é que acreditam. Ela sorriu e lembrou-se do Rafael, que fugazmente tinha passado pela sua vida e que, nos seus últimos anos, a essa frase respondia sempre “o pior é que a juventude de espírito não me ajuda a subir escadas”.
“Qualquer dia também estou a dizer o mesmo”, pensa, enquanto põe o cinto de segurança, e tira o livro da mala, embora saiba que nem o vai abrir. Sente-se embalada por aquele bruaá característico dos aviões, choros de crianças, risos, línguas várias, o barulho dos motores, está quase a fechar os olhos.
É então que ouve a passageira do lado perguntar-lhe, num inglês arrastadamente americano, se é de Portugal ou se vai de visita.
É uma velhota loira platinada, a pele esticada de botox ou outra coisa semelhante, olhos piscos dos muitos dry-martinis ou gin-tónicos. Deve ser das que vivem na Califórnia, entre praias, palmeiras, t-shirts de papagaios e velhas missões mexicanas transformadas em hotéis.
Diz-lhe que sim, que é portuguesa e regressa a casa, e espera que a conversa fique por ali, dormir é tudo quanto deseja, e sonhar com os presépios com que vai inundar a sala assim que chegar, e o cheiro a canela a espalhar-se por todos os cantos.
Mas a americana não se cala, e sem ela perguntar nada vai dizendo que não gosta de sair de Santa Mónica, mas a filha e os netos vieram para este fim do mundo (“sorry!”, acrescenta logo), e é o primeiro natal que estão longe, por isso decidiu-se a apanhar o avião. De Portugal sabe apenas que “é um país muito, muito pequenino”, não é verdade?
Ela esteve para lhe dizer que era ainda mais pequenino que Santa Mónica, mas teve medo que o sentido de humor californiano não chegasse até aí e contentou-se em acenar com a cabeça.
A velhota vai embalada na conversa, a filha também lhe disse isso mesmo, embora não se falem muito, e por isso ela tem tanta curiosidade, ela nunca esteve num país pequenino, a bem dizer nunca saiu dos EUA que, evidentemente, não conhece totalmente porque esses sim são um país muito, muito grande.
De repente, encara-a com os olhos ainda mais piscos, e pergunta: “Como é viver num país onde todos se conhecem? Sim, porque vocês devem conhecer-se todos, how nice, how nice…!”
Ela tem vontade de lhe dizer que ainda o país dela não era país e já nós andávamos a fazer pela vida por terra e mar, conhecidos e desconhecidos – mas desiste. Para quê. É agora que vai mesmo dormir, não aguenta mais, o patriotismo que fique para depois.
Só acorda no fim da aterragem.
Por um daqueles acasos da vida, há uma funcionária em terra que a conhece e lhe vem dar beijinhos e desejar feliz Natal – enquanto a velhota passa por elas, e desaparece na porta de saída, abanando a cabeça e repetindo “how nice, how nice!...”
Para quê tirar-lhe as ilusões, ainda por cima em tempo de paz entre as pessoas.
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