terça-feira, 24 de abril de 2012

A GUARDIÃ DA CASA

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Por Alice Vieira

DE VEZ em quando tenho mesmo de arrumar livros.
É trabalho difícil e moroso porque, mesmo que à partida eu pense “vou só arrumar as estantes da entrada”, pego num livro, olho para ele e digo cá para mim, “os deste autor estão todos na estante da sala”- e lá vou eu com ele para a estante da sala mas, para o conseguir encaixar, tenho de desalojar para aí uns dez, e onde é que há lugar para eles? Se calhar só na estante do corredor – e, de repente, dou comigo com os livros das estantes da entrada e da estante da sala e da estante do corredor todos no chão, e eu no meio sem saber para onde me virar.
Daí que o mais habitual é os meus livros amontoarem-se ao Deus dará mas – coisa estranha! – sei sempre onde está aquele de que preciso.
Mas dizia eu que de vez em quando há que fazer arrumações.
Fica bem, os filhos aplaudem (“ó mãe, até que enfim, isto era uma caos!”), a neta mais nova torce o nariz (“ó Vó, e agora onde é que está o “Cuquedo”?! “O “Cuquedo” é um livro que ela sabe de cor e ama de paixão e devia ser leitura obrigatória para todos os menores de 6 anos…)
E, como sempre acontece,nestas arrumações encontramos sempre qualquer coisa que julgávamos perdida, ou de que já não nos lembrávamos.
Foi o caso.
No alto da última prateleira da estante da entrada, aonde raramente vou( o meu metro e 50 não chega, e nem sempre dá jeito ir buscar o escadote à arrecadação) dou com uma jarra minúscula de Vista Alegre, fundo branco e flores cor de rosa pálido, donde se ergue uma espiga de trigo.
Há quantos anos esta espiga ali está! Ressequida, parece quase daquelas espigas falsas que agora é moda meter pelo meio dos ramos de fores, juntamente com joaninhas de plástico e ananases anões.
Mas esta é verdadeira.
Veio comigo de S. Paulo há 24 anos – e ainda ali está.
Era Agosto, e eu estava, com muitos outros escritores portugueses, num Salão do Livro. De repente as notícias da rádio, e depois as das televisões, sobrepuseram-se a tudo o mais: Lisboa estava em chamas.
Com todo aquele mar a separar-nos, as notícias eram desencontradas, não se falava do Chiado, falava-se de Lisboa.
Lisboa inteira ardia – era assim que a notícia chegava aos nossos ouvidos.
Era num tempo em que ainda não se sonhava com telemóveis, e as ligações telefónicas eram complicadas.
Lembro-me de que estava numa cantina a jantar.
Lembro-me de que eram quase duas da manhã.
Lembro-me de que todos estávamos de cabeça perdida, a querer ir embora dali o mais depressa possível.
Lembro-me de me levantar da mesa e dizer “vou já ao hotel e de lá para o aeroporto”, e todos a berrarem que era uma loucura, sozinha àquela hora nas ruas de São Paulo, que esperasse, mas eu não queria esperar nem mais um minuto e saí.
Andei algum tempo à procura de táxi – quando de repente vejo um negro, enorme, meio esfarrapado, a caminhar, de braços abertos, na minha direção.
Pensei “é agora, já nem vou chegar a Lisboa!”, e o negro cada vez se aproximava mais, e dizia qualquer coisa que eu não percebia, cambaleava, perdido de bêbado.
Chega junto de mim, a chorar e a tresandar a cachaça e a miséria. Põe uma mão no meu ombro (“é agora!...”) e estende-me uma espiga, que traz na outra mão.
- É para você, moça! É para você, porque Lisboa está a arder e eu estou muito triste! Leve! É para você…
Ainda hoje não sei como a espiga não se perdeu na barafunda da partida e na emoção da chegada.
Mas, se não se perdeu nessas terríveis horas de confusão, não é qualquer situação caótica de livros que a vai derrubar.
E coloco-a de novo onde sempre esteve.
A vigiar a casa.

Revista juvenil “Audácia”, Abril 2012

4 comentários:

  1. Alicinha:
    A primeira parte da sua crónica, fez-me rir. Pensei estar a ver-me ao espelho. Quantas vezes tenho corrido das duas salas,onde tenho estantes, para o corredor onde estão mais duas, tentando arrumar a torre de Pisa de livros, que na mesa de cabeceira, esperam morada certa!
    A segunda parte comoveu-me muito.
    Eu estava cá e ouvi tudo na telefonia. Escaldada, com o falhanço das Caldas, duvidei.
    A pouco e pouco, fui-me entusiasmando e não dormi. Passei a noite agarrada à telefonia. Ri, chorei, tremi.
    Aonde está a alegria daquele dia? Que fizeram aos cravos?
    Resta-nos a recordação do dia, em que sentimos a sensação de que éramos, finalmente livres.
    Beijinho
    Maria
    PS: Guarde a espiga.

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  2. Querida Maria
    a proximidade da data deve tê-la feito "ler" outra história...Isto não é o 25 de Abril, isto é o incêndio do Chiado!!! Lisboa ardia mesmo, não era metáfora...
    Bjs
    ALICE

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  3. Alicinha:
    Foi isso.
    Sabe? Não me parecia impossível, que com as comunicações de há 38 anos, a notícia da Revolução chegasse ao Brasil, como um incêndio.
    O fogo do Chiado marcou-me muito. Era o coração da minha Lisboa a arder. Calhou, no mesmo dia, em que o meu filho mais velho foi para Mafra.
    Foi um dia horroroso. Sem saber do filho, o Chiado a arder e eu lavada em lágrimas, pelas duas coisas.
    Mas, guarde a espiga na mesma, amiga. É uma lembrança doce, de um dia amargo.
    Beijinho.
    Maria

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  4. Uma simples espiga e quantas recordações guarda!...

    O incêndio no Chiado foi para mim como uma notícia vinda de muito longe, a acontecer num lugar mais longe ainda, mas esse mês foi bastante profícuo em acontecimentos que deixaram marcas. Associo sempre certos acontecimentos da minha vida ao incêndio no Chiado, e nem sequer sei onde isso fica a não ser que é em Lisboa. Mas nunca estive em Lisboa a não ser de passagem...

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