sábado, 7 de abril de 2012

OLHANDO O RIO

Por Alice Vieira

ELISA ENTROU no café porque era o único lugar onde lhe poderiam dizer onde ficava a rua. Teresa explicara-lhe tão à pressa a morada da casa nova que nem dera para entender.
Elisa pede uma bica, para não dizer que não faz despesa, mas o empregado também não sabe muito bem, é novo no café e não mora ali.
É então que o cliente de uma mesa ao fundo lhe dá as informações que ela pretende.
O homem levanta-se com dificuldade, deixa escapar um gemido, os ossos devem massacrá-lo, estica o braço para explicar melhor, vem até à porta arrastando muito os pés, e aponta-lhe a transversal que ela deve apanhar. É muito alto, ela tem de esticar o pescoço para o olhar de frente e agradecer.
Até deixou cair a carteira, quando o reconheceu.
Ele ainda esboçou um gesto para a apanhar, mas ela foi mais rápida, ”não se incomode!”
Só parou na esquina.
Como era possível.
Tinham-se conhecido há mais de 20 anos, e iam casar em Abril.
Ou melhor: tinham-se conhecido na festa de anos da Teresa e, depois de terem dançado umas seis vezes seguidas, ele tinha-lhe dito:
“Daqui a um ano, exactamente neste dia, e às 3 da tarde, vamos encontrar-nos no Alto de Santo Amaro, olhamos o rio, e depois casamos.”
Ela riu:
”Como no filme?”
“Como no filme, mas sem aquela parte da entrevadinha, claro! E com melhor vista!”
Tornaram a rir, e prometeram que não faltariam.
Embora tivesse a certeza de que ele nunca mais se iria lembrar, um ano depois, naquele dia e à hora marcada, ela subiu até ao Alto de Santo Amaro - onde evidentemente, ele não pôs os pés. Lembra-se de ter olhado o rio, de ter dado não sei quantas voltas à ermida, e esperado uma hora, apenas por descargo de consciência, porque sempre soubera que essas coisas só acontecem nos filmes.
E agora, vinte anos depois, vai dar com ele naquele café, a arrastar os pés, a gemer das artroses, com a voz entaramelada dos velhos, a falar para ela sem a reconhecer.
“Nem fazes ideia quem é que eu encontrei!” - exclama, assim que Teresa lhe abre a porta.
Teresa fica tão admirada como ela, também nunca mais o tinha visto, parecia que se tinha evaporado nesse dia há 20 anos e, nunca se lembra de o ter encontrado naquele café desde que se mudara para a casa nova.
“Se calhar encontraste e não o reconheceste! Está um velho caquético, que aflição!”
Riram ambas, “olha o que te esperava agora!”,e concordaram em que tinha sido uma felicidade ele não ter aparecido às três da tarde no Alto de Santo Amaro : Elisa tinha acabado por casar com o Carlos, que ainda era um bonito homem.
Ficam ambas naquela gostosa conversa de amigas em fim de tarde, enquanto no café o homem das artroses conta ao empregado que há uma data de anos tinha conhecido aquela fulana que entrara a pedir informações, até pensara em casar com ela.
“Então e agora não lhe disse nada?”, espantou-se o rapaz.
“Mas você está maluco? Combinámos um encontro para dali a um ano, coisa romântica, está a ver?, tínhamos visto um filme assim, e as mulheres gostam todas dessas coisas…”
“E ela?”
“Não apareceu. Eu ali feito parvo, no alto de Santa Catarina, mais de uma hora a olhar para o rio, e ela nada!”
Pagou a despesa, resmungou “as mulheres nunca são de fiar”, e saiu, arrastando os pés e gemendo das artroses.
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«ACTIVA» de Abril 2012

1 comentário:

  1. "O grande amor da minha vida", Deborah Kerr, Cary Grant, à portuguesa. Que lembranças me trouxe, Alicinha. Ainda hoje, aos 67 anos, choro com o filme.
    Apetece-me dizer, como o Calvário: Mocidade, mocidade...
    Beijinho e Boa Páscoa
    Maria

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