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Por Alice Vieira
VENHO ao Corvo em trabalho e aterro na ilha a saber só o que toda a gente sabe: é a mais pequena dos Açores.
O Presidente da Câmara explica que não vou ficar na Residencial porque em Outubro está cheia, “e até 2015 está tudo reservado”.
O Corvo é o paraíso dos ornitólogos. Em Outubro eles vêm de todo o do mundo, para filmar as aves em trânsito, captar-lhes o canto, tentar perceber as rotas que as trouxeram aqui.
Largo a bagagem e dizem-me que é melhor ir já ver a cratera do vulcão, “porque a gente aqui não se pode fiar no tempo e, se houver nuvens, não se vê nada.”
Minutos depois, no alto da estrada, abre-se a nossos pés a cratera do antigo vulcão, um manto de turfa a rodeá-la, de um verde que faz doer os olhos. Dizem-me que estas turfeiras são as menos conhecidas da Europa, e eu acredito. Quem se arrisca a vir a este fim do mundo e, por precipícios e rochas negras de basalto, chegar até aqui? E há que contar com os imprevistos: às vezes os ventos do sul produzem nevoeiros cerrados, a cratera fica escondida e é difícil encontrar o caminho de volta. Felizmente que as poucas nuvens desta tarde permitem que pelos meus olhos entre este panorama esplendoroso. Barulho – apenas o do mar e do vento; presenças – apenas a das vacas.
Olho lá para baixo : há duas lagoas na cratera e algumas minúsculas ilhas pelo meio delas. Diz a tradição que a configuração dessas ilhotas é a representação de todas as ilhas do arquipélago. A tradição lá sabe, embora à primeira vista me pareça um tanto exagerado.
Regresso à vila. A única do Corvo.
Não quero incomodar ninguém, por isso peço um táxi que, no dia seguinte, me leve a dar uma volta pela ilha. Sorriem, um sorriso igual a todos os que me dão à medida que vou fazendo perguntas para as quais a resposta é sempre a mesma: “não há.”
Táxis? Não há, nem qualquer transporte público.
Jornais? Não há.
Uma tabacaria? Não há.
Uma loja qualquer? Não há.
Mercado? Não há.
Adormeço na angústia de ficar uma semana num local onde não há nada do que me faz falta.
Mas curiosa de ver como existe ainda, à face da terra, uma sociedade onde o consumismo não entrou.
Os dias seguintes se encarregam de me dar novas lições: de que se aprende rapidamente a relativizar, e que passamos muito bem sem aquilo que julgávamos indispensável; e de que estranhos são os caminhos do consumismo.
A frase recorrente por aqui é “manda-se vir”.
Das Flores, pela lancha.
Ou pela net.
Ou por catálogo.
Aqui nada falta – e a dependência da electricidade é total.
Todas as casas têm televisão, net, arca frigorífica, e o mais que o progresso inventar. Tudo se vende, tudo se compra. Dizem-me logo que a Teresinha vende Bimby’s – mesmo antes de eu saber quem é a Teresinha. Se uma família tem uma qualquer maquineta sofisticada – todas as outras compram igual.
O médico da vila, com um olhar crítico, afirma que o Corvo já não é nada do que era há vinte anos. A vida comunitária acabou, os velhos já não se reúnem no Outeiro a resolver os problemas da terra, a televisão domina a vida das pessoas. Pergunto se não seria possível – nesta terra onde não há cinema, teatro, grupo de futebol, onde à tarde os jovens se limitam a beber cerveja no café dos bombeiros - organizar um grupo de leitura (aqui não há analfabetos, e existe uma biblioteca da Gulbenkian), ou de contadores de histórias.
Que não : ninguém largaria a telenovela.
Mas vamos esquecer tudo isto: no Corvo não há pobres, ninguém pede esmola, ninguém passa fome, todos têm um bocado de terra, uma vaca, um porco, e todo o peixe que o mar dá. Os cerca de 400 habitantes do Corvo têm, em abundância, o que falta a toda a gente: tempo. No Corvo – como me dizem por graça – “a gente levanta-se às 9 e 5, para entrar no trabalho às 9”…
Percorro a ilha a pé todos os dias. Encho-me desta solidão e deste silêncio, dos fetos, do zimbro, dos juncos, do verde do mar e do negro das rochas, e sinto que o que a ilha nos dá é fazer-nos sentir que o fundamental é olharmos para dentro de nós, e que olhar para fora é aqui perfeitamente acessório.
Como me dizia o bispo D. Manuel Martins, tentando justificar a pouca afluência nas missas no Corvo, “ as pessoas estão tão dentro desta imensidão, desta lonjura, deste silêncio – para quê irem à Igreja procurar Deus formatado?”
Realmente, para quê.
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Tempos Livres
Por Alice Vieira
VENHO ao Corvo em trabalho e aterro na ilha a saber só o que toda a gente sabe: é a mais pequena dos Açores.
O Presidente da Câmara explica que não vou ficar na Residencial porque em Outubro está cheia, “e até 2015 está tudo reservado”.
O Corvo é o paraíso dos ornitólogos. Em Outubro eles vêm de todo o do mundo, para filmar as aves em trânsito, captar-lhes o canto, tentar perceber as rotas que as trouxeram aqui.
Largo a bagagem e dizem-me que é melhor ir já ver a cratera do vulcão, “porque a gente aqui não se pode fiar no tempo e, se houver nuvens, não se vê nada.”
Minutos depois, no alto da estrada, abre-se a nossos pés a cratera do antigo vulcão, um manto de turfa a rodeá-la, de um verde que faz doer os olhos. Dizem-me que estas turfeiras são as menos conhecidas da Europa, e eu acredito. Quem se arrisca a vir a este fim do mundo e, por precipícios e rochas negras de basalto, chegar até aqui? E há que contar com os imprevistos: às vezes os ventos do sul produzem nevoeiros cerrados, a cratera fica escondida e é difícil encontrar o caminho de volta. Felizmente que as poucas nuvens desta tarde permitem que pelos meus olhos entre este panorama esplendoroso. Barulho – apenas o do mar e do vento; presenças – apenas a das vacas.
Olho lá para baixo : há duas lagoas na cratera e algumas minúsculas ilhas pelo meio delas. Diz a tradição que a configuração dessas ilhotas é a representação de todas as ilhas do arquipélago. A tradição lá sabe, embora à primeira vista me pareça um tanto exagerado.
Regresso à vila. A única do Corvo.
Não quero incomodar ninguém, por isso peço um táxi que, no dia seguinte, me leve a dar uma volta pela ilha. Sorriem, um sorriso igual a todos os que me dão à medida que vou fazendo perguntas para as quais a resposta é sempre a mesma: “não há.”
Táxis? Não há, nem qualquer transporte público.
Jornais? Não há.
Uma tabacaria? Não há.
Uma loja qualquer? Não há.
Mercado? Não há.
Adormeço na angústia de ficar uma semana num local onde não há nada do que me faz falta.
Mas curiosa de ver como existe ainda, à face da terra, uma sociedade onde o consumismo não entrou.
Os dias seguintes se encarregam de me dar novas lições: de que se aprende rapidamente a relativizar, e que passamos muito bem sem aquilo que julgávamos indispensável; e de que estranhos são os caminhos do consumismo.
A frase recorrente por aqui é “manda-se vir”.
Das Flores, pela lancha.
Ou pela net.
Ou por catálogo.
Aqui nada falta – e a dependência da electricidade é total.
Todas as casas têm televisão, net, arca frigorífica, e o mais que o progresso inventar. Tudo se vende, tudo se compra. Dizem-me logo que a Teresinha vende Bimby’s – mesmo antes de eu saber quem é a Teresinha. Se uma família tem uma qualquer maquineta sofisticada – todas as outras compram igual.
O médico da vila, com um olhar crítico, afirma que o Corvo já não é nada do que era há vinte anos. A vida comunitária acabou, os velhos já não se reúnem no Outeiro a resolver os problemas da terra, a televisão domina a vida das pessoas. Pergunto se não seria possível – nesta terra onde não há cinema, teatro, grupo de futebol, onde à tarde os jovens se limitam a beber cerveja no café dos bombeiros - organizar um grupo de leitura (aqui não há analfabetos, e existe uma biblioteca da Gulbenkian), ou de contadores de histórias.
Que não : ninguém largaria a telenovela.
Mas vamos esquecer tudo isto: no Corvo não há pobres, ninguém pede esmola, ninguém passa fome, todos têm um bocado de terra, uma vaca, um porco, e todo o peixe que o mar dá. Os cerca de 400 habitantes do Corvo têm, em abundância, o que falta a toda a gente: tempo. No Corvo – como me dizem por graça – “a gente levanta-se às 9 e 5, para entrar no trabalho às 9”…
Percorro a ilha a pé todos os dias. Encho-me desta solidão e deste silêncio, dos fetos, do zimbro, dos juncos, do verde do mar e do negro das rochas, e sinto que o que a ilha nos dá é fazer-nos sentir que o fundamental é olharmos para dentro de nós, e que olhar para fora é aqui perfeitamente acessório.
Como me dizia o bispo D. Manuel Martins, tentando justificar a pouca afluência nas missas no Corvo, “ as pessoas estão tão dentro desta imensidão, desta lonjura, deste silêncio – para quê irem à Igreja procurar Deus formatado?”
Realmente, para quê.
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Tempos Livres
Alicinha
ResponderEliminarNão conheço o Corvo mas, tenho pena. Conheço algumas ilhas dos Açores e acho-as todas lindas.
O Corvo, depois de tudo o que ouvi e li, seria o meu local ideal, para viver. Só tem um contra: É uma ilha. Pode parecer um contracenso mas, não é.
Gosto da paz, da gente simples e boa dos Açores. Gosto da vida calma, do quase isolamento mas, aí é que bate o ponto, não gosto de ver só mar à minha volta, embora goste dele. Sinto-me, com se o mundo acabasse ali.
Gostei da sua descrição.
Maria