segunda-feira, 21 de novembro de 2011

ENTÃO É ASSIM

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Por Alice Vieira

A IRMÃ dizia-lhe sempre “não te metas!”, mas nunca fazia caso.
Naquele dia também não. Olhou para o miúdo a arrumar carros, sujo, calças esburacadas, corpo que não devia ver água há eternidades, e meteu logo conversa. A princípio as respostas não passaram de grunhidos acompanhados de encolher de ombros, mas ao fim de algum tempo já sabia que largara a escola, não tinha poiso certo, andava por ali a fazer pela vida.

- E não gostavas de voltar à escola?

Novo encolher de ombros, e um assobio para um possível freguês.
Ela não desistia às primeiras e por ali ficou, a tentar conhecer mais da vida do rapaz que, por essa altura, já sabia que se chamava Chico.
Assim que chegou a casa agarrou-se ao telefone e ao computador, ligou para meio mundo e mandou mensagens para o outro meio, mexeu todos os cordéis e guitas que estavam ao seu alcance, meteu a paróquia e a empresa ao barulho – e, em poucas semanas, o Chico voltava à escola, e dormia num centro de acolhimento.
De vez em quando aparecia-lhe em casa à hora de jantar. Aproveitava para ter uma refeição decente enquanto lhe dava notícias, e às vezes ficavam algum tempo na conversa.
Depois deixou de aparecer, o que ela nem estranhou, quando chegam a homens têm outras prioridades na vida.
Um dia bateram à porta.
Foi abrir.
Um homem sorria para ela.

- Então já não se lembra de mim? Sou o Chico!

Grandes exclamações, grandes abraços, “deixa-me olhar bem para ti!”, ele a pedir desculpa de nunca mais ter dito nada “mas a vida não tá fácil!”, e logo a seguir explica ao que vem:

- Então é assim: vou-me casar e queria convidá-la para madrinha!
Ela espanta-se, se “a vida não tá fácil” e com esta crise, como vai ser? Ele tranquiliza-a e diz que há uns tempos que tem a vida estabilizada - “graças a si, tudo graças a si!” — trabalha num ferro-velho que pertence a um vizinho.

Ela estremeceu ligeiramente ao ouvir a palavra “ferro-velho”, teria ficado mais satisfeita se ele falasse de empresa, escritório, supermercado, call-center, enfim… Mas recompôs-se.
Aceita o convite, toma nota do dia, da hora e da igreja.
E no dia, na hora e na igreja certa lá está.
Não há grandes rituais preparatórios, o Chico aparece num carro e a noiva logo no carro atrás. Ele abre-lhe a porta e, antes de entrarem na igreja, vai apresentá-la.

- Esta é a Hortense!

Ela sorri para a noiva, a noiva sorri para ela, desengraçadinha mesmo pelo meio de quilómetros de tule a enfaixar-lhe a cara.
Sobem lentamente as escadarias da igreja, e ela começa a ouvir ruídos estranhos, olha em volta mas não vê nada, mas os ruídos continuam, ruídos de latas, de arames que se entrechocam, uma coisa assim…
Torna a virar a cabeça para ver se percebe donde vêm, olha para as escadas e, de repente, descobre que, à sua frente, a noiva se movimenta em duas próteses.
Não quer que ninguém perceba o seu choque, não quer voltar a olhar, a cabeça gira em todas as direcções, mas o Chico deu por isso.
Volta-se para trás, sorri-lhe, pisca o olho e murmura:

- Então…Foi o que se pôde arranjar…

Quando ao fim da tarde chegou a casa, a irmã ligou:

- Então, o casório?

Ela deu uma gargalhada.

- Não sei se terão muitos meninos, mas que vão ser felizes para sempre não tenho dúvidas!

E foi à procura de uma moldura para pôr o retrato que o Chico prometera mandar.

«ACTIVA» de Nov 2011

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