sábado, 5 de novembro de 2011

A MALA DA ALICE - UM DESCONTO JUSTO

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Por Alice Vieira

APESAR de todas as maravilhas electrónicas que fazem tudo, a minha mala ainda anda cheia de coisas que, para a maior parte das pessoas, são olhadas como dignas de estar em museu.
Agendas.
De papel mesmo, e capas duras.
Aquela onde tenho os meus dias todos marcados até ao fim de 2012; e aquela onde assento todos os telefones e moradas e mails - e o que eu me rio quando algum amigo me telefona, desesperado porque o telemóvel lhe “comeu” todos os endereços…
“Tu, que tens os telefones de toda a gente, diz-me lá…” – e lá ficam a tomar nota.
Mas, para lá das agendas, e de toneladas de fotografias, e de postais e bilhetes que, por qualquer motivo especial, amigos especiais me mandaram e andam sempre comigo – trago sempre um calendário.
Normalmente é um amigo coleccionador que mos fornece porque eu, a bem dizer, nem sei onde é que eles hoje se vendem.
Dantes sabia: na tabacaria da D. Rita.
Mas a tabacaria da D. Rita há um ano que se transformou numa agência imobiliária.
Felizmente que, no ano passado, ainda ninguém no bairro pensava que a D. Rita teria de fechar as portas, ela ainda teve tempo de atender uma senhora de muita idade que entrou e perguntou:

- Tem calendários?

A D. Rita nem estava a perceber, há que tempos ninguém lhe pedia calendários, e ainda perguntou se era para consultar ou para comprar mesmo, mas a voz da senhora não admitia dúvidas, “claro que é para comprar, para que é que eu havia de querer consultar um calendário a meio da tarde?”
A D. Rita lá deu uma vista de olhos pela loja, onde raio teria ela enfiado os calendários, Janeiro não tardava e era bom que os tivesse mais à mão.
Lá os descobriu no cimo de tudo, devia ter sido o marido a atirá-los para lá, esticou-se e agarrou num deles.

- Pronto, aí o tem. São dois euros.

A senhora deu uma gargalhada.

- Você deve pensar que eu estou maluca… Dar dois euros por esta porcaria?

A D. Rita olhou bem para ela, uma rede finíssima por sobre o cabelo todo branco, quilos de pó de arroz sobre as rugas, casaco a imitar pele, decerto mais por falta de dinheiro que por convicções ecológicas, e lá se vai defendendo, dizendo que é um calendário muito resistente, plastificado, com uma bonita ilustração, e além disso chega até ao ano 2015, “isto a bem dizer até são cinco calendários num só! Está a ver? Cinco calendários! Fica-lhe a 40 cêntimos cada um! A bem dizer, até poupa!”
Lembro-me que estava ao canto da tabacaria, e até me comecei a rir porque aquela conversa toda parecia um anúncio de champô ou creme de banho, dois em um, mas a senhora olhou para mim e não achou graça.

- Olhe bem para a minha cara – disse ela, e tanto eu como a D. Rita obedecemos. Como nenhuma de nós dissesse nada, ali feitas parvas a olhar para ela, perguntou:
- Que idade é que me dão?

Continuámos em silêncio

- Estou quase com 90 – disse ela.

Aí a D. Rita desatou naquela conversa idiota, “ai mas nem parece nada!, eu sou muito mais nova que a senhora e ando para aqui toda torta, com a minha ciática que dá cabo de mim, e então quando vem o inverno a bronquite não me larga, e a sinusite é…
A senhora cortou-lhe o rol de desgraças:

- Mais me ajuda. Se você, que é nova, já está assim, imagine o que seria de mim se durasse mais cinco anos! Claro que não duro! E vocês acham que vou dar dinheiro por uma coisa que quase de certeza não vou usar? Para que quero eu um calendário que dure cinco anos, se de certeza eu não vou durar mais cinco anos?

A D. Rita já não sabia que mais havia de dizer

- Então fazemos assim – disse a senhora – eu levo o calendário se me fizer um desconto.
- Um desconto? Mas o calendário custa dois euros! E serve para cinco anos! Praticamente fica a 40 cêntimos cada…
- Eu ainda sei fazer contas. Mas quero um desconto. Um desconto pelos calendários que não vou ter tempo de usar.

Parou por momentos e depois murmurou:

- É justo, não é?

A D. Rita olhou para ela, e depois para o calendário, que afinal eram cinco, e de novo para ela, esperando que, apesar da ciática e da bronquite, o ano de 2015 as encontrasse ali de novo, entre jornais, revistas, papelada – sem poder imaginar que, dali a uns tempos, viria uma agência imobiliária fechar-lhe a porta e empurrá-la para novas paragens.

- Justíssimo – disse, passando-lhe o calendário para as mãos.
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AUDÁCIA de Nov 2011

1 comentário:

  1. Alicinha
    Não pense que a sua carteira é única. A minha serve de motivo de troça a toda a gente. Tem agendas, tem álbuns de fotos, tem óculos, tem chaves, bâton e pó de arroz que, não uso, papéis soltos, um frasco de perfume, toalhitas variadas, bolachas, cigarros, 3 ou 4 isqueiros, cinzeiro portátil e o mais que apareça.
    A minha sobrinha comenta que "Estou sempre a ver saltar um coelho da mala da tia". Acho que quase todas as malas de mulher são assim.
    Quanto à velhinha dos calendários, se calhar fez o negócio da vida dela. Se durar mais do que dois anos, já está a ganhar.
    Alice, Alice! Como é refrescante lê-la, mesmo quando a "Bica é escaldada".
    Beijinho
    Maria

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