CONHECI o Ruy Belo quando ambos entrámos para a
Faculdade de Letras de Lisboa, em 1961.
Eu era uma jovem ainda a
cheirar à infância do liceu; ele, dez anos mais velho, já tinha uma série de
cursos no currículo, um doutoramento feito em Roma, um livro de poemas
publicado.
A princípio fazia-me confusão que uma pessoa
como ele ainda insistisse em estudar mais, e se tivesse de novo matriculado numa
faculdade, e andasse ali junto dos caloiros ( e todos juntos estaríamos quando,
pouco tempo depois, rebentou a greve académica, que nos uniu ainda mais.)
Mas a nossa faculdade fazia-se
muito mais no bar de Letras, onde a Menina Manuela tirava bicas, e onde as
mesas se enchiam de gente que falava, discutia, acreditava que era possível
fazer do país um lugar onde – como ele dizia pelo meio desse primeiro livro – “
um dia haverá barcos e seremos livres”
Às vezes, de repente, o Ruy
exclamava:
“Tenho de ir para casa”.
E levantava-se da mesa e saía.
E eu sabia que era um poema
que estava a chegar. Nunca conheci nenhum poeta a quem a inspiração chegasse
assim.
Mas o Ruy era também a pessoa
mais desorientada que alguma vez conheci na vida…
Nunca me hei-de esquecer do
dia em que ele insistiu em ir buscar-me a casa para irmos…? À distância destes
anos todos não me lembro exatamente onde iríamos, mas possivelmente a uma
exposição de pintura na Galeria 111, que era o poiso de todos nós. Mas
lembro-me de ter dito “eu levo o meu carro” (o meu carro era, na altura, o
carro onde se amontoava toda a gente, “que saudades do tempo em que, para nós,
“mini” era o teu carro e não uma cerveja”, dizia há dias o Jorge Silva Melo,
nosso comum amigo…), e de ele ter respondido “desta vez vamos no meu”.
Eu vivia então na Av. António
Augusto de Aguiar – e até hoje me lembro do pânico que senti quando o Ruy,
metendo a primeira para arrancar, começa a subir a Av. Fontes Pereira de Melo —
em sentido contrário.
“Ó Ruy, não é por este lado!”,
gritava eu, e os carros que vinham contra nós a buzinarem feitos doidos, e ele
“deixa estar que isto é rápido!”
Era nos anos 60, claro. Se
fosse hoje, com o trânsito de hoje, aquele teria sido o nosso último dia de
vida.
Depois o curso acabou, as
nossas vidas levaram rumos diferentes, mas nunca deixei de estar em contacto
com ele, e às vezes aparecia cá por casa, ou vinha jantar (quase sempre em dia
diferente daquele que tinha sido combinado…).
Lembro-me de como me indignei
quando não o deixaram entrar como professor na faculdade, e ele teve de ir dar
aulas num curso noturno de uma escola do então Ensino Técnico, no Cacém.
Lembro-me de ouvir a sua voz
magoada: “à noite, quando chego a casa, custa-me tanto subir as escadas…”
Hoje, enquanto recordo tudo
isto, tenho na minha frente um postal da Fonte de Neptuno, em Madrid, que ele
me escreveu, na sua letra tremida quando, nos anos 70, lá era leitor.
“O meu quarto na Casa do
Brasil é o nº 15-A. Escreve-me, por favor”
E agora, para onde lhe poderei
escrever?
Por acaso estou a ler, neste momento, Todos os Poemas, de Ruy Belo, edição Assírio e Alvim, com mais de 800 páginas de miolo puro, à lareira, numa aldeia de Alfãndega da Fé. Tem oito páginas de explicação que o próprio autor dá.
ResponderEliminarUma nota de edição informa que faltam Os Poucos Poderes que, para o autor, seriam «legendas em verso». Terá esta obra visto já a luz do dia?
Digo Alfândega.
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