quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A MEMÓRIA APAGADA


Por Alice Vieira
HOJE, pela primeira vez na minha vida, sinto-me velha.
Tenho o telemóvel na mão e estou há horas a olhar para ele sem saber o que fazer. Acabo por largá-lo, aqueles para quem eu queria ligar já não me vão atender – e, para além deles, já não há mais ninguém capaz de entender a minha não sei se fúria, não sei se raiva, não sei se impotência. A minha — isso sei — grande tristeza.
Dói-me esta perda de memória que vai atacando a nossa sociedade a um ritmo cada vez mais vertiginoso.
Acabo de chegar da Escola Francisco Arruda, onde acho que já não entrava há mais de 40 anos. Ótimas instalações, tudo a cheirar a novo.
A escola Francisco Arruda foi o “sonho” de um homem chamado Calvet de Magalhães, um dos maiores pedagogos deste país que, nesses anos 50 da sua fundação, a transformou num oásis de educação e de cultura. Pioneiro de muitas causas (a integração de alunos deficientes foi uma das suas grandes lutas), foi sobretudo um animador cultural num tempo onde o desânimo imperava. A escola estava então rodeada de bairros de lata e, todos os sábados, ele abria as portas a toda a comunidade. E havia exibição de filmes, palestras, ateliers de olaria, histórias contadas aos miúdos, etc. Era uma maravilha ver aquela escola cheia de gente, que a considerava sua.
Hoje isso pode parecer habitual, naquele tempo não era.
O Prof.Calvet foi ainda fundador da Associação Portuguesa para a Educação pela Arte, que durante anos manteve uma atividade regular, destacando-se a publicação de uma coleção de histórias infantis, sempre ilustradas pelos meninos da Francisco Arruda. E aí se integrava a organização de um concurso, a nível nacional, chamado “O Natal Visto pelas Crianças”, a que o Diário de Lisboa se associava.
É aí que eu entro — a fazer a ligação entre as reuniões do júri, e a publicação dos textos nas páginas do jornal.
É difícil entender hoje a importância desse concurso. Para já, o júri era de peso: para além do Prof. Calvet, como organizador, José Gomes Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Maria Lúcia Namorado, Alice Gomes, Rocha de Sousa, António Domingues. E eu, na verdura dos meus 18 anos, a ouvi-los, a aprender com eles, a rir muito com eles. Vinham caixotes de textos do país inteiro, as reuniões eram prolongadíssimas e duravam muitos dias — mas eram sempre uma festa. Lia-se cada texto como se fosse candidato ao Prémio Nobel — e quando se chegava àquela altura dramática dos 11 anos, em que os meninos já estão formatados pela escola e dizem todos os mesmos lugares- comuns e era difícil encontrar um melhor que outro, a voz do Zé Gomes:”ó Matilde, leia lá em voz alta que, na sua voz, tudo é uma maraviha!”
Depois um dia, de repente, o prof. Calvet de Magalhães diz-me:”no sábado vais ler histórias aos miúdos lá na minha escola.” Pensei que estava a brincar comigo, eu nunca tinha escrito uma história na minha vida, nem me lembrava de alguma vez ter contado histórias fosse a quem fosse. Ri-me, fiz-me desentendida, mas ele: ”sábado de manhã, não faltes!”
E lá fui. Sei que escrevi uma história mas não me lembro de mais nada, a não ser de me ver diante de um ginásio a transbordar de gente, e eu num palco, em frente de um microfone a tentar ler o que levava escrito numas folhas de papel.
Lembro-me que levava um vestido cor de laranja. Lembro-me de ter ouvido muitas palmas. E lembro-me do Prof. Calvet a dizer: ”para a semana cá te espero”.
Foram as primeiras histórias que escrevi, para muitos daqueles sábados de festa, que se prolongaram por muitos anos.
O Prof. Calvet foi diretor da Francisco Arruda até à sua morte: na turbulência da revolução, quando começou de repente a ver a “sua” escola transformada, e no ar a ameaça de deixar de ser seu diretor, não aguentou e suicidou-se.
O Pror. Calvet de Magalhães faria em Março cem anos.
E eu sempre pensei que, no seu centenário, o país lhe fizesse a homenagem que ele merece. Mas Março passou — e nada aconteceu.
Então pensei que possivelmente a Escola se teria encarregado disso.
Mas a Escola nem sequer tem uma placa com o seu nome em lado algum. Nem o seu nome foi dado, como seria de toda a justiça, à biblioteca. Entra-se ali e é como se ele nunca tivesse existido.
E eu chego a casa a pensar nesta falta de memória coletiva — e pego no telemóvel para dizer à Matilde, ao Zé Gomes, à Maria Lúcia, à Natércia Rocha, ao Mário, à Maria do Sameiro, “vocês já viram que ninguém se lembrou do centenário do Prof. Calvet?”, mas não digo, porque já todos morreram, e eu fico, entre as paredes da minha sala, sem saber com quem partilhar raivas e mágoas. E sem saber o que fazer no meio deste silêncio vergonhoso.
 «Senior» de 18 Jul 13

3 comentários:

  1. são opções eu sei, mas custa-me tanto ver a Língua portuguesa escrita segundo o raio do AO...
    Desculpe Alice... :)

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  2. «Quando o indivíduo para o ato de criar é o fim dele»
    (Título no »Expresso» de hoje, segundo a nova ortografia...)

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  3. Olá!
    VIVA, Alice!
    :)
    Nem sei por onde começar!...
    Primeiro: saudades dessa GENTE BOA!
    Segundo: gente sem memória é gente sem história!
    Que tristeza! as tábuas rasas são sempre coisas assustadoras!...
    Sobretudo quando é de progresso que se fala! de progresso e de inteligência, de massa cinzenta, enfim!!
    Não conheci o Calvet de Magalhães, ouvi falar dele pela 1ª vez à minha mãe, noutras ocasiões, à nossa querida Natércia (as saudades que tenho dela!...), no meu estágio profissional,à Cecília Menano, e a outros ligados ao movimento da educação pela arte. Mas pouco e nem sempre claro.
    O que se passa com este país que não admira os seus filhos e não lhes conserva o traço e assinala a memória?!?
    Assim que li o seu artigo pensei que tinha de dizer alguma coisa, dizer-lhe que estou aqui, consigo e sinto a(s)ausência(s), apesar de persistirem em algumas memórias...
    Se houver mais que estejam por aqui (que os há) o que podemos fazer para travar/mudar isto?

    Um abraço amigo
    Isabel Pissarra Gouveia

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