Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
O MEU PAI NÃO PAROU em casa este fim-de-semana e, no domingo à noite, entrou no escritório com a minha mãe e, passados alguns minutos, chamou-me.
- José Joaquim – disse-me com a voz das horas graves — lembra-te que, se um dia eu faltar, és o homem desta casa.
Fez uma pausa, enquanto a minha mãe se estendia na chaise-longue.
- Entre hoje e amanhã, alguma coisa de muito importante vai acontecer. E seja o que for que oiças, quero que saibas que tudo foi feito para bem do povo, para que mais ninguém viva na miséria, para que toda a gente tenha pão, instrução, liberdade…
De repente lembrei-me do comício do Dr. António José em Sintra e quase sorri. Mas o momento era sério.
Mas acho que só percebi que era mesmo sério quando o meu pai nessa noite não veio dormir, e na segunda-feira o nosso professor nos mandou para casa:
- Está para rebentar um trinta-e-um e eu não quero responsabilidades.
Quando cheguei a casa a minha mãe não parava de chorar, a minha avó não parava de fazer novenas, a Rosa não parava de dar água chalada a toda a gente — incluindo ao Alfredo, que não parava de bater à porta “a contar as últimas”.
- É hoje!
- É hoje o quê? — perguntou a Rosa.
- Mas então o que há-de ser? A revolução, rapariga!
Ela deu um grito:
- A revolução é hoje? Ai minha Nossa Senhora! E o patrão que não está em casa
- Claro que não está! Há-de lá estar com eles…
- Com eles, quem?
- Ora…com os que fazem a revolução! Com os que têm tudo combinado…O meu patrão nem abriu a loja. Também lá deve estar.
- Mas lá…onde?
- E eu sei? Lá…Onde se fazem as revoluções... Se calhar a esta hora já mataram o reizito…
- Tu nem me digas isso!
- Se não for hoje…é um dia destes! Aquele, coitado, não me parece que vá ter longa vida.
Também, segundo diz o meu patrão, a única coisa para que tem jeito é para ouvir missa e namorar francesas…
Foi nessa altura que a minha avó chamou a Rosa, e o Alfredo lá se foi escada abaixo.
Estes têm sido uns dias estranhos.
Quando vou na rua, só se ouve falar de bombas e atentados e greves.
Dizem-se as coisas mais loucas.
Dizem que as ciganas roubam as crianças para lhes tirarem os santos óleos
Dizem que há revoltas entre os marinheiros.
Dizem que a Rainha-Velha endoideceu de vez, e anda a regar as alcatifas do palácio como se estivesse no jardim.
Felizmente o meu pai chegou a casa na segunda-feira à noite.
Não disse nada, sentou-se à mesa de cabeça baixa e de colarinho aberto, e todos entendemos que as coisas tinham corrido mal.
- Deixa lá… - murmurou a minha mãe — não foi desta, será da próxima.
Ele deu-lhe um beijo na testa e, olhando para mim, disse:
- E o menino amanhã vai à escola, ouviu? A revolução precisa de homens instruídos!
E a vida voltou ao normal: o rei (que se calhar até nem deu por nada…) já hoje foi a uma festa no quartel de engenharia – e eu voltei aos juros, aos quebrados e ao “D. Jayme”.
Ainda gostava de saber para que é que a revolução precisa disto.
- José Joaquim – disse-me com a voz das horas graves — lembra-te que, se um dia eu faltar, és o homem desta casa.
Fez uma pausa, enquanto a minha mãe se estendia na chaise-longue.
- Entre hoje e amanhã, alguma coisa de muito importante vai acontecer. E seja o que for que oiças, quero que saibas que tudo foi feito para bem do povo, para que mais ninguém viva na miséria, para que toda a gente tenha pão, instrução, liberdade…
De repente lembrei-me do comício do Dr. António José em Sintra e quase sorri. Mas o momento era sério.
Mas acho que só percebi que era mesmo sério quando o meu pai nessa noite não veio dormir, e na segunda-feira o nosso professor nos mandou para casa:
- Está para rebentar um trinta-e-um e eu não quero responsabilidades.
Quando cheguei a casa a minha mãe não parava de chorar, a minha avó não parava de fazer novenas, a Rosa não parava de dar água chalada a toda a gente — incluindo ao Alfredo, que não parava de bater à porta “a contar as últimas”.
- É hoje!
- É hoje o quê? — perguntou a Rosa.
- Mas então o que há-de ser? A revolução, rapariga!
Ela deu um grito:
- A revolução é hoje? Ai minha Nossa Senhora! E o patrão que não está em casa
- Claro que não está! Há-de lá estar com eles…
- Com eles, quem?
- Ora…com os que fazem a revolução! Com os que têm tudo combinado…O meu patrão nem abriu a loja. Também lá deve estar.
- Mas lá…onde?
- E eu sei? Lá…Onde se fazem as revoluções... Se calhar a esta hora já mataram o reizito…
- Tu nem me digas isso!
- Se não for hoje…é um dia destes! Aquele, coitado, não me parece que vá ter longa vida.
Também, segundo diz o meu patrão, a única coisa para que tem jeito é para ouvir missa e namorar francesas…
Foi nessa altura que a minha avó chamou a Rosa, e o Alfredo lá se foi escada abaixo.
Estes têm sido uns dias estranhos.
Quando vou na rua, só se ouve falar de bombas e atentados e greves.
Dizem-se as coisas mais loucas.
Dizem que as ciganas roubam as crianças para lhes tirarem os santos óleos
Dizem que há revoltas entre os marinheiros.
Dizem que a Rainha-Velha endoideceu de vez, e anda a regar as alcatifas do palácio como se estivesse no jardim.
Felizmente o meu pai chegou a casa na segunda-feira à noite.
Não disse nada, sentou-se à mesa de cabeça baixa e de colarinho aberto, e todos entendemos que as coisas tinham corrido mal.
- Deixa lá… - murmurou a minha mãe — não foi desta, será da próxima.
Ele deu-lhe um beijo na testa e, olhando para mim, disse:
- E o menino amanhã vai à escola, ouviu? A revolução precisa de homens instruídos!
E a vida voltou ao normal: o rei (que se calhar até nem deu por nada…) já hoje foi a uma festa no quartel de engenharia – e eu voltei aos juros, aos quebrados e ao “D. Jayme”.
Ainda gostava de saber para que é que a revolução precisa disto.
«JN» de 3 Abr 10
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