sábado, 17 de abril de 2010

A ELECTRICIDADE VAI DOMINAR O MUNDO

.
Por Alice Vieira

Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".

AO QUE PARECE, depois da revolta falhada do dia 1, as pessoas resolveram descansar um bocadinho.
Pelo menos o meu pai.
Hoje até fechou a livraria mais cedo para ir à Academia Real das Belas Artes, à inauguração de uma exposição de um pintor chamado Silva Porto, que já morreu há anos mas de quem ele gosta muito.
Diz-se que o Rei também lá vai estar.

- Quero ver a recepção que vai ter — disse o meu pai.
Como a inauguração prometia ser calma, a minha mãe também foi, muito contra a vontade da minha avó:
- A menina sabe muito bem que, no seu estado, não deve sair de casa!

(Lá vinha outra vez aquela coisa do “estado”, um dia destes tenho mesmo de saber do que é que se trata)
Mas a minha mãe disse que isso eram ideias antigas, sentia-se bem, e não ia perder a inauguração por nada.
Antes de saírem, o meu pai perguntou-me:

- Já leste o novo Salgari que te trouxe da livraria?
- Está quase…- murmurei, sabendo que ainda não tinha passado do princípio.
- Depois falamos — disse ele.

O Emílio Salgari é dos meus autores preferidos, mesmo ao lado do Júlio Verne.
O meu pai até nem gosta muito, porque diz que aquilo é pirataria a mais, e nem o facto de um dos heróis ser português o consegue comover.
Mas desta vez o novo livro de Salgari não trata de Sandokan, nem de Gastão de Sequeira, nem da ilha de Mompracém.
Desta vez o livro passa-se…imaginem! — no ano 2000!
Eu nem consigo imaginar o que seja o ano 2000. Para já, a minha avó garante que é nesse ano que o mundo vai acabar.
E então nesse ano 2000, conta o Salgari, a electricidade vai dominar o planeta, e acontecem coisas extraordinárias: as paredes da nossa casa transmitem imagens do mundo inteiro, e a electricidade é tanta que as pessoas andam sempre a correr e em choque permanente.
E como há muitas máquinas para substituir as pessoas, há muitos trabalhadores desempregados. E quando eu estava à espera de greves e bombas e estas coisas que agora acontecem por causa do desemprego - não!: os trabalhadores transformam-se todos em agricultores e pescadores!
E não há revoluções, nem ditaduras, nem guerras. E, em vez de exércitos, só há um destacamento de bombeiros, para acudir a alguma catástrofe natural – ou, enfim, a um ou outro anarquista que tenha sobrado do passado…E quais os castigos para esses? Apanham com um jacto de água electrificada, e depois são conduzidos num trem eléctrico até ao Pólo Norte, para trabalharem, até ao fim das suas vidas, pelo bem do planeta.
E se por acaso nesse tempo ainda houver criminosos, daqueles que roubam e assaltam casas, então esses são enfiados em prisões flutuantes e, ao mais leve sinal de revolta, umas bombas, estrategicamente colocadas, mandam todos para o fundo do mar.
Tudo por causa da electricidade que vai dominar o mundo no ano 2000.
Mas como ainda estamos em 1910, espero que a república, quando vier, não venha carregada de electricidade.

«JN» de 17 Abr 10

2 comentários:

  1. Uiii, "infelizmente" veio e traz o parlamento até às nossas casas eheheh..

    ResponderEliminar
  2. Júlio Verne é um dos grandes escritores mundiais de sempre e já esperava uma referência:)
    www.jvernept.blogspot.com

    ResponderEliminar