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Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
A MINHA avó nem conseguia falar.
Deixou-se cair na chaise-longue enquanto a Rosa foi preparar um chá de tília.
A minha mãe abanava-a com o leque, e ela só repetia, “eu vi-o! eu vi-o! tão novo e tão triste, coitadinho!”
O meu pai chegou nessa altura e foi então que a minha mãe explicou tudo:
- Vimos o rei.
- E então? Ainda o vimos há dias, na exposição do Silva Porto.
- Mas aqui foi diferente. Parecia uma pessoa normal, a descer o Chiado, a entrar na “Ferrari”…
- Não me digas que vos ofereceu um capilé!
O meu pai anda sempre muito sério e não costuma dizer coisas destas, de maneira que desatei a rir e a Rosa, que levava a bandeja de prata com o bule do chá, até ia entornando tudo.
- Fique o senhor meu genro sabendo — exclamou a minha avó-- que o povo de Lisboa estava todo ali a aplaudi-lo!
- Que exagero! - exclamou o meu pai…- O povo do Chiado…e, mesmo assim, se calhar nem todo…
A minha mãe contou então o que se tinha passado: estavam elas a tomar chá na Ferrari quando de repente vêem entrar D. Manuel.
- Mas olha que lá fora eram palmas que nunca mais acabavam…
A minha avó tentou endireitar-se, o que é coisa complicada por causa das barbas do espartilho.
- Claro! O povo ama o seu rei! Só os republicanos e os excomungados da Maçonaria e da Carbonária é que o querem matar!
O meu pai levantou-se e saiu da sala, que é sempre o que faz para evitar discussões.
Mas voltou logo a seguir, com um livro nas mãos.
- Se a senhora minha sogra, em vez de ler aqueles romances de cordel que lhe vêm vender à porta, lesse aquilo que interessa, saberia que não se trata de matar o rei. A monarquia é que está velha, é um ninho de corruptos, e a república vai chegar, mais dia menos dia. Não foi no dia 1 de Abril? Noutro dia será, mas é uma fatalidade, quer a senhora queira quer não, e …
A minha mãe tossiu levemente, que é o sinal que ela dá ao meu pai quando ele se deixa embalar em discursos intermináveis.
Ele ajustou os óculos e disse:
- Esta é uma carta dirigida ao rei. Não a vou ler toda, mas se a senhora minha sogra quiser, fica com o livro.
Aclarou a voz :
- “O trono de Vossa Majestade está perdido e nada o salvará da sua perda. É lastimável que Vossa Majestade herdasse um trono a cair mas a verdade é esta: ele está a cair.
Vossa Majestade é muito novo mas para o mundo que veio encontrar é velhíssimo. Veio tarde. Vossa Majestade é um novo rei, mas não é uma monarquia nova. Vossa Majestade teve verdadeiramente pouca sorte. Nasceu rei quando já não era preciso".
O meu pai calou-se e fez-se um grande silêncio.
- Quem escreveu isso? – perguntou a minha avó.
- João Chagas – respondeu o meu pai.
- Claro, tinha de ser um da sua laia… Os republicanos são todos iguais!
E saiu da sala.
Mas até eu percebi que aquelas palavras a tinham tocado.
Como me tocaram a mim que, sem querer, já estava a murmurar “coitado do rei”.
(Que o meu pai nem sonhe!...)
«JN» de 24 Abr 10
Por Alice Vieira
Estas crónicas integram-se num conjunto de crónicas semanais, a publicar no JN até ao dia 5 de Outubro 2010, destinadas a um público jovem, sob o título genérico "DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE EM 1910".
A MINHA avó nem conseguia falar.
Deixou-se cair na chaise-longue enquanto a Rosa foi preparar um chá de tília.
A minha mãe abanava-a com o leque, e ela só repetia, “eu vi-o! eu vi-o! tão novo e tão triste, coitadinho!”
O meu pai chegou nessa altura e foi então que a minha mãe explicou tudo:
- Vimos o rei.
- E então? Ainda o vimos há dias, na exposição do Silva Porto.
- Mas aqui foi diferente. Parecia uma pessoa normal, a descer o Chiado, a entrar na “Ferrari”…
- Não me digas que vos ofereceu um capilé!
O meu pai anda sempre muito sério e não costuma dizer coisas destas, de maneira que desatei a rir e a Rosa, que levava a bandeja de prata com o bule do chá, até ia entornando tudo.
- Fique o senhor meu genro sabendo — exclamou a minha avó-- que o povo de Lisboa estava todo ali a aplaudi-lo!
- Que exagero! - exclamou o meu pai…- O povo do Chiado…e, mesmo assim, se calhar nem todo…
A minha mãe contou então o que se tinha passado: estavam elas a tomar chá na Ferrari quando de repente vêem entrar D. Manuel.
- Mas olha que lá fora eram palmas que nunca mais acabavam…
A minha avó tentou endireitar-se, o que é coisa complicada por causa das barbas do espartilho.
- Claro! O povo ama o seu rei! Só os republicanos e os excomungados da Maçonaria e da Carbonária é que o querem matar!
O meu pai levantou-se e saiu da sala, que é sempre o que faz para evitar discussões.
Mas voltou logo a seguir, com um livro nas mãos.
- Se a senhora minha sogra, em vez de ler aqueles romances de cordel que lhe vêm vender à porta, lesse aquilo que interessa, saberia que não se trata de matar o rei. A monarquia é que está velha, é um ninho de corruptos, e a república vai chegar, mais dia menos dia. Não foi no dia 1 de Abril? Noutro dia será, mas é uma fatalidade, quer a senhora queira quer não, e …
A minha mãe tossiu levemente, que é o sinal que ela dá ao meu pai quando ele se deixa embalar em discursos intermináveis.
Ele ajustou os óculos e disse:
- Esta é uma carta dirigida ao rei. Não a vou ler toda, mas se a senhora minha sogra quiser, fica com o livro.
Aclarou a voz :
- “O trono de Vossa Majestade está perdido e nada o salvará da sua perda. É lastimável que Vossa Majestade herdasse um trono a cair mas a verdade é esta: ele está a cair.
Vossa Majestade é muito novo mas para o mundo que veio encontrar é velhíssimo. Veio tarde. Vossa Majestade é um novo rei, mas não é uma monarquia nova. Vossa Majestade teve verdadeiramente pouca sorte. Nasceu rei quando já não era preciso".
O meu pai calou-se e fez-se um grande silêncio.
- Quem escreveu isso? – perguntou a minha avó.
- João Chagas – respondeu o meu pai.
- Claro, tinha de ser um da sua laia… Os republicanos são todos iguais!
E saiu da sala.
Mas até eu percebi que aquelas palavras a tinham tocado.
Como me tocaram a mim que, sem querer, já estava a murmurar “coitado do rei”.
(Que o meu pai nem sonhe!...)
«JN» de 24 Abr 10
Vou ser cuidadoso...
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